Ana Cristina Pereira, in Público on-line
Problema é recorrente, mas parece ter-se agravado com reajuste provocado pela pandemia e transferência de competências da Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares para as autarquias.
Maria da Luz Rodrigues ainda não sabe em que dia a filha mais nova poderá regressar à escola. Só na última sexta-feira o Agrupamento de Escolas de Águas Santas, na Maia, recebeu o aval do Ministério da Educação para contratar o transporte especial para alunos com deficiência. Só esta semana o concurso arrancou.
Se lhe bater à porta alguém da comissão de protecção de crianças e jovens, não hesitará: “A menina não vai à escola porque não tem transporte.” Para já, fica com ela. “Com esta coisa da covid-19, fiquei sem trabalho, mas quero arranjar trabalho. Em casa não dá. Além de ter esta menina, que fez agora 18 anos, tenho duas netas a meu cargo, uma de nove e outra de 11 anos.” O marido é jardineiro. “Não chega para tudo.”
O problema não é novo. E este ano parece ter piorado. A data da transferência de competências para as autarquias explicará o atraso nalguns agrupamentos, mas não onde o transporte de alunos com necessidades especiais continua a depender da Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares. Miguel Azevedo, do Movimento Cidadão Diferente, entidade que lançou o alerta, chama a atenção também nos ajustes necessários para o reinício do ano lectivo em tempo de pandemia. Tanta mudança pode ter levado a descuidar este aspecto.
O Ministério da Educação garante que o AE de Águas Santas foi o último a obter autorização para abrir concurso, mas não diz em quantos ainda decorre tal procedimento. Em causa, só ali, está o transporte de 26 crianças distribuídas por três unidades. Dez ainda não regressaram à escola, segundo Carlos Cardoso, adjunto da direcção. Os seus encarregados de educação não têm meio próprios para os levar, nem organização que os apoie.
Um sintoma de um problema mais geral
“Isto já devia estar resolvido antes”, insurge-se Maria da Luz. “Ao tempo que a escola devia ter resolvido isto. Não pensam nas pessoas que têm de trabalhar”, prossegue. “Tenho de cuidar da minha filha 24 sobre 24 horas sete dias por semana. Está há mais de seis meses em casa. Já nem sei para onde me virar.” No seu entender, este é um sintoma de um sistema que espera que pelo menos um encarregado de educação de uma criança com deficiência esteja excluído – total ou parcialmente – do mercado de trabalho. Como as prestações sociais são baixas, a pobreza avança.
Joaquina Teixeira, com um filho de 17 anos na mesma escola, faz o mesmo discurso. “Gravíssimo é que todos os anos este atraso acontece. Gravíssimo é não haver pessoas em número suficiente nestas unidades. Gravíssimo é estas unidades funcionarem das 9h às 16h. Gravíssimo é não haver resposta para estas crianças nas interrupções lectivas. É uma discriminação para com estas famílias. Alguém em casa vai ter de ficar sem trabalhar.”
Dirige um centro de desenvolvimento para crianças com défice cognitivo. Por estes dias, tem de chegar mais tarde por ter ido levar o filho e tem de sair mais cedo para ir buscar o filho. Vale que, por causa da pandemia, o marido continua em teletrabalho. O normal é pagarem a alguém que lhes fique com o filho enquanto estão a trabalhar. Não há, como no primeiro ciclo do ensino básico, componente de apoio à família. “Não há resposta. Os ATL não os querem receber.”
Escreveu à direcção do agrupamento, à Câmara da Maia, à Direcção-Geral de Estabelecimentos Escolares, à Comissão Nacional de Igualdade no Trabalho e no Emprego. Só obteve uma resposta. “Recebi um email sexta-feira, às 22h58 do director do agrupamento a informar que foi determinada a abertura do concurso para o transporte. O procedimento seria aberto esta segunda-feira, 11 dias depois de terem começado as aulas. Agora, há que seguir os trâmites legais do concurso que no mínimo demora 15 dias. Isto é gozar com estes pais.”
Necessidade obriga a encontrar estratégias
Há quem, como Filipa Nobre, residente em Sintra, tenha recorrido a terceiros. "Tenho de envolver o avô, porque o pai leva o carro e eu fico sem carro”, explica. Estando em teletrabalho, conseguiu fazer o filho chegar à escola de referência para crianças surdas, no Agrupamento de Escolas Quinta de Marrocos, em Lisboa. “Ele pode entrar às 8h na Componente de Apoio à Família. Eu consigo levá-lo e estar em casa a tempo de começar a trabalhar às 9h. Se estivesse no escritório, não conseguia estar às 8h na escola e às 9h no trabalho. Teria de negociar com a entidade patronal.”
Já aconteceu noutros anos. “Há dois anos, as aulas começaram em Setembro, os transportes em meados de Outubro. No ano passado, as aulas começaram em Setembro, os transportes no final de Setembro, mas com lacunas”, relata aquela mãe. Ao que explicou a directora, Ana Cristina Sério, um total de 78 crianças precisam daquele transporte para chegar à escola. Iam começar a contar com isso esta segunda-feira. E começaram, confirma Filipa Nobre.
“Temos uma ou outra situação resolvida, AE Diogo Cão (Vila Real), o AE da Quinta de Marrocos (Lisboa), AE de Queluz (Sintra)”, diz Miguel Azevedo. “As outras situações continuam iguais. O AE de Pedome (Vila Nova de Famalicão), o AE de Águas Santas (Maia), AE de Real (Braga), o AE Alberto Sampaio (Braga), o AE de Maximinos, o AE de Vila Verde. “A nossa preocupação, nestes casos, é a demora dos concursos públicos. Pode haver alguma impugnação, o que atrasa tudo”, salienta. “Estes processos têm de começar mais cedo. O Estado não pode dizer que quer uma escola escola inclusiva quando não prepara atempadamente o ano lectivo para que estes alunos comecem ao mesmo tempo que os outros”, prossegue. “Isto é um acto de exclusão.”