24.3.21

Sem-abrigo na Baixa do Porto: “Não me lembro de ver tantos”

Isabel Paulo, Fernando Veludo (fotos), in Expresso

Agente Jorge Mendes retirou da rua seis pessoas. Padre Jardim é mentor do projeto inclusivo

No frio mês de dezembro, Agostinho Jardim Moreira, padre há quase meio século na Paróquia de São Nicolau e de Nossa Senhora da Vitória, viu chegar um, depois outro, e mais outro sem-abrigo à zona da Cordoaria, na Baixa do Porto. As portas e muros da antiga Cadeia da Relação da cidade, onde Camilo e Ana Plácito cumpriram pena pelo seu amor de perdição, tornaram-se a morada de ocasião de quem há anos ou meses perdeu a família, amigos, emprego. Sem laços, sem documentos, sem rendimentos ou com abonos mínimos são cada vez mais “os que ficam presos à rua, ao vício, condenados à sua sorte, se não houver quem ajude”.

Apesar de achar que a Igreja não devia fazer o que compete ao Estado, o padre da paróquia situada no coração do Porto e presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza, não conseguiu desviar os olhos da “nova realidade”, agudizada pela crise económica e social provocada pela pandemia. “Aqui, sempre houve pessoas sem-abrigo, mas não me lembro de ver tantos”. Inquieto, sem meios para acudir a quem dorme ao relento a dois passos da Igreja da Vitória, apelou à solidariedade do mundo do futebol e chegou a Jorge Mendes, seu conhecido e apoiante da Casa da Amizade, centro social que todos os dias serve 45 almoços e jantares a carenciados. “O Espírito Santo empurrou-me a pedir-lhe ajuda, depois de já ter oferecido 25 computadores a crianças em abril”, diz o pároco, revelando que o agente de Ronaldo se comprometeu de pronto “a pagar seis quartos” em pensões.

O pedido de ajuda estendeu-se à sociedade civil da cidade, que congrega de momento mais de 40 beneméritos que dão guarida a outros sete sem-abrigo em quartos que rodam, em média, €250/mês. “Cada um paga o que pode, sendo as doações geridas por nós”, refere o pároco, salientando que o programa em curso quer ir mais longe do que dar de comer e teto aos dez homens e três mulheres que aceitaram mudar de vida. Nem todos os sem-abrigo abordados pelo padre Jardim quiseram deixar a rua, como a Josefina, “uma senhora espanhola que teve medo de ser presa”, ou um homem do Carregal de Sal que recusou abandonar o seu banco do Jardim da Cordoaria, agora internado na Santa Casa de Vila do Conde. Jardim Moreira já acautelou ainda a colaboração de seis farmácias da Baixa, que mediante receita disponibilizam medicamentos gratuitos.

PÁRIAS NA CIDADE

A primeira etapa da equipa multidisciplinar que acompanha os até agora párias da Invicta — socióloga, psicóloga e assistente cultural — passa por garantir documentação a quem não a tem para acederem a cuidados de saúde e ao Rendimento Social de Inserção. “A maioria deles é invisível para a sociedade”, observa Joana Dias, que diz que sem ajuda “não conseguem fazer coisas tão simples como pedir o Cartão de Cidadão ou inscrever-se no Centro de Emprego”. O segundo passo para a integração, segundo a socióloga, é a conquista de confiança mútua , o terceiro resgatar-lhes a “autoestima perdida”. “Sentem-se marginalizados, receiam compromissos, temem falhar ou que lhes falhem”, alega Joana, que afirma ser “comum a desconfiança entre quem há muito perdeu a esperança”.

Voltar a ver a família e ter um emprego são os sonhos confessados dos 13 resgatados da rua pela mão do padre Jardim Moreira

Hábitos de higiene, disciplina de horários “são pequenos ganhos diários” da equipa que acompanha os 13 resgatados da rua. Nos primeiros contactos, foram questionados sobre “os seus sonhos e o que esperam fazer na vida” para se tornarem autónomos. “A degradação de alguns é impressionante, uns alcoólicos, outros toxicodependentes, agora em tratamento com metadona”, afirma o sacerdote, que lembra não ser coerente dizer-se que “se ama a Deus sem amar o próximo”. Reencontrar a família e ter um trabalho são os dois motivos confessos de quem quer “a mudar de vida”. É o caso de António Barbosa, 58 anos, natural da Ribeira, antigo trabalhador da construção civil, avesso a companhias desde que se separou da mulher há 27 anos. “Foi a minha desgraça”, desabafa. Mostra a foto da filha bebé, que reencontrou há três meses.“É linda! Procurou-me, mas tem vergonha de o pai ser arrumador”, confidencia o poeta, dois livros publicados, o último — “Um Ídolo no Paraíso” — em março de 2020. Gostaria de ser vigilante. No piso de cima da pensão Curious Morning, mora Joel, 32 anos, “ex-toxicodependente”. Deixou de estudar aos 13 anos, trabalhou na Irlanda, — “fazia chips para carros” —, voltou para Gaia, teve uma filha, a Tatiana, à guarda da avó. “Quero ter um emprego para a minha sogra me deixar ver a menina”, apela. Na Hospedaria Desportiva, Adelino, 40 anos, “muito religioso”, traz ao pescoço um terço e só pede a Deus “uma graça”: “Uma dentadura para voltar a sorrir. Sem dentes, ninguém me dá trabalho”.

NÚMEROS

7000
são as pessoas sem-abrigo em Portugal, a maioria homens, de acordo com o ENIPSSA (Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo)


€250
é o preço médio dos quartos pagos por mais de 40 beneméritos, entre os quais se contam Condé Pinto, da Irmandade de São João das Taipas e presidente executivo da Associação Portuguesa de Hotelaria, Restauração e Turismo, e a Aficionados Tauromáquicos do Norte


6
farmácias do Porto disponibilizam medicamentos gratuitos até €2000/ano