25.3.21

"Não sabemos a dimensão da crise social que aí vem"

Carlos Ferro, in DN

Rita Valadas assumiu a liderança da Cáritas Portuguesa em novembro do ano passado. Foi o regresso a uma instituição onde esteve entre 2006 e 2011. E tal como dessa vez, o país enfrenta uma crise, agora pandémica. Chegar às pessoas e tentar evitar o aumento da pobreza é o grande desafio de uma situação social cuja dimensão ainda não se consegue perceber.

Quando tomou posse [a 15 de novembro do ano passado] disse que este era um serviço às Cáritas Diocesanas. Neste período que vivemos, as responsabilidades de que falou na altura são ainda maiores do que na sua primeira passagem pela direção da Cáritas [2006-2011]?
Eu não sei muito bem medir a proporcionalidade das responsabilidades porque estes lugares para que somos desafiados na vida são de exercício voluntário, mas com uma dimensão de serviço muito responsável. A complexidade deste momento é mais exigente, mas além da responsabilidade pessoal é uma responsabilidade para conseguir encontrar os melhores caminhos para não só sair desta crise como criar resiliência na rede. Da outra vez que estive na Cáritas já foi numa situação de crise, mas foi a anterior, e nessa altura fomos desafiados exatamente para a mesma coisa: criar programas alternativos, uma vez que a situação de crise social que vivíamos era uma crise que ultrapassava as exigências com quem de certa formam a Cáritas já conta. Enquanto agora não.

Há mais responsabilidades agora do que quando esteve na primeira vez na direção da Cáritas?
Agora não sabemos e a responsabilidade está aí, está em tentar encontrar soluções para problemas que não estão dentro da esfera da nossa ação mais normal. Claro que é uma missão, o exercício destes cargos de voluntariado é sempre uma missão, quando temos uma obrigação de acrescentar valor e encontrar soluções para o exército dos mais frágeis.

Esta crise tem uma dimensão diferente. Na anterior podiam estar junto das pessoas, agora há muito mais exigências sanitárias. Como se lida com esta situação?
É mesmo o maior desafio. É que estar mais próxima é o grande trunfo para a ação da Cáritas, não há nenhuma instituição que tenha a nossa capacidade porque nos fazemos próximos ao nível da Igreja, do bairro. É uma proximidade muito grande. Isso é o exercício que é feito pela rede em geral. O exercício desta proximidade é tão complexo para a Cáritas como é para as famílias. Nós temos de encontrar soluções alternativas para chegar aos mais frágeis que conhecemos e que estão no nosso radar, mas também encontrar aqueles que se escondem por trás de alguma vergonha, que estão numa situação para a qual não estavam preparados e aos quais nós também precisamos de dar maior atenção. As pessoas que se confrontam neste momento com esta situação crítica e não estavam para ela preparadas, aliás, ninguém estava, se se escondem são muito mais difíceis de encontrar.

Até porque a maior parte das pessoas ainda não tinha recuperado da crise anterior...
Entre as mesmas pessoas e outras diferentes. Logo que rebentou a crise tivemos um conjunto muito significativo de pessoas ligadas a negócios precários, como restauração, turismo, tuk-tuks em Lisboa, que de um dia para o outro deixaram de ter um sonho para viver um grande pesadelo. Viviam com o sonho de oportunidades do turismo que parecia não ter fim, pois Lisboa e Portugal estavam nas rotas turísticas mais importantes, e de repente foram obrigados a fechar a sua atividade. E esta atividade fazia-se do dia-a-dia e de uma construção ainda. Depois, de repente, não têm futuro, ou pelo menos assim à vista não se sabe o que vai acontecer. Primeiro eram 15 dias, depois quando se começa a perceber que a situação vai demorar muito mais do que isso, não são atividades reabilitáveis, não se faz este tipo de atividades ao postigo, quanto mais em completo confinamento. E essa situação acrescenta às pessoas que ainda estavam a tentar respirar da situação anterior e estariam a compor a sua vida de facto, um grupo enorme de pessoas sem solução perante o sonho que tinham. É também o caso da restauração, cheia de regras e contingências.

Quero acreditar que com o desconfinamento vamos ter uma consciência social diferente

E qual é a situação neste momento? O que enfrenta a Cáritas nestes dias de pandemia?
Não sabemos curar esta doença e também não sabemos curar o problema social que temos em mãos. E ainda não sabemos qual vai ser a dimensão total disto.

Um dos problemas que têm sido detetados é que muitas das pessoas que anteriormente estavam disponíveis para ajudar agora também precisam de ajuda. A rede de apoio também está a desaparecer?
Claro que sim. A rede de ajuda não desapareceu, mas quero acreditar que com o desconfinamento vamos ter uma consciência social diferente. Quero acreditar que as pessoas que ajudavam, estando tão próximas da consciência do que está a ser esta crise, também vão participar na solução dos problemas das pessoas mais vulneráveis e das famílias com mais dificuldades. Mas não sabemos o que vai acontecer. Sabemos é que, pela natureza das coisas, o que vai acontecer é que temos uma crise pandémica que ainda não conseguimos resolver. Veja a situação da vacina da AstraZeneca; é uma angústia permanente [vacina foi dada como segura pela Agência Europeia de Medicamentos na quinta-feira]. As pessoas já estavam para ser vacinadas e a pensar que iam conseguir retomar a sua vida. E ainda não se sabe o que vai acontecer nesta pandemia. É o total desconhecido em termos pandémicos e também da saúde dos portugueses.

