15.3.21

Onde consigo morar com os meus rendimentos?

Luísa Pinto (texto), Rui Barros (dados e desenvolvimento), Loraine Vilches (desenvolvimento) e Gabriel Sousa (webdesign e ilustração), com Sílvia Jorge e Aitor Varea Oro, in Público on-line

O comportamento dos preços da habitação no país não afectou todo o território por igual, mas agravou as desigualdades socio-económicas, sobretudo nas grandes cidades. Começaram a ganhar força os movimentos de protesto e a mobilização pelo direito à habitação, mas há ainda muitos problemas que permanecem fora dos megafones dos activistas e longe dos holofotes mediáticos.

O aumento do preço da habitação que se fez sentir ao longo dos últimos anos teve impacto em todo o país – mas não afectou todos da mesma forma. Na primeira parte desta série, mostrámos como o aumento do preço da habitação elevou as taxas de esforço a níveis insustentáveis e como Portugal se destacou, pela negativa, dos restantes países europeus. Nesta segunda parte, vamos passar o território à lupa e mostrar o que as estatísticas do Eurostat não conseguem desvendar, isto é, a diversidade dos impactos consoante as geografias.

Nas grandes cidades do litoral, a escalada dos valores do mercado de habitação e o fenómeno da turistificação geraram uma espécie de tempestade perfeita, particularmente intensa quer nos centros urbanos, quer nas periferias. Aumentaram os processos de gentrificação e os despejos, redefinindo o lugar de cada um na cidade, em função, sobretudo, da sua capacidade económica. No interior do país, com menor densidade de ocupação e de cariz mais rural, foram os grandes incêndios de 2017 que tornaram evidente a urgência de repensar territorialmente o sector habitacional e as desigualdades estruturantes que reflecte, saindo da esfera e da especificidade das grandes cidades.

O ano de 2017 pode, aliás, ser encarado como um ano de charneira. Foi o ano em que foi publicado o parecer da relatora especial das Nações Unidas para a Habitação Condigna, a canadiana Leilani Farha, depois de uma visita a Portugal, entre os dias 5 e 13 de Dezembro. Foi o ano em que o Governo de Portugal criou a Secretaria de Estado da Habitação, um sinal de que o assunto passava a ser central. Foi também o ano em que o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) fez o primeiro levantamento nacional das necessidades habitacionais junto dos municípios. Apenas se consideraram as situações que cumpriam três critérios cumulativos: serem construções de grande precariedade habitacional; que precisassem de ser demolidas; e que fossem residência permanente dos agregados. Identificaram-se cerca de 26 mil casos de carência habitacional grave

Mas 2017 é ainda o ano em que se assumiu que o problema ia para lá das carências habitacionais graves: começava a ser evidente que o aumento dos preços no mercado privado de arrendamento não era compatível com o rendimento de grande parte das famílias. E já não se falava, então, apenas de barracas e núcleos degradados, de famílias sem rendimento, de habitação social. Começou a falar-se também de dificuldades no acesso à habitação de famílias com rendimentos — a chamada “classe média” — que, afinal, não tinham rendimentos suficientes para aceder à habitação aos preços que o mercado pedia.

A compra de casa continua a ser um importante recurso. Os juros historicamente baixos e os spreads praticados pelos bancos levaram a um aumento do número de créditos à habitação concedidos em plena pandemia. Segundo os dados do Banco de Portugal, em 2020 a banca concedeu 11,389 milhões de euros em crédito à habitação, um aumento de 7,25% face a 2019, e o valor mais alto desde 2008. Ainda assim, a compra de casa implica recursos próprios e estabilidade laboral e financeira que uma franja expressiva da população pode não conseguir suportar. O segmento do arrendamento será ainda o melhor termómetro para aferir a temperatura do mercado. E, neste aspecto, a febre tem continuado muito elevada.

