10.3.21

Já não há profissões vedadas às mulheres, mas ainda “há muitos preconceitos”

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Longe vão os tempos em que se promovia o ideal do homem ganha-pão e da mulher dona de casa, como acontecia na infância e na adolescência de Isabel Alçada e Ana Maria Magalhães, mas a desigualdade persiste e isso vê-se na segregação por sexos ainda tão presente no mercado de trabalho. A dupla lança esta segunda-feira, Dia Internacional da Mulher, um livro para ajudar rapazes e raparigas a pensar o futuro, O Longo Caminho para a Igualdade-Mulheres e Homens no século XXI

Isabel Alçada (IA) e Ana Maria Magalhães (AMM) conheceram-se muito jovens, ainda estagiárias, no ano lectivo de 1976-77. Já assinaram mais de uma centena de títulos juntas. Tornaram-se conhecidas com a colecção Uma Aventura, que desde 1982 acompanha as peripécias das gémeas Teresa e Luísa e dos seus amigos Pedro, Chico e João. Agora, aceitando um desafio da Imprensa Nacional Casa da Moeda e do iGen - Fórum Organizações para a Igualdade, escreveram o livro O longo caminho para a igualdade - mulheres e homens no século XXI. O livro, ilustrado por Susana Carvalhinhos, tem duas partes: uma história de ficção e um conjunto de dados sobre desigualdade entre homens e mulheres. Um pretexto para uma conversa a três, que aqui se reproduz em versão reduzida.

Quanto eram pequenas apercebiam-se da desigualdade de género?
IA: Quando era muito pequena não tinha consciência. Andava numa escola mista [o Liceu Francês Charles Lepierre, em Lisboa]. Havia turmas de raparigas e de rapazes, mas víamo-nos no recreio e íamos juntos na carrinha. Quando estava no 6.º ano, que corresponde agora ao 10º, fui à Faculdade de Direito a uma conferência organizada pela Associação de Estudantes. O tema era O papel da mulher na sociedade portuguesa. Foi, para mim, uma revelação. Debatia-se o facto de as mulheres não terem a mesma voz do que os homens, as mesmas opções, o mesmo estatuto. Eram três dias. No segundo dia, apareceu o director da faculdade a dizer que não autorizava o terceiro dia porque se tinha tratado de assuntos que não eram para ali chamados. Falou-se, por exemplo, na guerra colonial, que era um assunto tabu. Eu tinha ficado tão entusiasmada no primeiro dia que tinha dito à minha mãe para ir comigo no dia seguinte. E ela tinha ido e também tinha ficado entusiasmada. Aquilo dava consciência da desigualdade. Discutimos o tema com o meu pai. O meu pai ficou zangadíssimo. Eu disse que quando fosse adulta queria escolher a minha profissão e trabalhar. E ele respondeu: “Tomaras tu ter uma família como a nossa, em que o marido sustenta a casa, a mulher não precisa de trabalhar. Uma mulher que não precise não trabalha! Só trabalham as mulheres que precisam.” Aquilo foi para mim o click.

Isso foi em que ano?
IA: 1966. Lembro-me que na mesa estavam a Isabel da Nóbrega, tia da Ana Maria Magalhães, a Sophia de Mello Breyner Andresen, a Maria Barroso, que tinham uma voz abafada pelo regime. No último dia, como não podia ser ali, fomos para o Instituto Superior Técnico. Lembro-me de a Maria Barroso estar a gritar, furiosa, com a proibição, e de uma sobrinha dela, que era da minha turma, dizer: “Ai que a minha tia vai presa!” Até então tinha vivido em algodão em rama.

