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As nossas cidades estão em crise. Temos de responder ao aumento da população urbanae das desigualdades e às alterações climáticas
Hoje começa a 10.ª Bienal das Cidades e dos Urbanistas, que se prolonga pelos dias 20 e 21 de Setembro. Cascais recebe oradores internacionais para falar sobre "Novos Paradigmas, Desafios e Oportunidades das Cidades Europeias; O contributo do Urbanismo para Superar Crise". O vice-presidente do Conselho Europeu de Urbanistas e director municipal da Câmara Municipal de Cascais, engenheiro João Teixeira, fala-nos de um momento em que estamos no meio de uma ponte e ainda não conseguimos visualisar a outra margem e o futuro das nossas cidades.
As cidades estão em crise?
Estão em crise no presente e esperemos que não estejam da mesma maneira no futuro. Fazemos esta 10.ª Bienal das Cidades e dos Urbanistas da Europa sobre o futuro das cidades para discutir os desafios que a crise nos coloca.
Quais são os traços fundamentais desta crise?
Vivem-se vários tipos de crise. Pode expressar-se com a degradação do centro populacional das cidades na Europa ou no Terceiro Mundo, a incapacidade de as grandes urbes acolherem os milhares de pessoas que aí acorrem diariamente. Para além disso verifica-se que as grandes metrópoles ainda não conseguiram adaptar-se às alterações tecnológicas, sociais, muitas vezes na própria estrutura familiar, que ocorreram entretanto.
O historiador Mike Davis assinalou este dado histórico: hoje, a maioria da população vive nas cidades. Como gerir esta situação? É necessário que as cidades consigam absorver cada vez mais gente ou uma política territorial que consiga um maior equilíbrio populacional?
Ao longo da história do urbanismo, esta tentativa de refrear a atractividade das grandes cidades já teve lugar com a criação das chamadas cidades novas. À volta, por exemplo, de capitais como Paris e Londres foram planeados e construídos um conjunto de cidades-satélite, mas o que se verificou é que essa política não teve o êxito desejado e tanto Londres como Paris continuaram a crescer. E isso aconteceu em países mais desenvolvidos, em que o urbanismo tem uma prática efectiva maior. Em países em que a prática executiva do urbanismo é menor, como o México e a Argentina, as grandes cidades cresceram de uma forma assustadora. Do meu ponto de vista, é preciso conseguir determinados equilíbrios, para isso é necessário implementar políticas regionais que dêem mais condições de vida fora das cidades e em outros pólos de de-senvolvimento. Numa altura em que todo o mundo sofre uma crise económica grave, tem de se fazer das fraquezas força. Por vezes, as novas oportunidades não vêm nos livros. É preciso pensar novas maneiras de fazer as coisas, percebendo que muitas das ideias que vêm nos manuais só foram suficientes na época em que essas obras foram escritas. Temos de ter abertura para experimentar novas tecnologias que tenham a preocupação de ser apropriadas aos locais em que vão ser utilizadas.
Na vossa declaração Espacial de Cascais inventariam práticas, valores e objectivos urbanísticos. Apontam como um dos princípios a equidade, e um dos desafios a prevenção das tensões sociais. Isso não é contraditório? Aqui em Cascais, a chamada prevenção das tensões sociais foi feita à conta de colocar os pobres muito longe da linha do mar e as pessoas abastadas perto da costa. Isso não é contraditório com o princípio da equidade?
Acho que devemos reflectir sobre o equilíbrio entre a equidade e a prevenção das tensões sociais tendo em consideração um outro grande desafio que é o equilíbrio nas decisões. Obviamente que colocando dez grandes princípios, dez práticas permanentes e dez grandes objectivos, temos aqui 30 orientações e, necessariamente, algumas delas podem ser conflituosas entre si. Temos de ter o bom senso de equilibrar, na prática, umas coisas com as outras. No que diz respeito a Cascais, foram recentemente enviadas para a administração central as alterações ao Plano Director Municipal (PDM). Foi objecto de parecer favorável e está agora em exposição pública. As pessoas podem consultá-lo, está no Centro Cultural de Cascais. Nesse PDM, um dos grandes pilares é a coesão territorial. Não é exactamente igual à equidade, mas tem traços e preocupações que são comuns. Nesse âmbito há um conjunto de medidas concretas no PDM para que a equidade seja maior e haja maior coesão territorial entre partes diferentes de Cascais que, por via da história, têm essas diferenças.
Mas apesar dos esforços da autarquia, verifica-se esta tendência de separar espacialmente os ricos dos pobres. Os bairros degradados que tinham vista para o mar foram substituídos por empreendimentos de luxo e os seus moradores foram expulsos para a periferia do concelho. Como é que a autarquia contraria esse processo?
