Carla Tomás, in Expresso
Dois relatórios de organismos da ONU, divulgados esta quarta-feira, indicam que esta foi a década mais quente de sempre e 2020 está entre os três anos mais tórridos. Para inverter o caminho “suicida” e travar a subida média das temperaturas a não mais de 1,5ºC até final do século, como acordado há cinco anos em Paris, o secretário-geral da ONU, António Guterres, apelou ao mundo para que reduza as suas emissões de carbono em 6% por ano até 2030 e que todos os países atinjam globalmente a neutralidade carbónica em 2050. Até agora só os que representam 65% das emissões de gases de estufa globais fizeram essa promessaSe está em primeiro, segundo ou terceiro lugar entre os anos mais quentes da última década só se saberá em março, mas, para já, a Organização Meteorológica Mundial aponta 2020 como um dos três anos mais quentes de sempre, no relatório esta quarta-feira tornado público. E de nada valeu a este malfadado ano o efeito refrescante do fenómeno La Niña, que costuma fazer diminuir a temperatura da superfície das águas do Pacífico. Aliás o calor absorvido pelos oceanos atingiu níveis sem precedente, e as ondas de calor afetaram mais de 80 por cento do mundo marinho.
No Ártico os termómetros registaram temperaturas três graus Celsius (ºC) acima da média para a região, reduzindo como nunca a camada de gelo no início do outono, e a Groenlândia mantém o degelo em aceleração contínua, o que permite que o solo permanentemente gelado (permafrost) deixe de estar congelado e liberte metano (um gás mais devastador para o efeito de estufa que o CO2) para a atmosfera. Só o metano, também associado às práticas agrícolas intensivas, disparou 260% em 2020. Já o teor de dióxido de carbono na atmosfera esteve, em 2019, 148% acima dos níveis pré-industriais. E os eventos extremos como tempestades deixaram a sua marca. Só este ano registaram-se 30 furacões e tempestades tropicais no Atlântico norte, mais do dobro da média comparada a longo prazo.
UM PLANETA ESTRAGADO
Estes são alguns dos dados que traçam o cenário de “um planeta estragado”, “caminhando para o suicídio”, sublinhado pelo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, num discurso sobre o “Estado do Planeta”, proferido esta quarta-feira, na Universidade de Columbia, em Nova Iorque.
A 10 dias da Cimeira de Ambição para o Clima — que assinala o quinto aniversário da adoção do Acordo de Paris —, António Guterres não poupou nas palavras de alerta perante a “catástrofe climática”, se não se alterar o rumo e aumentar a ambição no cumprimento do Acordo. A vídeocimeira de 12 de dezembro é copresidida pela ONU, Reino Unido e França, em parceria com o Chile e Itália.
Na base das palavras de Guterres estão os novos dados do relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM) e os do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA). Este organismo da ONU alerta para factos que apontam para a entrada em colapso da biodiversidade, com um milhão de espécies em risco de extinção e ecossistemas a desaparecer, mas também para a machadada dada pela sobrepesca e pela poluição dos oceanos. Mas também para o facto de as emissões de gases de efeito de estufa continuarem a subir globalmente (ver mais abaixo).
E num ano em que o mundo está a ser flagelado por uma pandemia brutal, Guterres sublinhou que “a poluição do ar e da água matam anualmente nove milhões de pessoas, o que é seis vezes mais do que o atual número global de mortes devido à pandemia”. E lembrou que “75 por cento das doenças infecciosas humanas novas e emergentes são zoonóticas”, um valor em crescendo, o que se deve à invasão humana de habitats selvagens. Mas enquanto para a pandemia “existe esperança numa vacina, não existe vacina para o planeta”. E acrescentou mais à frente: “A recuperação da covid e do nosso planeta podem ser as duas faces da mesma moeda.”
É PRECISO REDUZIR AS EMISSÕES 6% AO ANO ATÉ 2030
Perante todos os cenários e projeções, o secretário-geral da ONU considera que “as políticas climáticas ainda não estão à altura do desafio. As emissões são 62% mais altas hoje do que quando as negociações internacionais sobre o clima começaram, em 1990. Hoje estamos com 1,2 graus de aquecimento e já testemunhamos extremos climáticos e volatilidade sem precedentes em todas as regiões e em todos os continentes. Caminhamos para um aumento de temperatura estrondoso de 3 a 5 graus Celsius neste século.” Os dados constam do “Productions Gap Report”, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA- em colaboração com várias instituições científicas), divulgado esta quarta-feira.