O Instituto Nacional de Estatística (INE) começou a olhar para este assunto, registando dados sobre as vendas e os novos contratos de arrendamento. Em 2018, saíram as primeiras estatísticas relativas à habitação a nível local, certificando a existência de um problema e parte da sua extensão. Os dados expunham um cenário preocupante, marcado por fortes assimetrias regionais e territoriais, mas não só.

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Leaflet | © Map tiles de Carto, CC BY 3.0. Dados OpenStreetMap, ODbL
Fonte: MDT-CEAU-FAUP. Com o apoio de Bernardo Alves e João Costa

Nota: Os dados deste mapa reflectem a renda de mercado que, segundo o Programa de Arrendamento Acessível, teria um T2 tipo no segundo semestre de 2019 em cada município ou freguesia para o qual o INE disponibiliza dados. Este valor foi calculado considerando a mediana do preço por m2 dos novos contratos de arrendamento, a área bruta privativa e o “coeficiente de qualidade e conforto”.

Em termos de área foram consideradas as seguintes áreas:T0 - 35 m²; T1 - 52 m²; T2 - 72 m²; T3 - 91 m²; T4 - 105 m².

Já no chamado “coeficiente de qualidade e conforto”, foi considerada, em todos os casos, uma habitação não mobilada, com cozinha equipada, lugar de estacionamento, estado de conservação considerado “bom” e classe energética ‘C’. Os valores apresentados servem apenas como referência, uma vez que houve necessidade de fixar parte dos múltiplos factores que influenciam o valor final dentro deste programa.

A inacessibilidade das rendas

Em 2019, o Governo lançou o Programa de Arrendamento Acessível (PAA), dando benefícios fiscais aos proprietários que aceitassem disponibilizar os seus imóveis com rendas 20% abaixo do preço de mercado — esse valor era calculado pela mediana que, como referimos, é lançada pelo INE desde 2017. E, para exemplificar o alcance da proposta, simulou o caso de um proprietário de um T2 em Campo de Ourique, em Lisboa, com 95 metros quadrados, cozinha equipada e sem estacionamento. No mercado livre, a renda de referência desse T2 seria de 1228 euros e, no âmbito do PAA, desceria para os 982 euros, isto é, para poder beneficiar de isenções fiscais, deveria cobrar menos 246 euros de renda.

Vamos usar estes mesmos 95 metros quadrados, de um T2 com cozinha equipada e sem estacionamento (todos estes indicadores são importantes, porque influenciam o cálculo final da renda) e regressar ao ano de 2017, o tal ano de charneira. Procuramos perceber como evoluiu a dificuldade de acesso ao mercado de arrendamento entre 2017 e 2020, tendo por base o valor de mercado dos contratos assinados. E usando como exemplo um agregado mediano, apurado a partir dos dados relativos a 2018, percebemos que a mancha de “inacessibilidade” se foi alastrando pelo país.

Neste exercício sabemos que estamos a estudar uma situação que se aplica apenas a uma minoria: aqueles que estão à procura da primeira habitação, ou aos que se encontram no mercado de arrendamento em regime de renda livre e cujos contratos vão terminando. Mas é um exercício útil para perceber a capacidade que as famílias têm para aceder a um apartamento-tipo, a valores de mercado, calculados segundo os dados do INE e cumprindo os critérios do PAA. Procura-se representar uma situação considerada mediana, tanto no que toca às características da habitação, como aos rendimentos do agregado familiar.

Os mapas representam, a tons quentes, os territórios onde faltam meses de ordenado para pagar a renda — isto, se tivermos em conta uma taxa de esforço máxima de 35%, de referência internacional. Os tons frios representam os concelhos onde sobram meses de ordenado. Esses concelhos existem. Mas quem quer ir para lá morar?

De quantos salários preciso para arrendar um T2?