Sendo sobrinha de Isabel de Nóbrega, a Ana Maria tinha mais consciência da desigualdade de género?
AMM: No meu caso também foi algodão em rama. Tive uma infância muito protegida, numa casa muito grande, com família alargada. Vivia com os meus pais, os meus irmãos, uma tia, empregados. Era um mundo! Mais tarde a minha mãe casou-se segunda vez e teve mais meninas, mas na minha infância éramos três e eu era a única menina. A minha família era um matriarcado. As nossas referências eram a mãe e a avó. Elas é que representavam a autoridade, tomavam as decisões. Eu achava que uma mulher podia fazer tudo o que quisesse.

O facto de viver numa casa com empregadas domésticas, as chamadas “criadas de servir”, raparigas muito pobres que vinham do campo, não a levava a questionar-se?
AMM: O mundo dos anos 50 era completamente diferente. Havia empregadas que vinham do campo, onde viviam muito mal, e que, na maioria dos casos, ficavam lá em casa até encontrarem um namorado. Depois casavam-se e iam para a casa delas. Vir para a cidade era uma oportunidade para mudar de vida. Connosco, viviam numa casa aquecida, não lhes faltava alimentação. Se adoecessem, eram imediatamente tratadas. O meu pai era médico. Tinha uma casa de saúde no rés-do-chão. Vivíamos no primeiro andar. Havia uma empregada antiga que era governanta. Ela controlava o trabalho das outras. Inventava histórias para entreter as crianças. Havia ainda uma viúva que ficou sem meios de se sustentar e foi viver lá para casa.

IA: As crianças tendem a achar natural aquilo que vêem e têm. Eu achava que todas as famílias eram como a minha. Aliás, também achava que todas as escolas eram como a minha. Quando fui dar aulas pela primeira vez, tive um choque. Fui para uma escola pública. As instalações eram boas, mas não tinha biblioteca, as crianças eram diferentes. Na minha infância, nem as diferenças sociais eram nítidas.

AMM: Para mim eram. Os meus avós eram de Trás-os-Montes e nas aldeias transmontanas havia uma miséria confrangedora. Ia a casa de outras crianças brincar e via a miséria em que viviam. A escola era para as raparigas até ao 3º ano, para os rapazes até ao 4º. Alguns saíam da escola desolados, porque queriam continuar a estudar. Eu achava aquilo uma grande injustiça, mas não era culpa da minha família.

Prepararam-se para ser professoras do ensino básico, uma profissão aceitável numa época em havia uma lista de profissões vedadas às mulheres. Sempre quiseram ser professoras?
IA: Inicialmente não. Havia um aeródromo na Granja, perto da casa de férias. Eu achava que podia ser aviadora. Via aqueles aviõezinhos a levantar voo e queria aprender a guiar. O meu pai disse logo: “Não penses nisso, porque isso não é profissão para uma mulher.” Eu perguntei: “Mas porquê?”. E ele respondeu: “Não é e acabou-se!” Era assim. Eu gostava de todas as disciplinas. Talvez por influência da família, optei por Letras. O meu pai dizia que era óptimo as meninas estudarem Letras porque podiam ser professoras, tinham um horário que lhes permitia atender a família. Já que queria trabalhar, podia dar aulas em casa!

AMM: Eu sempre gostei mais de Letras do que de Ciências. Andei no Colégio do Sagrado Coração de Maria. Desde o 1º ciclo que gostava de ajudar os colegas que tinham mais dificuldade. Também gostava de ajudar os meus irmãos. “Não está a perceber a matéria? Deixe cá ver. Eu ajudo!” Também gostava muito de escrever histórias. Comecei a escrever histórias com nove anos. Queria casar-me, ter filhos, ser professora e, talvez, ser escritora. A minha tia Isabel da Nóbrega, que era feminista, dizia muito: “As mulheres têm direito de trabalhar, de escolher a profissão, mas também têm direito ao descanso. Têm cinco e seis filhos, trabalham que se matam, ninguém lhes dá uma mãozinha!” Lembro-me de ela dizer, numa conferencia em Santarém: “Vai tudo para o piquenique, mas a mulher já se levantou às seis da manhã para fazer sandes, arranjar os cestos. Chega a hora, está tão cansada que já não quer ir.”

