10.3.21

Precariedade, pluriactividade e desemprego dominam trabalho independente na Cultura

Inês Nadais, in Público on-line

Sete em cada dez profissionais independentes do sector trabalham exclusivamente por conta própria. Primeiros resultados do inquérito do Observatório Português das Actividades Culturais confirmam quadro laboral de instabilidade e incerteza, agravado pela pandemia.

Mais de sete em cada dez profissionais independentes da Cultura trabalham exclusivamente por conta própria, e desses quase quatro em cada dez correspondem ao típico perfil do trabalhador a recibo verde. Os resultados compilados no relatório Emprego cultural e perfis social e laboral, que sintetiza a primeira etapa do levantamento encomendado pela Direcção-Geral das Artes (DGArtes) ao Observatório Português das Actividades Culturais (OPAC), confirmam o já conhecido padrão de precariedade, informalidade e pluriactividade nesta área profissional, mas também outras tendências, como uma taxa de desemprego acima da média (17,2%), a elevada escolarização desta força de trabalho e ainda a sua concentração nos grandes centros urbanos, e em particular na Área Metropolitana de Lisboa.

Resultado de um inquérito por questionário em que participaram 1727 profissionais independentes — a que se seguirá, até ao final de Junho, uma fase de entrevistas a um conjunto alargado de trabalhadores —, os dados divulgados esta terça-feira pela equipa do Iscte-IUL coordenada por José Soares Neves indicam ainda que “a predominância do trabalho por conta própria conjuga-se com múltiplas formas de actividade laboral, quer na acumulação de diferentes prestações (por contra própria e de outrem, a tempo inteiro ou parcial, em diferentes áreas artísticas e no desempenho de diferentes funções), quer também nas modalidades de contratação e duração do trabalho (desde prestações recorrentes para um mesmo contratante até trabalho por projecto ou tarefas pontuais)”. Para a maioria dos inquiridos, sublinham os autores do relatório, estas características configuram “um quadro de precariedade e incerteza, situações em que a diversificação é um último recurso”.

O perfil mais comum entre os trabalhadores independentes considerados (38% da amostra) é claramente, aponta ainda o relatório, “o do trabalhador exclusivamente por conta própria como prestador de serviço sem contrato, ou seja, cujo acordo de trabalho é verbal, correspondendo tipicamente à imagem do trabalhador a ‘recibo verde’”. O trabalhador por conta própria com contrato de prestação de serviço — não confundir com contrato de trabalho — representa 13% dos inquiridos, ao passo que o pequeno empresário corresponde a 11% da amostra. Já entre os 28% de inquiridos que combinam trabalho por conta própria e por conta de outrem, 12% acumulam recibos verdes com contratos laborais a tempo parcial e os restantes 9% oscilam entre recibos verdes e contratos a tempo inteiro.

Outro dado que emerge deste relatório é a desproporcionada percentagem de desempregados entre os trabalhadores independentes da cultura (17,2%), e que, diz o OPAC, “resulta de um aumento pronunciado entre 2019 e 2020, decorrente da paragem da actividade aquando da primeira vaga pandémica”. Entre os dois anos considerados pelo estudo, “o indicador triplicou de 5% para 16%”, uma evolução que “contrasta fortemente com a variação da taxa mensal de desemprego da população activa durante o mesmo período, entre o mínimo de 6,1% (Julho de 2019 e o máximo de 7,9% (Agosto de 2020)”.

“Muitos dos inquiridos que indicam ter tido uma pronunciada quebra de actividade não se identificam como estando em situação de desemprego”, assinala, porém, a equipa coordenada por José Soares Neves, “o que sugere, por um lado, uma certa naturalização dos períodos de interrupção de actividade numa lógica de intermitência ‘normal’ do trabalho e, por outro, algum distanciamento face a mecanismos formais de enquadramento laboral (desde logo o acesso ao subsídio de desemprego)”. A condição de “desempregado em sentido estrito” — isto é, com acesso ao subsídio de desemprego e inscrição em centro de emprego — é por isso “residual na amostra”, representando apenas 3% dos inquiridos.