Comparação entre 2017 e 2020 do número de meses que é preciso trabalhar para além do valor mediano declarado no IRS em cada um dos concelhos, sobreposto ao traçado do edificado existente em Portugal Continental.
2017
2020


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Leaflet | Fonte: MDT-CEAU-FAUP. Com o apoio de Bernardo Alves e João Costa




Os níveis de rendimento importam – e muito. Os últimos dados publicados pelo Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério do Trabalho e da Segurança Social, referentes ao ano de 2018, indicam que o ganho médio de cada trabalhador no território continental era de 1170 euros; e que o ganho mediano era de 854 euros, ou seja, no território continental, metade dos trabalhadores por conta de outrem tinha como valor máximo de rendimento 854€ mensais, dos quais é necessário excluir as contribuições para a Segurança Social e IRS ou outros impostos. É fácil perceber a dificuldade em conciliar este nível de rendimentos com a subida das rendas registadas no mercado de arrendamento formal.

A análise dos dados recolhidos pela Rede Europeia Antipobreza (EAPN), a pedido do PÚBLICO, mostra que um adulto a viver sozinho não estará em situação de pobreza, caso receba o salário mínimo ou um rendimento próximo do ganho mediano nacional. Contudo, terá dificuldades em fazer face às despesas mensais, caso o custo com a habitação assuma proporções elevadas, como a dos novos contratos de arrendamento celebrados, por exemplo, em Lisboa. A situação torna-se mais precária quando (ou se) passar por situações de desemprego e instabilidade no mercado de trabalho.

A procura de alojamento em outros concelhos com rendas mais acessíveis pode ser uma decisão economicamente racional, mas inviável para algumas famílias. Como sublinha a EAPN, as mudanças de residência têm implicações não só na escola que os filhos frequentam, mas também nas redes de apoio existentes, mais importantes quanto mais precários forem os vínculos laborais — quando estão em causa horários de trabalho não conciliáveis com a localização e horário de funcionamento das escolas, creches e ATL.

Afinal de contas, para quem é a cidade?

Para perceber esta construção de um território progressivamente estratificado em função dos rendimentos, pode ser útil partir para outro exercício. Voltemos a olhar para os valores praticados nos novos contratos de arrendamento de 2017 e imaginemos que quem os assinou respeitou as recomendações internacionais, não investindo mais de 35% do seu ordenado na renda da casa. Os rendimentos necessários para alugar um T1 em Lisboa correspondiam, tendencialmente, aos tipificados pelo INE para “Especialistas das actividades intelectuais e científicas”, com um salário de 2100 euros.

Qual seria a margem negocial dos “Trabalhadores não qualificados”, a receber cerca de 60% menos? Neste caso, poderiam ter a sorte de encontrar uma casa abaixo do valor de mercado, mas possivelmente com impacto nas condições de habitabilidade e salubridade. Poderiam alugar ou partilhar um quarto com pessoas em circunstância idêntica, perdendo privacidade e autonomia. Poderiam viver em casa de um amigo ou familiar, em troca de um valor simbólico. Mas os aumentos, a cada semestre, dos valores dos contratos assinados indiciam uma possível saída para municípios limítrofes, onde o valor das rendas é, à partida, mais compatível com os seus rendimentos.

A possibilidade de viver ou não na cidade, próximo do local de trabalho, não é só uma questão de conforto ou comodidade. Dependendo das condições e circunstâncias em que se vive, também pode representar uma questão de saúde pública, como tornou evidente a pandemia de covid-19. Se o papel de quem esteve na linha da frente foi elogiado durante o primeiro confinamento, as suas condições de habitabilidade ficaram expostas quando, em Junho de 2020, se declarou o estado de calamidade em 19 freguesias contíguas da Área Metropolitana de Lisboa (AML). Nessa altura, um destaque do INE referia que “os residentes no território em estado de calamidade utilizam mais o transporte público” (mais do dobro do observado no restante território da AML) e que “o território em estado de calamidade apresenta um mercado de habitação menos valorizado”.

Um estudo recente realizado durante a pandemia (Agosto-Novembro de 2020) no Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território do ISCTE ( DINAMIA-ISCTE)), dedicado às mulheres que habitam em bairros degradados da AML, ajuda-nos a ilustrar as causas e consequências deste processo de exclusão residencial. O projecto “Como Ficar em Casa?”, coordenado pela investigadora Joana Pestana Lages, conta-nos o caso de mulheres como M., que um dia comprou uma casa através de um empréstimo bancário; ou de A. e C., que assinaram contratos de arrendamento, e a quem a perda do emprego e o fim dos subsídios de desemprego colocaram numa situação de incumprimento e sem alternativa no mercado formal de habitação.

