João Campos Rodrigues, in i On-line
As condições de habitação em que vive a comunidade cigana viola tratados internacionais, diz o Conselho da Europa. O retrato é de um país com avanços nos direitos humanos, mas demasiado lentos.
Os mais recentes relatórios do Conselho da Europa traça um retrato negativo de Portugal, enquanto país que nunca desconstruíu o seu passado colonial, onde grande parte da comunidade cigana é mantida em “condições de habitação que não cumprem os padrões mínimos”, apesar de esforços em contrário, onde se saudam as medidas pela igualdade de género, ainda que os níveis de violência contra as mulheres se mantenham “alarmantemente elevados”.
Para Prudêncio Canhoto, a extensão da discriminação sofrida pelos ciganos portuguesa denunciada pelo relatório não é surpresa. “Vejo muita coisa, oiço muita coisa”, garante ao i o presidente da Associação dos Mediadores Ciganos de Portugal (AMEC), que participou na queixa coletiva que resultou no parecer do Conselho da Europa, que considerou que o Governo português está em violação da Carta Social Europeia.
“Isto são tudo problemas que a comunidade já identificara na altura da queixa, em 2011”, concorda Henrik Kristensen, membro do Comité Europeu dos Direitos Sociais, que elaborou o relatório. “E, apesar de algumas medidas tomadas pelo Governo português, o problema não foi resolvido até hoje”.
Aliás, o próprio Governo admitiu que, dentro da comunidade de 24 mil a 50 mil ciganos portugueses – o Conselho da Europa nota, com alguma estranheza, que as políticas públicas contra o racismo têm ser feitas com base em estimativas de investigadores, dado ainda não se recolher dados étnico-raciais em Portugal – 37% vivem em barracas.
“Muitas pessoas pertencentes às comunidades ciganas continuam a ser sujeitas a descriminação direta e indireta, continuam viver à margem da sociedade”, continuava o relatório do Conselho da Europa. “Muitas vezes em muito más condições, com menor esperança média de vida que o resto da população, com piores taxas de inscrição escolar, em particular no que toca a raparigas ciganas, e taxas de desemprego elevadas”.
Todos esses fatores estão relacionados, assegura Canhoto. “Neste momento, temos bairros de lata, bairros de lona, acampamentos sem condições algumas, que geram ainda mais discriminação”, considera o dirigente cigano. “Quem é que dá emprego a uma pessoa que vive num acampamento? E isso também afeta os miúdos na escola”.
Como se lê no relatório do Conselho da Europa, muitas famílias ciganas foram colocadas em habitações sociais fora dos centros urbanos, causando “segregação espacial” e “reforçando o estigma contra os ciganos entre a população local”. Sendo que, como muitas crianças são matriculadas na escola mais próxima, isso “levou à criação de ‘escolas ciganas’ na prática”.
Esse estigma, que tem séculos de história, é uma bola de neve, alerta Canhoto. “O cigano ao sentir isso na pele revolta-se, fecha-se, isola-se. E isso é um grande problema”, lamenta o mediador, que teve como profissão mediar conflitos numa escola em Beja, manter a cabeça fria quando famílias ciganas estavam prestes a perder a cabeça com a escola, e vice-versa. “Se formos amigos, e eu me fecho, você também se fecha”, exemplifica Canhoto. “Mas se eu me abro, você também se abre. Tem é que haver diálogo”.
Ainda assim, o Conselho da Europa não deixa de reconhecer alguns avanços da Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, até aos programas de habitação como o 1.º Direito. “Este é um problema extremamente difícil, é algo que não afeta apenas Portugal, mas também muitos Estados membros do Conselho da Europa”, salienta Kristensen. “O processo de o resolver o assunto é demorado, não algo que acontece de um dia para o outro“.
O mito da excecionalidade A ideia de Portugal como uma excepção no mundo, não como um país com problemas graves de racismo, como tantos outros, tornou-se ponto de disputa política nos últimos tempos – das marchas do Chega, de André Ventura, a gritar que “Portugal não é um país racista”, às declarações no mesmo sentido do líder do PSD, Rui Rio.
Talvez seja uma discussão de semântica, entre “ser um país com racismo” e ser “ser um país racista”. Mas, para quem tem de enfrentar essa realidade todos os dias, numa altura em que as queixas por descriminação racial aumentaram 50%, passando para 655 em 2020, essa é uma frustração permanente.
“Se um cigano do Porto faz mal a alguém, vou pagar eu que estou em Beja?”, desabafa o presidente da AMEC. “O que dizem é que foram ‘os ciganos’. Eu não faço mal a ninguém, mas sinto muita descriminação”, lamenta. “E quando me conhecem melhor, sabe o dizem? ‘Você já não é cigano’. Dizem que sou diferente”, revolta-se Canhoto. “Por ser diferente não sou cigano? Ei de ser cigano até morrer”.
Que o mito do “país de brandos costumes” não bata certo não é propriamente algo novo. A expressão, que já vem do séc. XIX, foi reaproveitada pelo Estado Novo, para “explicar que a colonização portuguesa nada tinha a ver com as suas congéneres europeias, tendo sido mais ‘branda’ e ‘amiga’ dos povos colonizados”, escreveu Fernando Pereira, professor de Lusofonia e Relações Internacionais na Universidade Lusófona, num artigo científico. O regime salarista queria fazer acreditar que povos colonizados estavam contentes, “não havendo por isso necessidade de lhes dar independência” – mas a história veio demonstrar o contrário.
Contudo, até essa história ficou por repensar, considerou o Conselho da Europa. “São necessários esforços adicionais para Portugal reconhecer violações de direitos humanos passadas”, e, como tal, “confrontar propensões racistas contra pessoas de ascendência africana, herdadas de um passado colonial e do comércio de escravos”.
A própria secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro, reconheceu as falhas apontadas pelo Conselho da Europa.
“São problemas que conhecemos”, explicou Monteiro à agência Lusa, nesta quarta-feira, descrevendo a questão da memória colonial como uma “ferida muito grave que não foi devidamente tratada e que cicatrizou deixada ao tempo”.