15.3.21

A pandemia veio revelar os esquecidos do sistema de protecção social

Sérgio Aníbal e Pedro Crisóstomo, in Público on-line

A pandemia revelou as falhas e os esquecimentos do sistema de protecção social. Para o futuro, algumas das medidas de emergência entretanto adoptadas podem servir de referência para as soluções que se têm de criar de forma permanente.

A recibos verdes, informais, com carreiras instáveis ou independentes. Foi preciso o choque repentino e generalizado da pandemia para que a fragilidade financeira destes trabalhadores perante crises ou simples contrariedades pessoais, já bem evidente no passado, passasse realmente a ser vista como um problema a resolver. Mas depois da resposta de emergência dada pelo sistema de protecção social nos últimos meses, através principalmente de medidas de carácter extraordinário e independente, fica a dúvida sobre como é que poderá no futuro estar mais preparado para enfrentar, de forma permanente, este problema. Agregação de apoios dispersos, mais incentivos à formalização das relações laborais ou atribuição de um rendimento mínimo universal são soluções possíveis.

Num cenário inédito de paragem da actividade económica, a principal medida adoptada para lidar com os impactos negativos sentidos no mercado de trabalho foi o chamado layoff simplificado: o reforço de uma medida já existente que garante às empresas o apoio do Estado para pagar parte do salário dos trabalhadores, evitando uma escalada maior do desemprego.

O problema é que essa medida, como outras do sistema de protecção social português, aplica-se essencialmente àqueles que contam com vínculos laborais estáveis e formais. De fora, ficam uma série de outros trabalhadores.

A responder no meio da crise

A dimensão do problema forçou o Governo a procurar, durante os meses seguintes, soluções para uma enorme variedade de situações. Isso foi feito, em larga medida, através de um método de tentativa e erro.

Quando, de súbito, em Março do ano passado, a Segurança Social foi chamada a acorrer à quebra de rendimentos dos trabalhadores que se viram obrigados a encerrar os estabelecimentos ou a parar a actividade por causa do primeiro confinamento, ficou à vista a dimensão da desprotecção social de muitos dos trabalhadores em situação de maior precariedade.



Aumentar

O Governo criou de imediato um apoio destinado a compensar a quebra de rendimento. Mas a realidade revelou-se mais complexa do que parecia à primeira vista. Muitos trabalhadores com descontos irregulares, isentos das contribuições ou trabalhadores não inscritos na Segurança Social começaram por estar excluídos, mas, a pouco e pouco, o Governo foi ajustando a prestação social e criando outros instrumentos de apoio em paralelo para alargar o universo de beneficiários — ao ponto de, no final de 2020, terem existido quatro apoios com esse mesmo propósito de compensar as quebras na facturação. Objectivo: “Não deixar ninguém para trás”, uma ideia que tanto a ministra do Trabalho como o Bloco de Esquerda foram repetindo ao longo do último ano.

As sucessivas alterações à lei são reveladoras da dificuldade em cobrir as várias situações padrão.

Tudo começou com a criação, em Março de 2020, de um instrumento chamado “Apoio extraordinário à redução da actividade económica de trabalhador independente”. Apesar de ser esse o objectivo, inicialmente só abrangia quem estivesse com uma “paragem total da sua actividade ou do sector. Deixava de fora trabalhadores com quebras de actividade, fosse de 50%, 70% ou 90%, o que levou à primeira emenda, para abarcar quem estava a enfrentar uma quebra na facturação a partir dos 40%.

Depois, foi preciso ir alargando o universo dos destinatários, para não abranger apenas quem tivesse três meses de descontos seguidos à Segurança Social, mas também quem tinha contribuições irregulares (seis meses de contribuições interpolados). No início de Maio, o Governo criou outros dois apoios, para incluir quem tinha aberto actividade há menos tempo ou quem era trabalhador informal. E, em Julho, nascia uma quarta prestação (com um valor fixo mensal de 438,81 euros), igualmente destinada aos trabalhadores não inscritos na Segurança Social, sem descontos, à margem do sistema.
Os sistemas de Segurança Social foram sendo formados ao longo de um século, mas sem estarem orientados para fazer face a catástrofesFernando Ribeiro Mendes

O principal apoio foi o primeiro. Abrangeu 183 mil trabalhadores independentes (e 60 mil sócios-gerentes). O último chegou a 31 trabalhadores, alguns dos quais poderiam já ter acedido ao primeiro, porque todos os apoios foram desenhados numa base temporária e, como o primeiro instrumento só podia ser concedido durante seis meses seguidos ou interpolados, alguns trabalhadores tiveram de requerer o último dos quatro instrumentos.

