15.3.21

Associações detectam mais sem-abrigo em Lisboa e no Algarve. “Quero a minha vida de volta”

Cristiana Faria Moreira e Idálio Revez, in Público on-line

Valéria e José tiveram de deixar os quartos onde viviam porque perderam os empregos. Acabaram acolhidos nos centros de acolhimento de emergência da Câmara de Lisboa, que também admite que há mais gente a precisar de tecto. Eles mostram como, mesmo fazendo tudo certo, a vida se virou do avesso de um dia para o outro.

Chove muito lá fora e Valéria entra dentro da associação que a está a acolher de boné na cabeça e um blusão preto que lhe esconde o corpo franzino. “É com você a audiência?”, pergunta, despachada. Nos últimos meses, esta brasileira de 55 anos tem-se tornado numa espécie de porta-voz de quem, como ela, foi “vítima das circunstâncias”. De quem num ano se viu despojado da vida “normal” que tinha. De quem, de repente, se viu sem um tecto. Ela quer mostrar como, mesmo fazendo tudo certo, a vida se virou do avesso de um dia para o outro.

Valéria Celestino, brasileira de Minas Gerais, é copeira. Já lavou pratos, copos, taças, talheres — “assim loiça mais fina”, detalha — em hotéis de cinco estrelas e em cafés renomados da capital. Nos últimos meses de 2019, estava a trabalhar a recibos verdes numa daquelas empresas que servem refeições em cantinas. A 31 de Dezembro o contrato cessou. Ela fez-se à vida, abriu actividade nas Finanças, começou a trabalhar a recibos verdes. “A minha ideia era fazer umas horas num emprego aqui, outras ali, outras acolá. Aqui ganho 200, ali mais 200...” Daria para aguentar, mas, em meados de Março, o pior aconteceu: país fechou-se para conter a pandemia de covid-19.

Arrendava um quarto por 280 euros na zona dos Anjos na casa de uma senhora de 74 anos que “ficou com muito medo do vírus" e, por isso, lhe pediu que saísse. Em todo o caso, Valéria já não teria como continuar a pagar. “Comecei a ficar desesperada. Como ganhava à hora, não deu para ter uma reserva para ir arrendar outro quarto. Estava já a fechar tudo, ninguém contratava e eu a recibos verdes. Fui procurar ajuda à Santa Casa porque não teria como pagar o aluguer.”

Ligou para a Segurança Social e a assistente social do lado de lá da linha falou-lhe do centro de acolhimento de emergência que a Câmara de Lisboa se preparava para abrir no pavilhão municipal do Casal Vistoso. No dia 1 deste centro, a 18 de Março, Valéria estava lá à porta, como tantos outros, à procura de um lugar. Entrou. Escapou à dureza da rua.

Valéria é um daqueles exemplos de como não existe um perfil de pessoas a quem a rua pode acontecer. “Está naquele grupo de utentes que nós pensamos ‘como é que tu estás nesta situação’?”, diz Ana Nunes, psicóloga e coordenadora da equipa técnica de rua da Associação Vida Autónoma (AVA), que a está a acolher.

“É uma pessoa muito autónoma, nunca teve consumos, muito trabalhadora, dinâmica, proactiva. É daqueles casos em que é mesmo vítima das circunstâncias. Não foi nenhuma má decisão que ela tomou. Ela fez tudo bem e a vida correu-lhe mal na mesma”, diz.
Sem tecto em Lisboa

Ainda é cedo para perceber quantas pessoas foram empurradas pela pandemia para as ruas. As associações ouvidas pelo PÚBLICO, assim como a Câmara de Lisboa, admitem um aumento. “Se contabilizarmos o número de pessoas que estão nas respostas e que ainda estão na rua, nota-se este aumento”, enquadra Ana Nunes. Só na AVA, “uma resposta social ainda bastante pequena”, estão alojadas quatro pessoas que caíram nesta situação como efeito da pandemia. “São pessoas que dada a sua situação social muito frágil, precariedade no local de trabalho, ausência de uma rede de suporte social e familiar, acabaram numa situação de sem abrigo”, diz a psicóloga e presidente da associação, Rochele Kothe.

