Artur Osório Araújo, opinião, in JN
O que aconteceu antes e no decurso da pandemia indicia muitas fragilidades e erros no SNS. Porém, como dizia Jean Monnet, a crise é um catalisador de vontade política.
A dinâmica da sociedade criou, desde há anos, mais e diferentes necessidades de financiamento do SNS, dificilmente acomodável com o modelo expresso no Orçamento do Estado. Como efeito, os cuidados de saúde vão sendo cada vez mais financiados diretamente do bolso dos cidadãos. Um sistema que defende uma ampla universalidade aparece como aquele que, na Europa, as pessoas mais pagam diretamente do seu bolso para terem acesso a cuidados de saúde atempados e de qualidade, gerando desigualdades bem evidentes, mas embrulhadas numa retórica contraditória. Ao querer-se fazer do SNS uma ilha ideológica num "mar" onde impera o mercado, acabou, como é regra sociológica, por ter efeito contrário. O mercado está cada vez mais presente na Saúde.
Como componente do Sistema de Saúde, a hospitalização privada tem tido um crescimento exponencial, gerando forte afirmação e novas responsabilidades. Uma que me parece mais nuclear consiste na profissionalização dos seus quadros técnicos, que devem ser progressivamente próprios e não ligados em simultâneo ao SNS.
As perdas que a pandemia provocou vão ser um desafio que clama muito realismo.
A prevenção da doença, incluindo das pandemias, o viver saudável e um envelhecimento ativo terão de ser uma preocupação omnipresente em termos de Saúde Pública.
A organização do restante sistema de saúde, cuidados primários e hospitalares, passará por muitas transformações que em si constituirão uma reforma, que leve, entre outros, a novos modelos de financiamento, a seguros integrais de saúde, a aceitação do opting out, a novas autonomias. O atual conservadorismo sustenta muitos interesses, até divergentes, enquanto as mudanças incomodam.
Uma nova cultura fará com que a Saúde seja vista, não como uma despesa, mas um bem económico gerador de riqueza, reconfigurando as unidades prestadoras públicas e privadas, digitalizando-as e tornando-as mais ágeis e produtivas.
Dar poder ao doente é uma inevitabilidade, só possível com uma livre escolha informada e apoiada em novos modelos de financiamento.
Mais difícil vai ser mudar a prática política, com muita iliteracia, sem capacidade de previsão e planeamento e que utiliza a saúde como instrumento maquiavélico de chegar ou manter o poder.
Creio que, no futuro, iremos falar e praticar a saúde na base de um Sistema Nacional de Saúde e não somente de um Serviço Nacional de Saúde carente e defeituoso, mas necessário como baluarte de direitos e garantias.
*Médico e gestor hospitalar