Vasco Ramos, in Público on-line
Os seres humanos têm um sem-número de formas de comer e de organizar as suas práticas alimentares. Nunca como hoje tiveram ao seu dispor tantos alimentos e tanta informação sobre o que comer. Persistem sérios problemas de acesso a uma alimentação condigna, em boa parte do mundo, sobretudo na África e na América do Sul, e também entre nós. Mas em que medida a condição de omnívoro contribui para a angústia face às escolhas alimentares?
“Não comas isso que engorda”; “Li na Internet que se deve comer frutos vermelhos para evitar o cancro”; “Deixei de beber leite, ouvi um médico na TV a dizer que faz mal”; “Sabes que fazer jejum é a melhor forma de perder peso?”. Escutam-se e leem-se afirmações deste género com frequência. É provável que nós próprios também dêmos conselhos deste tipo, de forma casual, à volta de uma mesa. Na maior parte das vezes, sem que alguém os solicite. Mas em que medida é isso problemático? Haverá quem não goste de comer e falar sobre comida? Entre nós serão uma minoria. Em Portugal até se usa a expressão “tem boa boca” para descrever quem sabemos gostar de tudo. E tendemos a olhar de soslaio para quem se manifesta indiferente à comida.
A minha área de investigação sociológica são as famílias e a evolução das práticas alimentares ao longo do percurso de vida, um campo de práticas em permanente mudança, tanto na forma como no conteúdo, e um tema de constante debate. Tanto no espaço público como na vida privada, estes assuntos são abordados sob pontos de vista diferentes, da nutrição ao prazer sensorial ou da estética do corpo à identidade familiar e nacional. Se somos o que comemos, o que dizemos sobre a alimentação reflete as preocupações do nosso tempo.
A alimentação: um campo de práticas contestadas
São comuns as observações em relação ao modo e ao local onde se come. Como reagimos a relatos de famílias ou pessoas que fazem as refeições de tabuleiro sobre as pernas, diante um ecrã de TV ou computador? No contexto cultural português, como na generalidade dos países da Europa do Sul, a rotina do tabuleiro parece ser um ataque a duas instituições irmãs, a família e a mesa. É sinal de que não se está com o resto da família à mesa. Em termos sociológicos, é conhecida a centralidade da mesa na vida familiar. As noções de família evoluem, diversificam-se, assumem configurações diversas, desde a nuclear heterossexual, à de pessoas LGBT com crianças. Mas a mesa continua a ter um papel central no imaginário familiar.
A mesa é, por excelência, um lugar da partilha e de comunhão, sendo também a arena onde as gerações se encontram, se transmitem conhecimentos e se resolvem conflitos. O papel da mesa permanece intocado em momentos de festa, em aniversários ou no Natal. Mas não será assim no dia-a-dia de todos os contextos familiares. Nalguns, come-se a correr. Não há tempo para as famílias se sentarem à mesa. São inúmeras as solicitações. Para certos observadores, a falta da partilha quotidiana da mesa é encarada como indicador avançado da dissolução de uma certa noção de família.
Em esferas mediáticas e no espaço público são também comuns os discursos que questionam a capacidade de as pessoas comerem de forma saudável e adequada às suas circunstâncias. Apregoa-se o declínio das habilidades culinárias. Ouve-se dizer que muitas pessoas já não sabem cozinhar e que se perdeu “aquela sabedoria antiga”, que permitia fazer maravilhas com poucos recursos. Algumas pessoas falam dos inúmeros aproveitamentos que se faziam de todas as partes do porco, das ervas do campo e da proverbial sardinha que tinha de ser esticada para alimentar a família inteira.
Afirmações deste género surgem por vezes em programas de prestigiados cozinheiros, enquanto recriam pratos antigos, em versões minimalistas, dispendiosas e irreconhecíveis. A frugalidade e o engenho de outrora não eram escolhas, nem eram praticados por todos. Eram estratégias de sobrevivência comuns sobretudo entre os mais pobres, formas e saberes desenvolvidos para lidar com a escassez.