É uma imagem actual em muitas famílias
IA: Está melhor. Hoje, filhos e filhas são mais educados para partilhar tarefas. Na minha geração não. Os homens mais evoluídos defendiam a igualdade, mas...

Sentados no sofá?
IA: Exactamente! Defendiam a igualdade na lei, mas, na prática, a execução das tarefas domésticas e os cuidados com os filhos eram responsabilidade das mulheres. Isto evoluiu, mas mantêm-se diferenças.

AMM: Há coisas que mudam por decreto, como o direito ao voto ou a abertura de todos os cursos e de todas as profissões a mulheres e homens. Agora, a maneira como se vive em família é uma decisão de cada família. Tem de dividir [as tarefas domésticas] se quiser – se ele quiser e se ela quiser, porque há mulheres que não querem o marido na cozinha. Eu tenho um filho e uma filha e ensinei ambos a cozinhar, a limpar a casa, a passar a ferro. Saíram ambos aptos a tratar de si próprios e da sua casa. Podem fazê-lo em parceria ou sozinhos.

IA: Ainda me lembro de na tua casa o marido arranjar as flores.

AMM: Eu sou desajeitada de mãos. O meu primeiro marido arranjava as jarras de flores quando havia festas. Um dia, a minha mãe veio com um grande ramo de flores, estava a pô-las numa jarra e o meu filho, que nessa altura era pequenino, perguntou-lhe: “A avó é homem para estar a arranjar jarras de flores?”

IA: Os novos estão cada vez mais a gostar de dar banho ao bebé, vesti-lo, a brincar com ele, ir levá-lo ou buscá-lo. Isso era uma coisa que no passado os homens não se autorizavam sequer a gostar.

AMM: Parecia mal.

IA: O meu pai era insuportável com adolescentes, porque era controlador, mas adorava crianças. A minha alegria quando ele ia ao colégio buscar-me!

Há uma intenção de promoção da igualdade nos vossos livros? Ocorre-me a colecção Uma Aventura. Tem personagens femininas fortes.
IA: Na colecção Uma Aventura temos duas gémeas que são representantes das raparigas de hoje. São dinâmicas. Têm iniciativa. Estão no grupo em situação de igualdade. Elas é que começam a primeira aventura [Uma aventura na cidade]. Muitas vezes, elas é que se apercebem que está a haver um problema. As personagens adultas são secundárias, mas todas as mães trabalham. Só há uma avó que não. Mas fizemos isso de forma inconsciente.

Não debateram isso?
IA: Debatemos as personagens que deviam estar. Queríamos que representassem uma diversidade de crianças.

AMM: Com as gémeas [inspiradas em duas antigas alunas] foi natural. São tão aventureiras, ousadas e divertidas como os rapazes. Em todas as aventuras tem de haver malfeitores. E também temos muitas quadrilhas comandadas por mulheres.

Isso desafia o estereótipo da mulher dócil, submissa, não transgressora…
AMM: Há uns anos, quando fizemos Uma aventura na biblioteca, inventámos uma mãe que é chefe de uma quadrilha. Os filhos fazem roubos e ela controla [São a Rapa-Tachos e os seus filhos Açorda e Esparguete]. Isto foi inspirado num caso que apareceu no jornal. Chamavam-lhes “Espalha-brasas”. Portanto, acontece. Há mulher diabólica, como há homens diabólicos.

IA: Tentamos evitar estereótipos, mas somos moralizantes. Os nossos bandidos, sejam mulheres ou homens, são sempre horrorosos. Nem se percebe como pode haver alguma pessoa assim. São tão ridículos que dão vontade de rir!

Não há nuance…
IA: Não. Achamos que tem de ser nítida a distinção entre o que é correcto, o que é bom para nós e para os outros, e o que é errado, que vai prejudicar os outros e nós mesmos.