Guterres alerta para o risco de “o mundo estar a seguir na direção oposta [ao que diz a ciência], planeando um aumento anual de 2%”, quando “tem de reduzir a emissão de combustíveis fósseis em cerca de 6 % ao ano daqui até 2030”, como aponta o relatório do PNUA —sobre as falhas entre os objetivos do Acordo de Paris e o que os países têm planeado em termos de produção de carvão, petróleo e gás.
O “Prodution Gap Report” indica que os países analisados estão a caminho de produzir mais do dobro da quantidade de combustíveis fósseis em 2030 do que o que seria consistente com um limite de subida da temperatura média global a não mais de 1,5° C por comparação com a época pré-industrial. “A pandemia covid-19 — e as medidas de "bloqueio" para impedir a sua propagação — levaram a quedas de curto prazo na produção de carvão, petróleo e gás em 2020. Mas os planos pré-covid e as medidas de estímulo pós-covid apontam para uma continuação do crescimento dos combustíveis fósseis, ameaçando graves perturbações climáticas”, aponta o relatório. Entre os dados que o confirmam estão, por exemplo, o facto de os governos do G20 terem prometido mais de 230 mil milhões de dólares aos sectores da produção e consumo de combustíveis fósseis, para enfrentar a pandemia, quando para os da energia limpa vão apenas 150 mil milhões de dólares.
PAÍSES RESPONSÁVEIS POR 65% DAS EMISSÕES QUEREM NEUTRALIDADE CARBÓNICA EM 2050
No seu discurso desta quarta-feira, o secretário-geral da ONU criticou este caminho e lembrou que os mais vulneráveis aos impactos das alterações climáticas são os mais pobres e os que vivem em zonas de conflito. Assim, o que os líderes mundiais decidirem em 2021 “é um teste épico de política e, em última análise, um teste moral” sobre se querem ou não salvar o planeta.
Para que os objetivos do Acordo de Paris sejam alcançados é necessário que todos os países cortem 45% das emissões globais até 2030 e se comprometam a atingir a neutralidade carbónica até meados deste século. Além da União Europeia (que propõe reduzir as suas emissões em, pelo menos, 55 por cento até 2030 face a 1990) o Japão, a República da Coreia e mais 110 países já disseram querer atingir a neutralidade carbónica até 2050. O mesmo caminho anunciou o presidente eleito dos EUA, Joe Biden, cujo país só volta a integrar o Acordo de Paris em janeiro, quando tomar posse. E a China pretende chegar a esta meta em 2060.
Para Guterres estes compromissos “significam que, no início do próximo ano, os países que representam mais de 65% das emissões globais de dióxido de carbono e mais de 70% da economia mundial terão assumido compromissos ambiciosos com a neutralidade carbónica”. E acredita que “2021 pode ser o ano de um salto quântico em direção” a este objetivo.
CARREGAR NO BOTÃO VERDE
Resta saber se na cimeira de Glasgow (COP26), adiada para daqui a um ano, as promessas políticas estão traduzidas em planos e metas concretos e com prazos. E se o famigerado “Artigo 6º do Acordo de Paris”, que estabelece regras claras e justas para o mercado de carbono, será aprovado e o financiamento prometido para a adaptação e resiliência à emergência climática estará garantido. “Até agora, a adaptação representa apenas 20 por cento do financiamento climático, atingindo apenas 30 mil milhões de dólares em média em 2017 e 2018”, criticou Guterres no discurso. E lembrou que “por cada dólar investido em medidas de adaptação tiram-se quase quatro dólares em benefícios”.
Se o mundo parece começar a caminhar para a neutralidade carbónica, ainda está longe de lá chegar e na recuperação pós pandemia é preciso ter em conta o futuro da humanidade e do planeta. Por isso António Guterres frisou que “os triliões de dólares necessários para a recuperação da covid são dinheiro emprestado pelas gerações futuras, e não podemos usar esses recursos para estabelecer políticas que os sobrecarregam com uma montanha de dívidas e um planeta destruído”. Para o secretário-geral da ONU “está na hora de acionar o ‘botão verde’”.