Este ano, o Governo deu um passo seguinte: agregar as várias situações-tipo numa só prestação, depois dividida em subgrupos de destinatários. Mais uma vez, foi definida numa base temporária, estando previsto que o apoio aos trabalhadores independentes dura, no máximo, seis meses (seguidos ou interpolados ao logo de todo o ano de 2020).

No caso dos trabalhadores independentes com quebra de actividade, esta nova prestação só é atribuída a quem cumpre a condição de recursos, isto é, se o rendimento do agregado familiar do trabalhador não superar, por adulto, um determinado montante, neste caso, o limiar de pobreza (501,16 euros mensais).


Como muitos trabalhadores corriam o risco de ficar de fora, o Governo acabou por voltar atrás e, em paralelo com esta nova prestação, decidiu reactivar os primeiros apoios de 2020 para quem está com a actividade parada.
Mais preparados no futuro

Esta sequência de medidas e emendas não foi, naturalmente, a forma ideal de dar um apoio rápido e eficaz a quem precisava dele de forma urgente, no meio da pandemia. Isto aconteceu, como explica Carlos Farinha Rodrigues, economista especializado nas questões da pobreza e desigualdade porque “os nossos mecanismos de protecção social, como os de outros países, têm ainda uma visão muito tradicional de trabalho”. “Havia muitos sectores não protegidos. Por isso é normal que algumas das medidas tomadas tiveram depois várias alterações, o que nem é necessariamente mau. A verdade é que tivemos aqui, mesmo com insuficiências e erros, uma vontade política de responder a estes sinais de crise”, afirma.


Fernando Ribeiro Mendes, por seu lado, assinala ainda que “os sistemas de Segurança Social foram sendo formados ao longo de um século, mas sem estarem orientados para fazer face a catástrofes”. “São sistemas para lidar com um tipo de risco com alguma previsibilidade. Para lidar com a velhice, com a invalidez, por exemplo. O que aconteceu está mais próximo de uma catástrofe natural, não há sistema de Segurança Social que possa estar pronto para reagir se houver um maremoto”, diz.

Este economista especializado na área da Segurança Social defende que, nestas circunstâncias, o que tem de haver é “uma capacidade de resposta do Estado”. “Onde as sociedades não têm Estados à altura, é que há problemas. No presente caso, em Portugal, pode-se questionar se se poderia ter ido mais longe, mas não bloqueámos por incapacidade total do Estado”, afirma.
Esta crise voltou a potenciar os nossos factores de pobreza e desigualdade. E revelou sectores da população que têm uma relação completamente informal com o mercado de trabalho e que ficaram sem rendimentoCarlos Farinha Rodrigues

Miguel Gouveia, professor na Universidade Católica, acha natural que o sistema não estivesse preparado para um choque deste tipo. "À partida, uma partilha de risco a nível de toda a população justificaria que os riscos fossem cobertos. A teoria é que as pessoas atingidas deveriam ter um mínimo, isto é uma rede de segurança, a qual seria dada pelo rendimento social de inserção, abonos de família, etc, em conjunto com subsídios de desemprego. Na prática, muitos que perderam rendimento não são empregados por conta de outrem e logo não têm direito a subsídio de desemprego, e os prazos de funcionamento e aceitação dos rendimentos mínimos e abonos de família não se coadunam com a emergência da situação”, explica, concluindo que as falhas no sistema de protecção social terão sido “sobretudo na velocidade e eventualmente na abrangência das medidas de protecção ad hoc”.