Segundo a última contagem da Câmara de Lisboa e da Santa Casa da Misericórdia, estão identificadas 356 pessoas em situação de sem tecto nas ruas da capital. A grande maioria são homens, com uma média de idades em torno dos 47 anos. Cerca de um terço são estrangeiros e 79 são provenientes de outros municípios portugueses. A contagem, realizada nos meses de Outubro e Novembro, revelou que, dessas 356 pessoas sem tecto, 140 tinham ido parar às ruas no último ano. Por isso, algumas serão já vítimas colaterais da covid-19.

Este número não inclui as pessoas que estão alojadas nos centros de acolhimento de emergência, em albergues ou noutros locais de acolhimento, ou seja, pessoas que estão sem casa, mas não pernoitam nas ruas. Segundo a última contagem do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) de Lisboa, estavam 2680 pessoas na condição de sem casa em 2019. Não há ainda dados relativos a 2020, diz a Câmara de Lisboa, mas admite-se que este número possa ser mais elevado, uma vez que aumentaram as respostas de acolhimento.

O município tem em funcionamento quatro centros de emergência que acolhem em permanência entre 200 a 220 pessoas. Além disso, há mais cerca de 600 pessoas sem abrigo que estão noutras respostas financiadas pelo município, onde se incluem as 226 que estão em alojamentos do programa Housing First.

Para Ana Nunes, os centros de emergência foram fundamentais neste contexto de pandemia. “Havia utentes que estavam assustados de estar na rua por causa do vírus. Felizmente há uma série de respostas para acolher estas pessoas. Se é suficiente para a quantidade de pessoas que temos nas ruas? Se calhar não”, admite a psicóloga.
A coragem de ir para a rua

Quando bares, discotecas e restaurantes fecharam, a vida de “José”, que pediu para não ser identificado com o nome verdadeiro, dilacerou-se por completo. Todos os espaços onde fazia dinheiro para poder manter-se fecharam a porta e este guitarrista viu-se sem alternativas: “Tive de ter essa coragem. De deixar a casa e ficar na rua.”

Vivia num quarto numa casa partilhada na margem Sul. Solução improvisada depois de uma separação que o deixou sem retaguarda. A senhoria deu-lhe 30 dias: se não conseguisse pagar a renda tinha de sair. Assim fez. “Entreguei a chave e pedi a uns vizinhos que guardassem as minhas coisas. Até a minha guitarra ficou com os meus filhos.”

Nesse impasse de não saber como seguir com a vida, falou com um amigo que já pernoitava na rua, na zona do Parque das Nações.

— Não vale a pena pensares duas vezes. Entrega a casa e vem ficar aqui ao pé de mim.

— O quê? Eu?

“Depois pensei ‘se ele está lá e não morreu eu também não vou morrer’. Um dia cheguei e disse-lhe ‘então onde é que eu vou ficar’?”

No primeiro dia, o amigo cedeu-lhe dois cobertores. Um dia, estava enrolado nas mantas junto ao Pavilhão de Portugal, quando um técnico das equipas de rua o reconheceu e, espantado, lhe perguntou o que estava ali a fazer. Pegou nele e levou-o para o pavilhão do Casal Vistoso. Dali foi para a Tapadinha e, depois, para a Pousada da Juventude do Parque das Nações.
Felizmente há uma série de respostas para acolher estas pessoas. Se é suficiente para a quantidade de pessoas que temos nas ruas? Se calhar não”Ana Nunes, psicóloga

Mais tarde, elementos da AVA, que o conheceram na Pousada, ligaram-lhe. Encontraram-se e mostraram-lhe umas chaves. Seriam do quarto que hoje ocupa na residência e onde está a ser acompanhado para que, assim que possível, recupere a sua autonomia.

José nasceu na Guiné, mas vive em Portugal desde 1997. Os filhos não sabem da sua situação. Não os quer “perturbar”. “Nunca disse nada a ninguém. Eu é que vou sempre visitá-los.”

O músico não esquece o tempo em que viveu nas ruas e ao amigo que primeiro o acolheu. “Tenho de agradecer à pessoa que me disse ‘anda e fica aqui ao pé de mim’. Às vezes vou à procura dele.”