O mercado formal geralmente exige fiador, dois meses de caução e a existência de contrato de trabalho. Estas condições são difíceis ou impossíveis de assegurar para uma parte das pessoas, empurradas para situações de precariedade extrema, como as que vivem em tendas ou abrigos improvisados, e para o mercado de arrendamento informal — à partida mais flexível, mas sem rede de protecção. As medidas de excepção decretadas durante a pandemia, nomeadamente os empréstimos sem juros concedidos pelo IHRU a quem tivesse dificuldade em pagar a renda, abrangeram muito poucos agregados — 748 famílias, no final de Dezembro. A secretária de Estado da Habitação, Marina Gonçalves, admitiu que a informalidade dos contratos afastou muita gente destes apoios.

Muitas vezes mães sozinhas, com filhos menores a cargo, parte das mulheres identificadas no projecto Como Ficar em Casa?, com trabalhos na sua maioria precários, acabam por ficar limitadas ao mercado de arrendamento informal, aos bairros ditos “de barracas” ou, em situações limite, à ocupação de uma casa do parque habitacional público ou privado. Neste estudo realizado a partir de uma perspectiva de género, ouviram-se os argumentos de quem acaba por ocupar uma habitação. No caso de M., sozinha e com dois filhos, num quadro de problemas de saúde (física e mental), e após mais de dez anos desde a primeira candidatura de apoio à habitação dirigida à Câmara Municipal de Lisboa, esta foi a única solução encontrada. Por um lado, a ocupação de fogos de habitação social expõe algumas fragilidades da resposta pública face à precariedade e vulnerabilidade habitacional, nomeadamente a existência de fogos municipais desocupados ao longo de anos. Por outro, cria uma disrupção no processo regulamentar e levanta questões de justiça e credibilização dos processos de atribuição de habitação a pessoas e famílias elegíveis para o efeito, frisa o estudo.
E como é viver fora das grandes cidades?

E, se sairmos das grandes cidades, o que encontramos no interior do país? O trabalho de reconstrução na zona centro, após os grandes incêndios de 2017 permite tirar algumas conclusões. Foi o que fez a cooperativa Trabalhar com os 99%, contratada pela Fundação Calouste Gulbenkian para fazer assessoria técnica ao Fundo Revita (que financiou os trabalhos de reconstrução). Pedimos a Tiago Mota Saraiva, fundador desta cooperativa, que enumerasse três prioridades de acção, face ao que encontrou no terreno. A primeira, o direito à arquitectura, que para muitos é sentida ainda como um luxo. “Todas as pessoas são sensíveis à qualidade do que é projectado no que vai muito além de matérias de gosto. Para que se cumpra este direito, também serão necessários técnicos que assumam a responsabilidade civil perante o projectado e a fiscalização do construído, garantindo a implementação de boas práticas e o cumprimento da legislação, que tantos ignoram por desconhecimento ou irresponsabilidade”, argumenta Mota Saraiva.

A exigência na qualificação da construção passa, assim, a ser a segunda prioridade. Entre 28 de Dezembro e 31 de Janeiro de 2021 houve um pico de mortalidade em Portugal. Foram 20 mil mortos, dos quais 5875 decorrentes da covid-19. No entanto, de acordo com o Instituto Ricardo Jorge, uma em cada quatro mortes explica-se pelo frio. Não é difícil imaginar que muitas destas mortes decorram de deficientes condições de habitação. “Dinheiro e tempo investido em bons projectos e em boa construção significa poupança a curto, médio e longo prazo”, defende o arquitecto, que dedica a sua vida profissional a estas questões, desde 2005. Chegamos, então, à terceira prioridade, que é “a participação e poder à cidadania”.