Confirmando os dados do Eurostat e do Instituto Nacional de Estatística acerca deste sector, o relatório aponta para a “elevadíssima qualificação escolar” dos profissionais da Cultura: 78% dos inquiridos pelo OPAC possuem grau de licenciatura ou superior. De resto, os dados agora divulgados, nota a equipa formada ainda por Rui Telmo Gomes, Maria João Lima e Joana Azevedo, são consentâneos com estudos anteriores sobre o emprego artístico e cultural, cujas características “o distinguem do emprego geral”: pluriemprego; predominância de auto-emprego/emprego independente e outras formas atípicas de emprego; ocupação a tempo parcial, irregular (ao projecto), ou intermitente; curta duração dos contratos de trabalho; fraca protecção social; incerteza quanto às perspectivas de carreira; e desigualdade acentuada entre rendimentos.
Áreas metropolitanas concentram

A pluriactividade é outra das tendências laborais do sector, com menos de um quarto dos inquiridos a referirem trabalhar numa única área e 55% a indicarem mais do que uma actividade profissional — tanto entre emergentes como entre consagrados. “O caso paradigmático de cruzamento encontra-se especialmente entre artes performativas e audiovisual; os trabalhadores com actividade simultânea nas duas áreas (e só nessas duas áreas) representam 18% da amostra”, conclui o relatório. Também a acumulação de funções é prevalecente: 59% dos profissionais independentes da cultura exercem três funções, ao passo que o exercício de uma função exclusiva corresponde a apenas 21%.

Em termos de género, a amostra revela-se equilibrada (50,4% de homens contra 47,2% de mulheres), mas as profissionais de cultura são mais jovens (77% têm menos de 44 anos, contra 64%) e mais escolarizadas (90% têm formação superior, contra 63%) do que os seus colegas do sexo masculino. O equilíbrio de género esbate-se em áreas como o audiovisual e multimédia, a mais masculinizada (60% de homens), e as artes visuais, a mais feminizada (56% de mulheres).

Geograficamente, “ressalta a já conhecida concentração em grandes centros urbanos, sendo os concelhos de Lisboa e Porto os mais representados (com 37% e 9% das respostas, respectivamente)”. A Área Metropolitana de Lisboa (56%) e a região Norte (20%) representam, no conjunto, mais de três quartos do emprego nesta área. De novo, há áreas em que a tendência para concentração é maior: 69% dos profissionais do ramo audiovisual e multimédia, 64% dos produtores e 61% dos técnicos trabalham na Grande Lisboa.

As artes performativas (e, entre elas, a música e o teatro) revelaram-se “claramente” o sector mais representado, reunindo mais de metade dos inquiridos (54%), seguindo-se-lhe o audiovisual e multimédia (18%) e as artes visuais (12%). “Como seria expectável num inquérito dirigido a trabalhadores independentes da cultura”, reconhecem os investigadores, predominam os trabalhadores do ramo artístico, “estando presentes em menor número inquiridos em domínios ligados ao património, aos arquivos e às bibliotecas”.

O Inquérito aos Profissionais Independentes das Artes e da Cultura, que se completará no final do primeiro semestre com as já referidas entrevistas alargadas (e cuja versão integral pode ser lida aqui), é o primeiro dos três módulos do Estudo Sector Artístico e Cultural em Portugal encomendado no ano passado pela DGArtes, na sequência dos protestos de um sector cuja precariedade crónica o tornou especialmente vulnerável ao impacto da pandemia. Seguir-se-ão um levantamento de indicadores sobre os apoios financeiros às artes e, finalmente, o Atlas Artístico e Cultural de Portugal. Paralelamente, a ministra da Cultura comprometeu-se entretanto a fazer aprovar um estatuto profissional para os trabalhadores da cultura, instrumento reclamado há décadas e que, reiterou recentemente Graça Fonseca em entrevista ao PÚBLICO, será levado ao Conselho de Ministros ainda este mês.