A sobrevivência

Nos novos casos que chegam à rua, é importante que sejam sinalizados o mais rapidamente possível. “Depois de muito tempo na rua há características que são comuns às pessoas, mas é porque as ruas as moldam assim”, diz a psicóloga Ana Nunes. E, muitas vezes, nem sequer é preciso lá chegar: “Saber que se está na iminência de se ir para a rua já terá consequências nefastas para uma pessoa. Principalmente quem nunca esteve nesta situação e não tem qualquer comportamento de sobrevivência num ambiente de rua. Para sobreviver é preciso ser agressivo, ser manipulador, ser mentiroso, senão a pessoa não sobrevive neste ambiente.”

Valéria está em Portugal desde 2018, sempre a trabalhar por conta de outrem. Decidiu vir para Portugal, sozinha, depois de dois anos desempregada no Brasil. Se acima dos 50 anos não é fácil arranjar trabalho em Portugal, lá é ainda mais difícil. “Arrumei dinheiro emprestado e vim. Em dois meses estava a trabalhar num hotel de cinco estrelas.”

Valéria nunca passara – sequer imaginara – ver-se a dormir na rua. Quando chegou ao Casal Vistoso, sentiu-se “segura”. “Eu vi que ali tinha estrutura. No Brasil, se acontecesse isso comigo eu ia para debaixo da ponte.”

Fez voluntariado. Foi presidente da camarata das mulheres, representante nas assembleias que se fazem nos centros. Mas nada ali é fácil. Confrontou-se com uma realidade com que nunca contactara. “Quando eu cheguei no Casal Vistoso, eu conheci o outro lado da moeda. Querendo ou não, tive de me ir acostumando a ver certas coisas que nunca tinha visto. Venho de um país violento, mas nunca tinha tido contacto com heroína. Lá tinha drogados.”

Conviveu com pessoas que tinham 25 anos de rua e com pessoas que, como ela, ali estavam fruto de injustas circunstâncias. “Há pessoas que eu sei que não têm solução. Outras têm. Aí eu tenho de ajudar. Não quero perder ninguém.”
Casos disparam no Algarve

Em todo o país, os dados mais recentes, referentes a 2019, mostram que há cerca de 7100 pessoas em situação de sem abrigo, entre pessoas sem tecto e e sem casa, que são a maioria. Quase dois terços estão concentrados nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, mas também no Algarve.

Nesta região, o presidente do Movimento de Apoio à Problemática da Sida (MAPS), Fábio Simão, estima que o número ultrapasse os 700. Em Dezembro, estavam inscritos nos NPISA dos concelhos de Faro, Albufeira, Loulé, Lagos, Portimão, Tavira e Vila Real de St.º António 595 pessoas. Nos restantes nove municípios não existem dados oficiais, mas, sublinha o dirigente associativo, “os números estão todos os dias a subir”.

De repente, há muitas histórias de homens e mulheres que enfrentam grandes incertezas. Que têm de pensar se terão dinheiro para pagar a renda, se haverá comida naquele dia.

Em Quarteira, o responsável pelo refeitório social, António Cova, diz estar habituado a responder aos “muito casos sociais” de pessoas que chegam ao Algarve à procura de trabalho. Quando o turismo está em alta, não há crise que bata à porta. Quando terminam os contratos sazonais, resta a “Casa da Sopa”, o nome popular do refeitório. “A minha surpresa é o aumento de número e casos recentes. Estamos a dar cabazes alimentares a 91 famílias, mais 30% a 35% do que no início da pandemia.”

Há ano e meio que Manuel Nogueira, de 61 anos, faz parte do grupo das 106 pessoas que pernoitam nas ruas de Loulé. É costume que este ex-trabalhador da construção civil escolha como porto de abrigo as arcadas do antigo edifício do Hotel Quarteira Sol. Quando a GNR passa por lá, Manuel apressa-se a arrumar as trouxas e a “zarpar” dali. “Mas deixo tudo limpinho”, garante, enquanto acaba de tomar pequeno-almoço, com bolos e café, no refeitório social.

Também a delegação da Refood, em Faro, quase triplicou o número de refeições, desde o início da pandemia, diz a coordenadora Paula Matias, passando a ser 315 as pessoas que recorrem à ajuda alimentar. A classe média passou a ser dominante. De entre os contemplados, exemplifica, figura um jovem arquitecto que perdeu o emprego, uma enfermeira que trabalhava no privado e ficou sem trabalho. Da lista fazem ainda parte uma assistente social e dois estudantes universitários, um dos quais a frequentar mestrado.