“Fora dos grandes centros urbanos, a maioria das pessoas vive com muitas barreiras de invisibilidade e de acesso à informação. Ouvir as pessoas e fazê-las ser actores da solução significa criação de postos de trabalho, novas respostas e mobilização. Construir processos de co-criação, cidadania e bottom-up [abordagem de baixo para cima] é o primeiro passo para contrariar as invisibilidades, promover a segurança, a solidariedade e a paz entre comunidades”, argumenta o arquitecto.

A mobilização pelo direito à habitação

A mobilização pelo direito à habitação vem assumindo uma maior importância. É indesmentível que há problemas um pouco por todo o país. Afinal, nunca se tinha cumprido aquilo que ficou na Constituição logo em 1976 — que a habitação é um direito universal. A primeira proposta de redacção da Lei de Bases da Habitação só havia de dar entrada no Parlamento em Abril de 2018.

Criar a Lei de Bases da Habitação foi inclusive uma das primeiras recomendações deixadas ao Governo português pela relatora especial das Nações Unidas. Evitar demolições e despejos, garantir a todos os moradores das “ilhas” uma habitação adequada e aumentar o parque de habitação social, subsidiada ou de arrendamento acessível, de forma a diminuir as listas de espera que existiam em vários municípios, foram outras recomendações importantes deixadas por Leilani Farha. No fundo, as recomendações das Nações Unidas insistiam na necessidade de aumentar os recursos disponíveis para o sector habitacional.

Para além destes actores técnicos e políticos a chamar a atenção para o assunto, a sociedade civil também se mobilizou de forma mais ou menos organizada e segundo diferentes sensibilidades. À Associação Habita, que desde 2012 luta pelo direito à habitação, juntaram-se outros colectivos, como o Morar em Lisboa, criado em 2017 no âmbito de uma carta aberta com vários subscritores — mais de 5000 —, ou como a Stop Despejos, mais voltada para a acção directa.

Uma das faces mais visíveis do protesto foi a chamada “Caravana pelo Direito à Habitação”, que percorreu vários municípios, de norte a sul — Amadora, Beja, Coimbra, Lisboa, Loures, Porto, São Miguel, Seixal — durante Setembro de 2017. Integrada por vários colectivos e associações locais, com públicos-alvo e campos de actuação diferentes, esta iniciativa pretendeu sobretudo contribuir para uma nova agenda política do Governo e autarquias.

“Há uma urgência em pensar colectivamente e de forma participada um direito essencial que pouca representação política tem tido”, escrevem no documento final que produziram os membros desta iniciativa. Integraram esta caravana a assembleia de moradores dos bairros 6 de Maio, Torre, Jamaika, Quinta da Fonte, mas também associações como a Habita, o Gestual, a Chão – Oficina de Etnografia Urbana ou o SOS Racismo, activistas e investigadores. “O levantamento dos problemas nesses territórios foi feito ouvindo a voz das populações residentes que têm sido esquecidas, ignoradas, excluídas durante as últimas décadas”, sustentam.


Os resultados da caravana no que respeita à discussão das políticas públicas de habitação destacam dois temas principais. Primeiro, “é evidente que as políticas de habitação foram historicamente, e continuam a ser, gravemente insuficientes, qualitativa e quantitativamente, para garantir o direito à habitação”. Segundo, “as várias políticas que se foram seguindo nunca foram estruturadas através de processos inclusivos com a participação das populações abrangidas. Até as políticas que tiveram como objectivo melhorar a situação das populações em condições habitacionais mais precárias [como o Programa Especial de Realojamento] foram sistematicamente estruturadas com metodologias tecnocráticas”.

A mensagem principal que a caravana lançou aos decisores políticos, e à sociedade em geral, “é que não é possível promover políticas de habitação sem ter em conta os desejos, aspirações, competências e saberes de todas as populações e todos os grupos sociais”.