Na sua opinião, vem aí mais uma crise para as famílias...
A situação a que obriga esta pandemia - o confinamento para que não haja um maior número de mortes e pessoas com défice de saúde - resulta numa crise económica que ainda está almofadada em algumas medidas do governo, como o lay-off, as moratórias, etc. No momento em que a situação realmente desconfinar e houver a possibilidade de retoma de algumas empresas, vamos perceber quais as que conseguem fazer a retoma e quais as que não. Se houver crise em algumas empresas, é possível que venha aí o desemprego e uma crise social. O desemprego, numa primeira fase, ainda vai poder beneficiar do subsídio. A crise social aparece sempre nisto na cauda, e às vezes escondida, por isso é que às vezes é muito difícil fazer a retoma social. A arrastar os que ficaram para trás.

O que se pode fazer?
Temos de tentar fazer que as pessoas que foram atropeladas por esta crise económica não engrossem o número dos pobres e tentar manter a situação de acompanhamento das pessoas que já eram acompanhadas. E depois, este movimento que temos de começar a fazer com seriedade, que é como conseguimos resiliência, como nos preparamos para crises que, pelos vistos, acabam por ser cada vez mais inesperadas e cada vez mais fortes. Temos de ver como criamos resiliência na rede Cáritas para podermos amparar estas situações.


O desafio é somar, somar, somar a favor dos mais vulneráveis

No meio de todas estas crises, como pode a Cáritas intervir mais e responder a todos esses desafios?
Essa é a minha angústia mais imediata. Foi isso que inspirou um movimento muito grande na rede social da Cáritas, porque nós tínhamos consciência de que tínhamos de trazer todos para bordo, que tínhamos de fazer o contacto com as empresas, mostrar como a rede Cáritas funciona em Portugal e até onde consegue chegar para que as empresas se inspirassem e fizessem este caminho connosco. Este foi mais um ano em que não conseguimos fazer o nosso peditório nacional e tivemos de o fazer online - foi mais um desafio, pois a maior parte das pessoas não está habituada a estes caminhos novos, uma coisa é dar uma moeda numa caixa que diz Cáritas, outra coisa é ter de tomar a iniciativa de ir ao multibanco, utilizar o MB Way ou ir à nossa plataforma e dar apoio. Fomos surpreendidos em toda a linha. Fomos surpreendidos com as pessoas que colaboraram connosco, fomos surpreendidos com os órgãos de comunicação social que fizeram imensas reportagens com as Cáritas Diocesanas e Paroquiais, e acredito que esse movimento não vai acabar, e é muito importante que não acabe para que as pessoas saibam onde podem procurar ajuda, e nós podemos, eventualmente, encontrar soluções para as situações únicas de cada um.


São desafios diários...
O desafio da criatividade é enorme, permanente e no terreno. E também no encorajamento que tivemos das pessoas que nos diziam "continuem", "avancem, vamos também ajudar-vos a encontrar caminho". E, enfim, é entre o desafio, alguma angústia, mas também uma enorme fé que vamos conseguir ultrapassar mais esta crise, mas tem de ser com a ajuda de todos. Não há nenhuma instituição em Portugal que consiga resolver a crise social que temos neste momento. O desafio é somar, somar, somar a favor dos mais vulneráveis.

Que retrato pode fazer dos pedidos que vos chegam: alimentos, ajudar a pagar as contas com que as famílias estão comprometidas, ou tudo isto junto?
É tudo, mas com impactos diferentes. Só para lhe dar uma espécie de fita do tempo, a primeira situação que tivemos de crise foi encontrar equipamentos de proteção individual (EPI) para a rede. As Cáritas Diocesanas não tinham orçamento - aliás, ninguém tinha em Portugal - para comprar a quantidade de EPI que foi necessária, o que, aliás, estourou com o mercado na primeira fase. As pessoas brincam com o papel higiénico, mas não sabem a angústia que é termos de gerir um lar de idosos e ter de oferecer proteção individual a todos os funcionários, no mínimo uma máscara por dia, mas certamente mais do que uma, luvas para trocar quando se tratar cada utente, batas especiais (pois não podem ser as batas que usam nos cuidados do dia-a-dia), lavagem de fardas diária. Foi todo um desafio inicial. A nossa primeira iniciativa foi preparar a rede [da Cáritas] para poder apoiar, senão íamos ter problemas logo ao principio, pois as pessoas ficavam logo todas doentes. As pessoas que apoiam os mais vulneráveis circulam por entre a saúde e a doença.