Apesar da evolução das últimas décadas, a sociedade portuguesa continua a ser pobre e desigual. Segundo o INE, em 2019 22% da população encontrava-se em risco de pobreza e exclusão social. Dados do ano anterior (2018) indicavam que, mesmo após a contabilização dos apoios sociais, 17% da população ficava abaixo do limiar da pobreza (isto é, auferia menos de cerca de seis mil euros por ano). Segundo o Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física de 2017, 10% das famílias sofriam então de “insegurança alimentar”, isto é, tinham dificuldades em satisfazer as necessidades básicas.
Hoje, também já sob os efeitos da pandemia, as estratégias de sobrevivência persistem e reconfiguram-se. Fazem-se vários aproveitamentos de refeições pré-compradas, inventam-se novos pratos à base de ingredientes baratos, como o arroz ou a massa, obtêm-se alimentos através de circuitos de troca direta. Serão as estratégias de hoje valorizadas daqui a décadas? No contexto da pandemia e da crise que se instalou, é seguro que alguns destes problemas se estão a agudizar de forma severa. Aumentam os pedidos de ajuda alimentar de emergência às organizações não governamentais. Em bairros ou através da Internet organizam-se campanhas e criam-se cadeias de apoio informal. Mas sem uma intervenção determinada e consequente dos poderes públicos, é muito possível que o espectro da fome nos volte a assombrar.
Abundância, dúvida e ansiedades
Nunca como hoje foi tanta a disponibilidade de produtos alimentares. Estão por todo o lado, já prontos a comer, e não apenas em mercados, mercearias, super e hipermercados. Há produtos alimentares nas estações de serviço e de transporte público, nos quiosques, em máquinas de venda na rua. Através do telemóvel, estão acessíveis serviços de entrega de comida pronta, das mais variadas origens.
Nunca como hoje tivemos ao nosso dispor tanta informação acerca de alimentos, dietas, regimes, suplementos, bem como dos benefícios e dos malefícios de um sem-número de práticas alimentares. São inúmeras as fontes de informação, livros especializados, blogues, sites e programas de televisão.
Nos media e nas ruas das cidades, o marketing sobre comida está omnipresente e, por vezes, é ostensivo. Muitos produtos contêm informação nutricional nos rótulos, embora nem sempre fácil de decifrar. O Estado intervém através de recomendações de saúde pública em relação à quantidade de vezes que devemos comer alguns alimentos e regulando a quantidade de nutrientes (açúcar, sal) e aditivos. Há colunas de médicos e nutricionistas nos jornais e noutros media, assim como um bom número de revistas de culinária ou com secções sobre comida. Existem ainda aplicações de telemóvel que nos dizem como cozinhar, para além de guias especializados sobre restaurantes.
Em que medida a superabundância de produtos e de informação, bem como a dificuldade em discernir entre fontes, contribui para gerar ansiedade? Alguns especialistas falam da cacofonia dos discursos sobre alimentação e práticas alimentares. O problema torna-se ainda mais complexo quando pensamos que a alimentação é abordada sob ângulos difíceis de conciliar (por exemplo: a saúde ou o prazer; a inovação ou a tradição; o requinte ou a frugalidade). E nenhum discurso prescritivo sobre a alimentação tem autoridade para impor uma noção de verdade. As mensagens contraditórias semeiam confusão e dúvida. Uma ideia sobre os benefícios ou malefícios de um alimento ou de uma forma de comer pode ser desmentida algum tempo depois.
Entre os diversos acontecimentos que contribuem para o aumento da ansiedade com a alimentação estão as doenças que se transmitem entre animais e humanos (as denominadas doenças zoonóticas). Nas últimas três décadas, a atualidade foi pontuada por notícias relacionadas com crises desse género.
Recordemos o caso da epidemia de BSE, a doença das vacas loucas, que marcou o início dos anos 1990. Ou, já no início deste século, a descoberta de nitrofuranos (um antibiótico) na carne de unidades de produção de aves em Portugal e nos países europeus. Ainda em 2020, surgiram na Europa surtos de gripe aviária controlados com recurso a medidas de extermínio de populações de animais de consumo. E é possível que mesmo a pandemia de covid-19 tenha tido origem numa zoonose.