O problema é como dar a palavra a todos estes anseios. Há situações de despejos, casos de carência habitacional, exemplos de indignidade que chegam às televisões e às páginas de jornais, muito por força da acção destes movimentos. Haverá, todavia, um muito maior número de casos e situações de que ninguém fala e de que poucos terão conhecimento.

Metodologias tecnocráticas à parte, o levantamento das necessidades habitacionais feito pelo IHRU ajuda a ter uma dimensão do problema. Percebeu-se, com este levantamento, que 74% do total das mais de 26 mil famílias a precisarem de ser realojadas se localizava nas áreas metropolitanas: na de Lisboa era necessário realojar 13.828 agregados; na do Porto 5222.

Mas este levantamento não dizia tudo. Aliás, não dizia nada sobre todas as outras carências e necessidades habitacionais que os municípios foram convocados a identificar nas respectivas Estratégias Locais de Habitação, documento prospectivo necessário para se poderem candidatar a financiamento público. Aos três critérios cumulativos considerados no levantamento do IHRU (serem construções de grande precariedade habitacional, que precisassem de ser demolidas e que fossem residência permanente dos agregados) somaram-se outros dois: as questões de sobrelotação e também as situações de inadequação habitacional e carência financeira. Apenas 11% dos municípios já submeteram as respectivas Estratégias Locais de Habitação, mas só estes cobrem já 98% das necessidades habitacionais identificadas pelo IHRU em 2018, revelando uma realidade para lá dos números.

Desencontros

Usar o exemplo de Évora pode ajudar a explicar porque é que os números dispararam, e o IHRU tem, afinal, um diagnóstico completamente ultrapassado. Aquando o levantamento, o município identificou 17 núcleos degradados onde residiam 153 famílias a realojar que cumpriam os três critérios cumulativos considerados (situações de precariedade, que implicassem demolições e fossem residência permanente). No entanto, quando avançou para a elaboração do Plano Local de Habitação, esse número multiplicou-se por oito e chegou aos 1336 agregados. “Procuramos identificar as carências habitacionais segundo uma perspectiva integrada, desde as graves carências habitacionais até às famílias que necessitam de uma habitação a custos acessíveis”, explica Susana Mourão, coordenadora da Unidade de Habitação e Reabilitação Urbana da Câmara Municipal de Évora.

O Plano de Habitação de Évora, elaborado para um horizonte de seis anos (2020-2026), encontrou 64 pessoas em situação vulnerável (sem-abrigo e vítimas de violência doméstica), 311 agregados inscritos para arrendamento apoiado; 242 agregados a residirem em bairros mistos (municipal e privado) em situações de insalubridade; dois bairros privados com insalubridade, “sobretudo associada à existência de coberturas de amianto”, onde residem quase 169 agregados; 230 famílias a viver em núcleos degradados (os chamados “pátios”); e ainda mais 320 famílias a residir em insalubridade habitacional.

“Em 2017 o desafio lançado pelo IHRU foi sobre as necessidades habitacionais de realojamento e não podemos confundir com o levantamento das carências habitacionais existentes. Neste sentido, as carências habitacionais de realojamento em 2017 foram de 157 e em 2019 as graves carências habitacionais foram de 1336”, resume Susana Mourão.

A maior parte dos municípios está agora a elaborar as suas Estratégias Locais de Habitação. E talvez ainda vá a tempo de incluir os casos que a pandemia de covid-19 veio evidenciar, exacerbando os problemas estruturais ao nível do acesso à habitação em Portugal. Para além das pessoas em situação de sem-abrigo ou a viver em cenários de forte precariedade habitacional, há ainda, e sempre, os problemas da classe média – isto é, famílias e agregados com rendimentos que já tinham dificuldade em encontrar uma habitação acessível antes da pandemia e que agora se vêem impossibilitadas de cobrir as despesas com a sua habitação (pagamento da renda ou do crédito bancário), em resultado dos layoff e da vaga de despedimentos.

Na terceira parte desta série, vamos passar do protesto à proposta. E perceber como é que a resposta pública se organizou, e mobilizou, para fazer face a um problema habitacional que ganha cada vez maiores dimensões.