E para o futuro, aquilo que foram as medidas de emergências tomadas devem passar a ser permanentes? Para Farinha Rodrigues as medidas “devem servir de lição, certamente, mas temos de distinguir o que é situação de emergência daquilo que deve ser aproveitado para o futuro”, responde.

Para o professor do ISEG, um dos caminhos a seguir é a agregação de algumas das medidas tomadas, em linha com aquilo que está a ser feito com o Apoio Extraordinário ao Rendimento dos Trabalhadores. E dá um exemplo: “o Rendimento Social de Inserção é possível de compatibilizar com uma miríade de outras prestações”, diz, afirmando que, em contraponto, “no complemento solidário para os idosos já pode não fazer sentido estar a mexer porque é uma medida que está a funcionar bem”.

Carlos Farinha Rodrigues destaca contudo que qualquer reforço da cobertura tem de implicar trazer para dentro do sistema quem está actualmente fora do sistema. “Esta crise voltou a potenciar os nossos factores de pobreza e desigualdade. E revelou sectores da população que têm uma relação completamente informal com o mercado de trabalho e que ficaram sem rendimento. As medidas de emergência só farão sentido no futuro se essas pessoas passarem a contribuir”, defende.

Para que isso aconteça, este economista considera que é preciso “ganhar as pessoas para as vantagens de estarem dentro do sistema”. “Esta crise tornou muito evidente a necessidade de um Estado social”, afirma, assinalando contudo que, “em muitos casos, a informalidade e a precariedade não são uma opção: têm a ver a forma como funciona o mercado de trabalho.

Miguel Gouveia revela menos entusiasmo com a ideia de tornar permanentes as mudanças operadas em resposta a esta crise. “Eventuais crises graves no futuro poderão ser muito diferentes, pelo que não tenho a certeza que valha a pena fazer mudanças permanentes na protecção social em Portugal”, afirma, defendendo que “mais vale ficar com a ideia de ser necessário ter bons sistemas de informação e unidades de estudos nos ministérios com capacidade para criar ou adaptar políticas à altura das necessidades específicas em cada momento, uma tarefa muito facilitada pela integração europeia e pela aprendizagem com o que outros países fazem para lidar com problemas em comum”.


Fernando Ribeiro Mendes, por seu lado, assinala que a pandemia veio mostrar que, ao contrário do que se poderia pensar, “afinal estamos sujeitos a uma ameaça, que são as doenças contagiosas”. “Não são os nossos sistemas de segurança social, que estão adaptadas às doenças mais relacionadas com a idade, que podem responder a isto”, afirma. Uma resposta possível, defende, passa por ir “acumulando descontos em fundos especializados”, para enfrentar futuros períodos de confinamento. Esta contudo é uma solução que tem de ser discutida em grandes espaços económicos, como a União Europeia, “senão os pequenos países não têm hipóteses”.

Para além da forma como o sistema passa a cobrir as camadas da população agora desprotegidas, não se pode esquecer a possibilidade de os apoios que são dados serem, mesmo para aqueles que não são esquecidos, insuficientes em caso de crise. Um estudo realizado pela economista Catarina Midões revela que 21% das pessoas em Portugal, quando colocadas perante um cenário de perda do rendimento durante dois meses, não conseguem fazer face às suas despesas básicas com recurso às suas poupanças e ao rendimento com pensões. Se se acrescentar a isto o apoio de outras transferências sociais, este valor baixa, mas pouco, para 18%.

Estes indicadores mostram a reduzida generosidade do sistema de protecção social português extra-pensões. “Portugal tem um sistema que está muito concentrado nas pensões, os apoios sociais de inserção ou o apoio às famílias são baixos, o nosso sistema é frágil nesses segundos apoios”, diz a investigadora da Universidade de Veneza, que considera que “tentar aumentar a cobertura é importante, mas o principal problema é dos valores que são muito baixos”, algo que reconhece tem de ser conseguido com mais crescimento.
Para o sociólogo Elísio Estanque qualquer solução que possa ser discutida sobre o reforço dos mecanismos de apoio aos trabalhadores deve ter em conta o projecto global de recuperação da economia centrada numa “matriz de desenvolvimento” sustentável e de inovação

Outra possibilidade bastante debatida, um pouco por todo o mundo, para o futuro de um sistema de protecção social é a introdução de um rendimento mínimo universal. Neste caso, o problema da cobertura seria enfrentado, mas a dimensão dos recursos necessários para o fazer poderia, num cenário de pouca folga orçamental, tornar a tarefa difícil de passar à prática.