A curto prazo, estas situações levam à redução do consumo de certos produtos. Embora as mudanças nem sempre sejam duradouras, o efeito mais poderoso destes casos é contribuírem para adensar dúvidas e desconfianças, que se somam à vasta gama de suspeitas sobre a origem, composição e integridade dos alimentos.
Ansiedades com a alimentação num tempo de ansiedades
A história dos medos associados à alimentação remonta aos primórdios da humanidade, apesar da forte ressonância contemporânea do termo “segurança alimentar”. É seguro dizer que o medo da fome e da pobreza foi sempre motivo de ansiedade. Mas existem outras razões. Somos animais omnívoros e conseguimos sobreviver comendo alimentos diferentes, seguindo padrões alimentares distintos. Disso são exemplo as dietas que associamos às comunidades religiosas (o halal entre os muçulmanos ou o kosher entre os judeus, por exemplo) ou às populações de diferentes regiões do mundo.
Essas dietas começaram por ser moldadas pelo clima e pela localização geográfica, assim como pela riqueza da flora e da fauna local. Mas os padrões alimentares têm-se tornado cada mais variados. Para isso contribuíram os desenvolvimentos na agricultura e na indústria, as relações coloniais, a expansão do comércio internacional e até o alinhamento entre blocos geopolíticos e nações.
Até há pouco tempo, as dietas tradicionais — isto é, as receitas e os modos de comer passados de geração em geração — eram tidas como porto seguro. No presente, as desconfianças em relação aos alimentos têm levado muitos a buscar alternativas, que são hoje inúmeras, exigindo diferentes níveis de compromisso. Nas versões mais acessíveis, correspondem à tentativa de retorno aos saberes de outrora, aos apelos do “natural”, do “caseiro”, do “local”, do “biológico”. Para quem sofre de problemas específicos, há as dietas sem glúten, sem lactose, entre outras.
Outras opções são mais exigentes e complexas, implicando um redesenho integral do estilo de vida, seja por questões éticas ou estéticas. São disso exemplo o crudivorismo, o vegetarianismo, o veganismo ou a dieta paleolítica. Para os espíritos mais preocupados, estas alternativas prometem restituir alguma ordem e segurança às escolhas. As empresas de distribuição e os produtores também procuram apropriar-se destas dietas. São cada vez mais os produtos rotulados como “da dieta mediterrânea”, “biológicos” ou “vegan”. E o marketing procura capitalizar sobretudo entre os segmentos da população mais preocupados e atentos (por exemplo: jovens pais e mães).
Se a mencionada condição de omnívoro é vantajosa, por permitir que nos adaptemos a muitas formas de comer, ela tem uma contrapartida importante e inegociável: impõe-nos que escolhamos entre as opções disponíveis. Essa é a raiz mais profunda das angústias e das dúvidas. Aquilo que o sociólogo francês Claude Fischler denomina como “o paradoxo do omnívoro” é uma razão de natureza existencial, para muitas das incertezas em relação à alimentação.
A este paradoxo junta-se outra contradição: numa sociedade que se concebe como da escolha múltipla, muitos continuam a viver na angústia de ter algo para comer. Face à abundância de produtos, informação e discursos sobre o que comer, que sucesso terão estas alternativas no apaziguamento das ansiedades contemporâneas em relação à alimentação? É ainda muito cedo para dizer e a previsão do futuro não é uma competência forte entre cientistas sociais. O que é seguro é que continuaremos a falar muito sobre alimentação.
Sociólogo, ICS-ULisboa
Projeto de investigação Food in transition(s): changing food practices during critical life course transitions. Estuda como as práticas alimentares são aprendidas e se reconfiguram ao longo da vida, dando especial atenção aos momentos de transição. Financiado pela FCT (CEECIND/00864/2018/CP1541/CT0003)
Ciências Sociais em Público
O Instituto de Ciências Sociais (ICS) é uma escola da Universidade de Lisboa e um Laboratório Associado do Sistema Científico Nacional dedicado à investigação, aos estudos pós-graduados e à divulgação de ciência nas áreas de Antropologia, Ciência Política, Economia, Geografia, História, Psicologia Social e Sociologia (www.ics.ulisboa.pt). Durante um ano, todos os domingos, investigadoras e investigadores com diferentes formações, idades e percursos académicos partilham o seu trabalho com os leitores do P2.