AMM: Fui professora 40 anos do 5º e do 6º ano e ficava horrorizada quando via que os meus alunos queriam ser o bandido de uma série de televisão. Ninguém se tornará bandido por causa dos nossos bandidos!

Neste livro, O Longo Caminho para a Igualdade - Mulheres e Homens no século XXI, a lógica é outra, é a do debate. Há uma rapariga que quer ir para a Força Aérea e um namorado que não gosta nada da ideia...
AMM: Ele não é um vilão. É apenas um rapaz que não quer vir a ser casado com uma mulher da Força Aérea. São preconceitos que estão enraizados. O que fazemos é colocar questões para que possam ser discutidas, pensadas. Há uma mãe que é engenheira mecânica e viaja por motivos profissionais, mas acha péssimo que uma rapariga que trabalha na lavandaria queria ser motorista de camiões TIR.

As personagens, como as pessoas, têm contradições...
AMM: A minha mãe dizia que na sua juventude houve um oficial da marinha que quis casar-se com ela e que ele era interessante, mas ela recusou por achar que não ia ser feliz com uma pessoa que passava a vida no mar e só vinha a casa de longe a longe. As pessoas conhecerem-se e saberem o que querem é importante para conduzirem a sua vida. A rapariga tem direito de ir para a Força Aérea. E o rapaz tem direito de pensar se quer ou não casar-se com alguém que trabalhe na Força Aérea. Se achar que não vai aceitar, que a vida vai ser um inferno, é melhor não se casar.

IA: A Luísa, o Luís e os amigos vão para casa e discutem o assunto com a família. Todos estão dispostos a pensar sobre esta questão, mas cada um vive num contexto familiar diferente, que nós pretendemos que sejam exemplos de contexto social. A nossa intenção é ajudar os leitores a equacionarem vários aspectos, a terem em conta várias perspectivas, a não se ficarem pelo que conhecem.

A Luísa é inspirada na sua experiência?
IA: Não. É inspirada numa amiga, que é coronel da Força Aérea. É uma pessoa com uma carreira militar brilhante, que nos ajudou bastante com uma conversa sobre a sua vida. A Força Aérea admite mulheres desde 1990, mas não é uma opção comum.

A segregação por sexos no mercado de trabalho continua acentuada. É diminuta a presença de mulheres nas forças armadas ou nas tecnologias da informação e é diminuta a presença de homens na enfermagem ou na educação para a infância, por exemplo. O que vos levou a aceitar este desafio?
IA: É um tema que nos é caro, a igualdade. Foi um desafio que a Imprensa Nacional Casa da Moeda nos fez. Falou-nos do iGen. Reunimos. Ficou claro que íamos trabalhar o tema da igualdade nas profissões. Já tínhamos feito um livro digital sobre o tema. Quisemos dar o nosso contributo. A igualdade não existe ainda. A primeira coisa a fazer para conseguir melhorar a situação é ter consciência disso. Achamos que este tema trabalhado cedo na vida ajuda a ter melhor consciência das questões em jogo e a pensar de uma forma mais aberta no futuro profissional.

AMM: Interessa-nos o tema, mas também nos diverte. Como escrevemos para um público mais infantil, é divertido de vez em quando fazer um livro dirigido a um público mais juvenil, que nos obriga a escrever de outra maneira.

IA: Este livro é também pensado para os nossos colegas que dão aulas de Educação para a Cidadania. É um recurso que podem usar. Portanto, é um livro que pode ser lido directamente, mas também pode ser usado para gerar debate entre jovens com a moderação de um adulto. Nunca serve falar do assunto em abstracto. Tem que se debater, de se fazer pensar, para que as coisas se tornem claras.

AMM: A ficção ajuda em qualquer debate. A informação só por si pode ser muito seca e as pessoas desligam. Se houver uma ficção, as pessoas ganham simpatia por esta ou aquela personagem. Facilita. E nós adoramos inventar personagens e inventar histórias.