1.10.20

Os idosos devem poder deserdar quem os maltrata? Relatório defende que sim

Natália Faria, in Público on-line

A revisão do direito sucessório, de modo a permitir que um idoso possa deserdar um familiar que o abandonou ou que lhe inflija maus-tratos, é uma de 30 recomendações dirigidas ao Governo no relatório “Portugal mais Velho”. Outra passa por garantir benefícios fiscais e formação a quem cuida de idosos.

Numa altura em que os maus-tratos aos idosos assumem contornos graves por que não acautelar a possibilidade de os mais velhos deserdarem quem, sendo filho, neto ou bisneto, os maltrata? A revisão do direito sucessório, no sentido de permitir aos idosos uma maior liberdade na disposição dos seus bens, e assim acautelar os maus-tratos em contexto doméstico ou familiar, é uma das 30 recomendações constantes do relatório “Portugal Mais Velho”, que resulta de uma parceria entre a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima e a Fundação Gulbenkian e que é apresentado esta quinta-feira em que se assinala o Dia Internacional da Pessoa Idosa.

“O direito sucessório está construído para proteger as pessoas do agregado familiar e prevê a existência de uma ‘quota indisponível’, à luz da qual parte do património da pessoa que falece tem sempre que ser deixada aos seus descendentes e, quando não os haja, aos ascendentes. Na prática, um idoso maltratado por um filho tem sempre de lhe deixar parte do seu património, mesmo que não seja essa a sua vontade e mesmo que tenha havido uma situação de violência ou de abandono total. Alterar isto poderia ser uma resposta eficaz às situações de abandono”, sustentou ao PÚBLICO Marta Carmo, jurista, técnica de projecto da APAV e coordenadora do relatório em cujas linhas se inscreve também a proposta de criação de benefícios fiscais que promovam a manutenção dos idosos em sua casa ou pelo menos no seu meio normal de vida.

“Estes incentivos respondem ao problema mais do que a criminalização do abandono. Muitas vezes, as famílias abandonam os seus idosos, nos hospitais, nomeadamente, porque não têm rendimentos que lhes permitam renunciar ao emprego para cuidar deles”, alerta aquela responsável, descartando assim como eficaz a possibilidade de criminalização do abandono de pessoas idosas em hospitais ou outros estabelecimentos dedicados à prestação de cuidados, que chegou a estar prevista na Estratégia de Protecção ao Idoso aprovada em 2015 e que motivou mesmo a apresentação de dois diferentes projectos-lei no Parlamento.

Noutra frente, mas também numa tentativa de travar os maus-tratos, o relatório sugere o desenvolvimento de uma estratégia nacional para a formação de quem cuida dos idosos, sejam instituições ou cuidadores informais e familiares. “Entrevistámos alguns cuidadores familiares e constatámos que se sentem muito abandonados pelo Estado e pela sociedade, nomeadamente porque não sentem ainda no seu quotidiano os efeitos da criação recente do estatuto do cuidador informal, mas também porque nunca tiveram a oportunidade de aceder a formação que os ajude a evitar a sobrecarga que sofrem e que muitas vezes degenera em situações de violência física e psicológica ou de negligência. Além de aprenderem a curar uma ferida ou a fazer um levantamento, estas pessoas deviam poder aceder a uma formação holística que as capacite para o apoio emocional e para o estímulo cognitivo dos idosos”, sustenta Marta Carmo.

Para a técnica da APAV, e apesar de os números mostrarem que em 65% dos casos em que a associação foi chamada a apoiar idosos que foram vítimas de violência o agressor era familiar, esta formação deveria abarcar também proprietários e trabalhadores das estruturas residenciais para idosos. “Há investigação que demonstra, muito antes de a pandemia ter vindo pôr isso a descoberto, que há violência institucional sobre os idosos. Não nos referimos à violência do colaborador sobre a pessoa institucionalizada, mas à violência que pode resultar do funcionamento e da organização da própria instituição e cujo impacto é violador da dignidade da pessoa que está institucionalizada, seja porque lhes é retirada toda a liberdade seja, por exemplo, porque é obrigada a jantar às 18h00 quando toda a vida jantou às 22h00”, exemplifica.

Idosos têm impacto positivo na economia

A ideia de elaborar este “Portugal mais Velho” surgiu da constatação de que a sociedade portuguesa continua a varrer o problema do envelhecimento para debaixo do tapete, mesmo considerando que, em poucos anos, Portugal se tornou no quinto país mais envelhecido do mundo. Soma actualmente 161,3 idosos por cada 100 jovens até aos 14 anos de idade (em 1961, esse índice de envelhecimento era de 27,5 idosos por cada 100 jovens). Mas, apesar de inelutável, o envelhecimento da população portuguesa não é razão para deitarmos as mãos à cabeça, conquanto, como sublinha Marta Carmo, a sociedade se mobilize rapidamente para integrar os que dobram a esquina dos 65 anos de idade. Como? “Desde logo, acabando com essa ideia de que os idosos representam encargos sociais e financeiros para o Estado e começando a valorizar o impacto positivo que a economia da terceira idade tem na economia e nas contas do Estado”, responde a jurista.

Numa altura em que a esperança média de vida dos portugueses vai já nos 80,93 anos (77,95 anos para os homens e 83,51 para as mulheres), no que Portugal até está mais avançado do que outros países europeus, sobram problemas que têm também tradução estatística: é que, sendo verdade que os portugueses vivem tendencialmente mais tempo que muitos outros europeus, não é verdade que vivam tão bem: no triénio terminado em 2018, segundo o INE, a expectativa de número de anos de vida saudável aos 65 anos ficava-se nos 7,3 anos para a população em geral.

Daí que seja para Marta Carmo incompreensível que a Estratégia Nacional para o Envelhecimento Activo e Saudável 2017-2025 tenha, apesar da costumeira pompa com que foi apresentada, ficado na gaveta. “O documento foi elaborado por um grupo interministerial, chegou a estar em consulta pública, mas, tanto quanto sabemos, não saiu do papel”, lamenta, para concluir que isto mostra que “os decisores políticos continuam a recusar olhar para o problema”.