15.3.21

Pandemia nos lares de acolhimento: “Os meninos foram mesmo uns heróis”

Carolina Bento e Nuno Ferreira Santos, in Público on-line

A covid-19 tem sido uma realidade à qual instituições de acolhimento de crianças e jovens por todo o país tiveram de se adaptar. Face ao primeiro confinamento, a gestão tem sido mais fácil, mas ainda existem desafios.

Abrem-se as portas do Lar de Santo António, em Santarém. Uma menina de sete anos tenta dizer a palavra “turma” com a ajuda de Sandra Polho, a directora técnica, que vai soletrando as sílabas. “Estou no segundo ano, mas ainda tenho de aprender matéria do primeiro”, queixa-se a criança.

Há um ano que as turmas nunca mais foram as mesmas. Nas instituições de acolhimento de crianças e jovens, espaços de reuniões transformaram-se em salas de aula e funcionários tornaram-se professores.

As crianças da Casa Pia estão cansadas do ensino à distância, mas algumas meninas da Fundação Luiza Andaluz sentem-se “protegidas” atrás das câmaras dos computadores. Enquanto a resposta urgente não chegou à Casa do Gaiato, a comunidade uniu-se para ajudar a Casa dos Rapazes.

O Lar de Santo António é um dos 216 em Portugal que se reajustaram a uma nova realidade. A pandemia “tem sido desafios atrás de desafios” e a gestão do dia-a-dia tem “requerido um esforço muitíssimo grande”, afirma a dirigente Maria Emília Rufino.

Uma menina de quatro anos corre para Sandra Polho e acolhe-a num abraço apertado. A directora técnica ajusta-lhe a pequena máscara cor-de-rosa. Todos os meninos da instituição usam máscara. “Não somos uma família normal”, afirma Maria Emília Rufino.

Até ao momento, a instituição teve apenas três casos positivos de SARS-CoV-2 entre as crianças, todos assintomáticos. Os jovens foram colocados na ala de isolamento, uma parte do edifício com sala de estar, casa de banho e quatro quartos.

“Agora, todos os espaços são salas de aula”, diz a dirigente enquanto faz revista às divisões da casa. Há praticamente um computador em cada. Dada a falta de computadores com webcam para as 19 crianças acolhidas, a equipa administrativa e a direcção deram os seus. Os apoios das escolas da zona e o reaproveitamento dos materiais antigos existentes na instituição não chegavam.

“Temos uma promessa de apoio em equipamentos informáticos por parte da câmara municipal [de Santarém] que ainda não se concretizou, como não se chegou a concretizar a do ano passado. Se fossemos a contar do que veio do exterior, neste momento, não teríamos esta resposta”,afirma a directora técnica.

“Desde o primeiro confinamento que estamos a preparar um segundo confinamento”, refere, “têm sido desafios atrás de desafios”.

“Nenhuma casa [de acolhimento] tem pessoal a mais”

Na sala de estar feminina, as adolescentes residentes no Lar de Santo António vêem televisão e olham, distraídas, para os telemóveis. São 18h e o dia de aulas chegou ao fim. Duas funcionárias apoiam as meninas mais novas com os desenhos a lápis de cor. Outras técnicas andam de um lado para o outro à procura de crianças para tomar banho.

Às funções normais ligadas à manutenção das instituições, adicionou-se uma permanente vigilância e apoio nas salas de aula, principalmente aos alunos com necessidades educativas especiais e aos mais novos.

Para aliviar o excesso de trabalho sobre as equipas, algumas instituições recorreram ao apoio de voluntários. Há casos em que a ajuda vem do exterior, e outros em que o voluntariado vem de dentro da própria residência. Na Casa dos Rapazes, em Viana do Castelo, uma professora da direcção do lar voluntariou-se para apoiar um menino com necessidades educativas especiais, diz o presidente, Tiago Castro.

A equipa da casa dividiu-se em espelho para diminuir o risco de contágio. “Isto traz-nos dificuldades porque já não somos muitos e nenhuma casa tem pessoal a mais”, refere Helena Barros, directora técnica da mesma instituição.

Os técnicos dividem-se pelas salas de estudo, onde os alunos assistem às aulas a partir de um ecrã, para os vigiar e apoiar em qualquer falha técnica ou dúvida. Uma das maiores dificuldades em acompanhar o ensino à distância é a sobrecarga de trabalho escolar sobre os alunos, refere a directora técnica.

Para algumas crianças com necessidades educativas especiais, foi-lhes dada a possibilidade de continuarem com o ensino presencial nas escolas. Segundo o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, “foram divulgadas orientações conjuntas” com o Ministério da Educação “relativamente ao reinício das actividades lectivas, prevendo a possibilidade de integrar crianças vulneráveis a quem seja reconhecido maior benefício em integrar o regime de aulas presenciais”. Ainda assim, são poucos os casos das crianças que se deslocam todos os dias para a escola.

Para a Fundação Luiza Andaluz, um dos maiores desafios é reaprender matérias e compreender temas dos quais nunca ouviram falar, tentando apoiar as meninas da instituição, que frequentam desde o ensino pré-escolar e 1.º ciclo ao secundário regular e profissional.

