O objectivo da fome zero em África em 2030 não vai acontecer e a luta contra a malária vai recuar uma década.
África poderá ter aguentado melhor do que se esperava o impacto da covid-19, mesmo tendo em conta a actual segunda vaga de infecções que se está a mostrar muito mais letal (2,5%) do que a média mundial (2,2%), segundo o Centro de Controlo de Doenças e Prevenção de Doenças africano. A pandemia enfraqueceu os já frágeis sistemas de saúde, o que poderá atrasar o já demorado processo de vacinação e provocar mazelas na luta contra outras doenças.
Segundo Jacques Attali, antigo conselheiro do presidente francês François Mitterrand, cuja consultora elaborou o relatório Africa Trend 2021, a pandemia vai fazer recuar uma década a luta contra a malária, acrescentando mais 100 mil mortes por ano a uma doença que já é uma das principais causas de letalidade em África.
“O continente deverá enfrentar surtos de doenças evitáveis pela vacinação, como poliomielite, sarampo e a febre-amarela, porque as campanhas de vacinação das crianças foram interrompidas, especialmente na Nigéria. Os acompanhamentos da tuberculose e do VIH foram quase totalmente abandonados, acrescentando entre 200 mil a 400 mil mortes suplementares em 2020”, explicou Attali à France Info.
O número de mortes de sida recuou em 2020 para níveis de 2008 em África: um milhão de mortos. As outras doenças evitáveis poderão também acrescentar um milhão de mortes em 2021.
O impacto económico no continente foi tremendo e o empobrecimento de populações, já de si a viver com dificuldades sem os constrangimentos da pandemia, tornou-se dramático. A crise da dívida estrangula a actividade dos Estados e ameaça a actividade económica, já de si diminuída pela falta de investimento estrangeiro directo, e na Europa temem-se novas vagas de migrantes desesperados em busca dos empregos que deixaram de existir nos seus países.
A primeira recessão no continente em 25 anos, segundo um relatório da Comissão Económica para África das Nações Unidas divulgado na terça-feira, travou a curva de desenvolvimento e a pobreza subiu pela primeira vez em décadas.
E a capacidade de recuperação do continente está ameaçada pela dificuldade de acesso a vacinas, como alertou a directora executiva do Fundo Monetário Internacional, Kristalina Georgieva: “O insuficiente e tardio fornecimento de vacinas na África subsariana irá prejudicar os esforços para pôr termo à pandemia, não apenas a nível regional, mas também à escala internacional, com repercussões negativas significativas para a situação sanitária, o crescimento e o comércio no resto do mundo”.
Na quarta-feira, Abebe Haile-Gabriel, representante para África da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, constatava o óbvio: o continente não está no caminho certo para atingir o objectivo da fome zero em 2030.
“Os resultados permanecem insatisfatórios e há muitos desafios devido às alterações climáticas, à fraca situação económica e aos impactos negativos da covid-19, assim como à falta de investimentos público”, explicou Haile-Gabriel, citado num comunicado Comissão Económica para África.
Daily Maverick Sizwe, de 15 anos, que com a irmã, Dumisani, de dez, mendigam nas ruas de Joanesburgo, sentem o impacto da pandemia no estômago. “No princípio, os assistentes sociais vinham à nossa casa com comida que nos sustentava durante um mês, mas essas visitas pararam, por isso, agora, temos de pedir nas ruas para, pelo menos, conseguir uma refeição todos os dias”, contava na semana passada ao site sul-africano
Mas pedir esmola tornou-se difícil na África do Sul. “Com as novas restrições da covid-19 em vigor, conseguir uma esmola de um transeunte é um milagre. Muitas vezes vou para a cama com fome”, explica Michael Malatsi de 66 anos.
E se isto acontece num dos mais seguros países em termos alimentares da África subsariana, é fácil imaginar o impacto em nações mais frágeis. “O movimento inicial de restrições (confinamento parcial e completo) imposto pelos países coincidiu com os períodos de plantação (importantes no calendário agrícola) para a maior parte das colheitas básicas na região”, escreveram Ayansina Ayanlade e Maren Radeny na Nature, e “é provável que venha a exacerbar os desafios da segurança alimentar em muitos países”.