Para o sociólogo Elísio Estanque, investigador sobre desigualdades sociais, qualquer solução que possa ser discutida sobre o reforço dos mecanismos de apoio aos trabalhadores deve ter em conta o projecto global de recuperação da economia centrada numa “matriz de desenvolvimento” sustentável e de inovação, “para que as disponibilidades financeiras não se traduzam apenas em remediar as situações urgentes de consumo e de necessidades básicas, mas que haja mais apoios efectivos na criação de pequenos negócios e iniciativas”.

Para equacionar quais são as medidas de reforço das políticas e os mecanismos de contenção, diz Elísio Estanque, é preciso “saber de forma mais sistemática quais serão os impactos sociais desta crise e as repercussões no aumento do desemprego, encerramento de empresas e intensificação da pobreza”.

Como resolver este 31? Rendimento mínimo universal tem prós e contras


A possibilidade de introdução de um rendimento mínimo universal é uma das questões que mais discussão tem gerado entre os economistas em todo o mundo. Fernando Ribeiro Mendes está agora mais no campo dos seus defensores. Lembra que, no passado, foi “um entusiasta da contratualização dos mecanismos de protecção social, como o rendimento social de inserção”, mas que agora reconhece que esse “é um modelo que nunca deu uma resposta cabal”.

“Temos de ter um olhar diferente sobre isso, desligar os apoios dessas exigências. Começo a pensar que devemos começar a pensar numa resposta do tipo do rendimento mínimo universal. Não vou ao ponto de defender que devemos avançar já para isto, até porque não há estudos suficientes, mas devemos olhar para as experiências que têm vindo a ser feitas”, afirma, defendendo que “no fundo, estes apoios pontuais que foram dados às pessoas durante esta crise são uma réplica deste tipo de rendimento, prefiguram o que poderia ser um rendimento deste género”.

Uma medida deste tipo, contudo, tem algumas dificuldades de implementação. Catarina Midões, embora revele “alguma simpatia pela ideia”, afirma que apenas poderá ser passada à prática por um Estado com menos dificuldades económicas. “De outra forma, prioritizar quem tem menos é a melhor solução”, afirma.

Carlos Farinha Rodrigues também defende que o rendimento mínimo universal “é uma medida extremamente difícil de aplicar, até por que os custos orçamentais seriam dantescos”. ”Muitos dos actuais defensores vêem esta medida como um substituto do Estado social: isso para mim é uma má proposta, algo que ficou particularmente claro nesta crise", diz.

A hipótese de criar um rendimento mínimo universal, à semelhança do que tem sido discutido noutros países, diz, “pode ser uma mola para um arranque e um redireccionamento da economia”. Mas, avisa, deve ser acompanhada “de medidas formativas e de incentivo não apenas financeiros”, de uma “pedagogia de proximidade” junto das populações mais carentes, para que uma opção política destas não cause “divisões e clivagens ainda maiores entre aqueles que têm sido contribuintes activos e os que, não sendo contribuintes activos, podem beneficiar desse tipo de políticas”.

“Enquanto não houver uma recuperação dos sentimentos de esperança e de expectativa positiva em relação ao futuro da economia, é mais provável as populações acentuarem os seus sentimentos de frustração, de descontentamento e uma certa pulsão para protestar contra tudo e contra todos, é muito por aí que a extrema-direita tenta cavalgar para fortalecer as suas propostas e a sua retórica populista”, alerta o professor de Sociologia na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Estanque refere a necessidade de que essa estratégia “se traduza em bem-estar das populações”, ofereça “segurança mínima aos jovens qualificados, de quem se espera que tenham mais iniciativa na apresentação de projectos na componente de empreendedorismo”. Ao mesmo tempo, vinca, as soluções têm de ter em conta as “assimetrias em termos demográficos e de diferentes índices de competitividade das diferentes regiões do país”.