Em Lisboa, o Centro de Apoio ao Sem-Abrigo (CASA) continua a servir cerca de 300 refeições por noite nas ruas. Muitos que ali acorrem são pessoas que pernoitam na rua, mas há também quem tenha casa e ali acorra. É aqui, nas pessoas ou famílias que têm casa, mas estão a passar graves dificuldades, que a associação tem notado um aumento de pedidos. “Nota-se um crescimento gradual das pessoas a aparecerem em determinados locais na rua a pedir alimentos”, diz Nuno Jardim, director desta associação.

Na noite em que o PÚBLICO acompanhou a equipa que percorreu as zonas do Saldanha, Avenida Mouzinho da Silveira e Praça da Alegria, foram servidas 117 refeições. Faltou para uma pessoa, mesmo depois de ter havido um reforço de 17 em relação ao inicialmente previsto. Os voluntários comentavam entre si que não se lembravam de terem servido tantas.

A fila de pessoas que ali se formava surpreendia os voluntários. “Nunca apanhámos este número de pessoas aqui”, diz André Correia, do CASA, na zona do Saldanha.

Há pessoas novas a aparecer. Imigrantes, trabalhadores em restaurantes que encerraram. “Os estrangeiros têm sido muito afectados. Fechar o restaurante não é apenas as pessoas ficarem sem emprego. Em muitos casos, eram o sítio onde comiam porque nos sítios onde vivem não têm condições para cozinhar”, exemplifica o responsável.

Quando Luisa Cabezas, de 27 anos, chegou a Lisboa há dois anos trazia consigo muitos sonhos de um “futuro melhor” do que aquele que a pequena cidade natal, na Colômbia, lhe poderia proporcionar. É joalheira, mas não conseguiu arranjar lugar nesse ofício na capital, por isso, dedicou-se às limpezas. Insegura com a língua, recorreu a um trabalho que não precisa de grandes conversas.

Luisa não está sem abrigo. Vive num quarto perto da Praça da Alegria, que lhe custa 250 euros, e que só tem suportado com a poupança que tem gerido. “Assim tenho sobrevivido este tempo todo.” Ficou desempregada no início da pandemia. As dificuldades são, por isso, mais que muitas e a refeição diária que o CASA lhe entrega sempre ajuda a gerir as contas.

Por agora, espera encontrar um trabalho nas limpezas ou num call-center que seja na sua língua. Deixar Lisboa não passa pelos planos. “Amo este país, esta cidade.” Leva uma refeição quente, pão, chá, iogurte, um bolo e faz-se ao caminho. “Nunca imaginei passar por algo assim. Ninguém esperava.”

Quem percorre as ruas teme o fecho dos centros de emergência, o fim das moratórias de empréstimos e rendas e um consequente aumento de pessoas nas ruas. “Não acho que existam respostas ainda estruturadas se houver um aumento grande. Se for algo exponencial pode ser muito complicado”, diz Nuno Jardim.
O que eu levo daqui é que eu não quero isso para mais ninguém. Não desejo nem para o meu pior inimigoValéria Celestino

A pandemia, diz a psicóloga Ana Nunes, veio tirar da sombra uma cidade e sociedade tantas vezes invisíveis. “É aqui que se nota que é preciso um investimento maior nesta área. Isto pode acontecer a qualquer um e temos de ter capacidade para ter respostas diferenciadas. O ideal é que ninguém fique na rua mais de 24 horas por falta de respostas.”

José espera sair dali para uma casa própria, “reorganizar a vida”. “Força de vontade tenho”, diz. “Quero gravar discos, tocar aqui, tocar ali.” Quando abrirem os restaurantes, abrir-se-á também a oportunidade de recuperar um bocadinho da normalidade e ir tocar para fazer algum dinheiro. E, finalmente, ir buscar a guitarra que guardou junto dos filhos.

Valéria está também a um passo da autonomia. “A única coisa que eu preciso para resolver o meu problema é um emprego. Mais nada. Já vou fazer um ano assim. Isso é vergonhoso para mim e para vocês. Como manter assim uma pessoa [em idade] activa dentro de um centro?”

A pandemia, assume, levou-lhe muita coisa e a vida que segue dentro de momentos será certamente guiada por uma “uma cabeça diferente”. “O que eu levo daqui é que eu não quero isso para mais ninguém. Não desejo nem para o meu pior inimigo. Pode escrever aí: Eu quero a minha vida de volta.”