E a seguir?
A segunda situação foi tentar acompanhar a questão alimentar, e de duas maneiras. Curiosamente, os cabazes são mais fáceis de conseguir em algumas dioceses porque as pessoas têm consciência da crise e esta proximidade com a Cáritas ajuda a rede com donativos de géneros. As pessoas estão na mesma crise e é fácil quando se vai ao supermercado pensar que se pode deixar algo na igreja ou em algum local de recolha de bens. A informação local facilita algumas questões dos cabazes alimentares para famílias vulneráveis. Mas estas famílias, como há bocado dizia, que até nos ajudavam anteriormente, agora precisam de ajuda, têm alguma dificuldade em ir buscar cabazes. O que a Cáritas já tem feito, já na outra crise fez e agora reforçou, é a criação de tickets/vouchers restaurante que servem para usar nos supermercado para comprar alimentos de primeira necessidade. É completamente diferente. A nossa segunda iniciativa foi esta possibilidade de distribuir vouchers a determinadas famílias.

As pessoas estão na mesma crise e é fácil quando se vai ao supermercado pensar que se pode deixar algo na igreja ou em algum local de recolha de bens

Há uma outra iniciativa que a Cáritas tem implementado no terreno e que ajuda as famílias...
Na terceira fase criou-se um programa de intervenção que se chama Inverter a Curva da Pobreza [estratégia aprovada em junho do ano passado]. Começámos a ter situações de pessoas em risco ou com medo de perder a casa por não poderem pagar a renda, a luz, a água ou até as telecomunicações dos miúdos - que precisavam disso para a escola. Ou seja, o que numa situação normal seria visto como um bem de luxo passou a ser um bem de primeira necessidade, e ninguém estava preparado para o enfrentar. De repente, as pessoas ficaram todas em casa e a utilizar internet, mas não tinham condições para isso. Portanto, essa situação também nos apareceu, embora de facto 60% dos pedidos que recebemos tivessem que ver com as rendas de casa. E foi por isso que avançámos com esta situação. Vamos reunir o conselho geral e reavaliar tudo isto para perceber com que outro tipo de medidas vamos avançar.

"Santa Casa da Misericórdia substitui a Segurança Social em Lisboa"

Esteve vários anos na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Como foi a evolução do apoio social na cidade?
Eu tenho mais de 30 anos de intervenção da Santa Casa, sou uma mulher do terreno. Comecei a trabalhar no atendimento social em Setúbal e depois fui para a Santa Casa, onde fiz desenvolvimento comunitário, gestão de respostas sociais, apoios a IPSS... Diria que aquilo em que mais aprofundei o meu conhecimento foi na área do envelhecimento e na emergência social. E depois estive, como costumo dizer, administradora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa durante quatro anos e meio. Naturalmente, são situações completamente diferentes. A Santa Casa substitui a Segurança Social na cidade de Lisboa, tem aqui um papel completamente diferente de uma organização como a Cáritas. Para já, a Cáritas é nacional e a Santa Casa é concelhia; apesar de ter algumas iniciativas fora do concelho, é Lisboa que serve.

Há outra forma de organização e respostas?
Sendo uma organização privada, mas de interesse público, a Santa Casa é uma instituição que tem uma capacidade de alterar respostas, e nos vários desafios que tive na Santa Casa também foi isso que se tentou conseguir, de acordo com a conjuntura do momento. Ao contrário das IPPS e de outras instituições, a Santa Casa em Lisboa não tem obrigação de desenvolver só respostas tipificadas, por isso tem a possibilidade de se adaptar à realidade e desenvolver soluções para trabalhar um pouco na inovação social e encontrar novos caminhos para resolver situações. Não é de todo comparável uma situação com a outra. A intervenção técnica da Santa Casa tem uma proximidade também grande e programas de ação que vão sendo adaptados às situações, mas tem, quer do ponto de vista do orçamento quer em termos de responsabilidades, situações completamente diferentes. A Santa Casa é de facto obrigada a substituir o Estado na cidade de Lisboa.

Situação diferente da que se vive na Cáritas.
A Cáritas fá-lo numa missão robustecida por mais de 1500 colaboradores que tem no país. A Cáritas Portuguesa tem desses trabalhadores mais de 5000 voluntários. É este o "exército" da Cáritas que tem uma intervenção claramente para os mais frágeis e vulneráveis e um olhar para tentar encontrar soluções técnicas para amparar o futuro.

E acaba por substituir alguns dos serviços do Estado...
Não é essa a nossa responsabilidade. A nossa presunção é colocar as pessoas vulneráveis no centro, é ser serviço, não é organizar uma resposta. É pensar naquela pessoa e saber o que a pode ajudar a ter condições de vida. Não é uma prestação de resposta social, que é uma matriz mais organizada, eventualmente despida de um olhar individual e mais para uma oferta de serviços.


"Não sabemos a dimensão da crise social que aí vem"


Rita Valadas assumiu a liderança da Cáritas Portuguesa em novembro do ano passado. Foi o regresso a uma instituição onde esteve entre 2006 e 2011. E tal como dessa vez, o país enfrenta uma crise, agora pandémica. Chegar às pessoas e tentar evitar o aumento da pobreza é o grande desafio de uma situação social cuja dimensão ainda não se consegue perceber.