Os terrenos tinham valor, valorizaram-se e quem os pôde adquirir fê-lo, e quem pôde ganhar algum dinheiro com a sua venda desfez-se deles. Isso é a força do mercado, mas como é que se evita a guetização? Primeiramente, apostando nas acessibilidades e mobilidade da população em termos de deslocação e transportes; depois, deve-se promover a mistura da população no conjunto dos empreendimentos habitacionais, conseguir colocar pessoas de camadas socioeconómicas diferentes nos mesmos locais. Isso dá bom resultado, mas é preciso uma prática permanente que incida num conjunto de medidas em termos de transportes, habitação e equipamentos em que, por exemplo, os melhores equipamentos não fiquem apenas numa área do concelho.
Como é que as autarquias podem conseguir isso, sabendo-se que a tendência natural do mercado é utilizar nessa distribuição um critério exclusivamente económico?
O mercado é, reconhecidamente, uma mola poderosa, mas as câmaras municipais têm de ter planeamento, e é aí que estão inseridos estes princípios que garantem que, não deixando de haver mercado, se possam combater os seus desvios mais negativos.
Um dos aspectos da equidade que não tem que ver com a distância ao mar, mas com a distância ao poder, é a participação das populações. Cascais é dos primeiros concelhos a usar os processos de orçamento participativo das populações, a exemplo de outras câmaras de sinal político contrário. Isto é uma experiência interessante do ponto de vista urbanístico?
Essas experiências, quer as do orçamento participativo quer práticas diárias de mobilização das populações para discutirem e entenderem o urbanismo, são componentes cada vez mais importantes. É a maneira de motivar as populações na defesa dos seus interesses e do sítio em que habitam e vivem. Veja-se o problema da segurança: hoje não é possível haver segurança só com o recurso à polícia, somos nós, cidadãos, que temos de participar na criação de condições para isso nos nossos bairros. Se estivermos desmotivados relativamente ao local em que vivemos, não exercemos devidamente a nossa cidadania e não conseguimos valorizar e proteger o local em que vivemos. Há muitos exemplos em que é fundamental ter a participação dos cidadãos na construção do urbanismo. Quer no orçamento participativo como em outras práticas, há metodologias que são usadas para motivar a participação dos munícipes. Isso é mais do que serem consultados quanto às propostas de um projecto, é serem parte das equipas que formulam esses mesmos projectos.
As alterações das tecnologias de informação e o advento da internet e das redes sociais modificaram o panorama da comunicação nas nossas sociedades. Como é que isso se reflecte no trabalho do urbanista?
Isso tem reflexos grandes até em áreas mais sensíveis, como a política: a Revolução Francesa demorou anos a construir, a revolução egípcia demorou horas... Enquanto uma fermentou no passar a palavra e em livros que demoravam muito tempo a imprimir, a outra desenvolveu-se com o recurso aos telemóveis e à comunicação mediada por computador. Do meu ponto de vista, a introdução das novas tecnologias de comunicação coloca o urbanismo na situação de trabalhar sempre ligado e online. O urbanista não pode ter tempo como antigamente, quando a vida não era acelerada, e hoje tem de responder à aceleração que a vida tem. Mas também tem um conjunto de instrumentos, como os computadores, que lhe permite mais facilmente diagnosticar e responder à informação. No fundo, a vida do urbanista torna-se tão rápida como é a vida moderna.
O que espera desta Bienal europeia?
Espero que haja um diálogo entre conferencistas e assistentes que permita analisar, equacionar e ajudar a resolver - o que são conceitos diferentes na sua profundidade - como é que hoje se deve intervir em termos do urbanismo. Hoje sabe--se quais são as tecnologias que vão estar ao nosso dispor nos próximos cinco anos. Até dez anos pode-se estimar grandes tendências; a mais de dez anos, é impossível. A nossa história mostra que muita gente conhecida se enganou redondamente com algumas previsões que fez.
Eu continuo a estar muito desiludido com a série "Espaço 1999". A única coisa que se confirmou foram os fatos de treino (risos).
Como é que nós, urbanistas, que estamos a intervir na cidade para 50 anos, 100 anos, podemos fazer? Sabendo que existe uma barreira de previsão, quais são os princípios que estabelecemos que podem ter continuidade e importância ao longo dessa distância temporal e que práticas permanentes devemos ter para criar cidades que possam absorver tanto populações como tecnologias e que tenham em consideração os grandes desafios que se colocam? Estes desafios são, essencialmente, o combate às alterações climáticas, o desafio energético e, na Europa, o grande envelhecimento da população e o aumento da esperança de vida - um aumento de esperança de vida com uma vida diferente da de hoje. É preciso também incorporar as alterações na família. Pela primeira vez na história, as famílias não habitam todas por baixo do mesmo telhado. Isso corresponde a alterações a nível social que têm de ser consideradas, como a diminuição do número de pessoas por habitação.
Com a crise não se verifica um processo inverso? Não há um aumento das habitações compartilhadas?
Isso verifica-se um pouco por todo o lado, tanto na Europa como nos Estados Unidos. A crise leva a este tipo de soluções. Agora depende de a crise ser provisória. Eventualmente, ela não é conjuntural e nós chamamos crise a um novo futuro que ainda não entendemos, porque vimos de uma situação melhor.