“Temos uma equipa de colaboradores extraordinários”, refere a dirigente, lembrando-se particularmente de Novembro de 2020, em que a instituição registou “um número razoável” de casos positivos de covid-19. “Essa altura foi um bocadinho mais complexa, pelo facto de termos as aulas a funcionar e não poder haver contacto entre as meninas. Algumas ainda são crianças e, assim, há a tentação de passar para o outro lado e ir ter com as outras.”

O novo coronavírus também não poupou a Casa do Gaiato. “Em Janeiro, 17 funcionárias ausentaram-se ou por covid-19 ou por isolamento profiláctico. Quando estas crises se abatem, há muito menos recursos e não há possibilidade para muitas medidas que existem”, conta a directora da instituição.

“Eu pedi ajuda, mas ninguém respondeu, as brigadas de saúde estavam assoberbadas. Tivemos muita gente a fazer 16h, sem folgas, trabalhar semanas seguidas, mas foi possível assegurar este dia-a-dia”, recorda, “uma das minhas maiores angústias foi pensar que, se toda a gente ficasse doente, quem é que asseguraria… isto era angustiante ao ponto de eu andar com uma dor no peito”.

Uma maior “humanização” das medidas

É o final de sexta-feira no Lar de Santo António, dia das despedidas de fim-de-semana. Duas jovens, cujas famílias têm autorização de as receber, esperam junto à saída com as suas malas de viagem amarelas.

Contudo, em pandemia, esta rotina nem sempre se manteve. A adaptação tem sido mais fácil principalmente porque as crianças não estão impedidas de ver os familiares, como aconteceu até Maio de 2020.

Quando o primeiro confinamento geral foi decretado, há um ano, as idas a casa foram proibidas, tal como as visitas dos familiares às instituições. Esta regra apanhou todos de surpresa, especialmente as crianças. “Foi muito violento”, referem.

Na Casa do Gaiato, os rapazes não reagiram bem e geraram-se momentos de maior tensão e conflitos frequentes com os funcionários. “ [Os rapazes] sentiram-se presos”, houve “um clima muito pesado em termos de comportamentos agressivos, e foi muito difícil de gerir”, afirma a directora. “Fomos equiparados aos lares de idosos”, queixa-se a directora técnica do lar de Santo António.

No segundo confinamento, as crianças já foram a casa dos familiares e receberam visitas na instituição. No lar de Santo António, existe uma sala específica para os encontros familiares, mas, com a pandemia, as crianças ficam dentro da sala e a família mantém-se no exterior, comunicando através de uma rede.

Outra regra alterada obrigava o isolamento de 14 dias da criança recém-chegada ao lar, que reforçava o carácter já por si “traumático” de um dia que “todos os jovens lembram muito bem”, afirma a dirigente da Casa do Gaiato que, em Janeiro, recebeu uma criança infectada com covid-19 depois de a sua família ter sido hospitalizada com a doença.
“Pôr os jovens a mexer”

Para matar as saudades durante a proibição das visitas de familiares, a Casa do Gaiato organizou um itinerário de encontros na rua. “O dia 15 de Maio é o Dia da Família e nós sabíamos que estava a ser tão pesado para eles não verem a família há tanto tempo, que pegamos nas nossas carrinhas, pedimos aos pais para porem máscaras e todos foram ver a família nesse dia”, conta.

A Casa Pia fez desafios semanais para “pôr os jovens a mexer”: “Todas as quintas-feiras lançava-se o desafio” que consistia, por exemplo, na preparação de ementas, “e anunciava-se o vencedor” que, algumas vezes, ganhava um jantar ou, até, um tablet.

Já a equipa da Casa dos Rapazes apostou em técnicas de relaxamento através da meditação e yoga, que foram “um sucesso”, segundo a directora técnica. Actualmente “temos aulas de karaté online e eles aderem como se o mestre estivesse ali à frente. Acho que foi uma adaptação extraordinária”. “A capacidade de resistência e resiliência destes meninos é enorme. Eles conseguem o que eu acho que poucos conseguem. De facto, acho que é de louvar, acho que eles são uns heróis, mesmo”, reforça a directora técnica.

Ainda assim, para algumas meninas da Fundação Luiza Andaluz, o afastamento da escola teve “consequências positivas” para a sua auto-estima, porque as “salvaguardou” de situações de bullying e insegurança. A distância face a diferentes “estímulos” também fez com que alguns rapazes da Casa do Gaiato se focassem mais nos estudos e melhorassem as notas.

O ensino à distância já não é novidade para as crianças que “estão um bocadinho cansadas e desejosas de regressar à escola”. “Os miúdos foram fantásticos, nós nunca pensámos que fosse possível ter 15 jovens em casa”, afirma Cristina Salgueiro, presidente da Casa Pia.

Nestas “famílias muito grandes” tenta-se apoiar o máximo possível as crianças “como se fossem filhas”, refere a dirigente da Casa Pia: “Conseguimos transformar vidas. Os meninos chegam cá completamente perdidos, com a vida tão difícil que tiveram e, no fim do percurso, já estão adaptados socialmente e com a sua escolaridade conseguida. Nós dizemos-lhes que, se eles quiserem e acreditarem, conseguem, e, na realidade, conseguem”.

Sentada na cama do quarto que ocupou durante a maioria dos seus 19 anos, uma jovem olha para a janela, contemplando a vista das Portas do Sol, em Santarém, para onde o edifício do Lar de Santo António está virado. “Vou ter saudades deste quarto quando me for embora”, diz, com os olhos castanhos a brilhar.