José Manuel Pureza, opinião, in Visão
Para Francisco, são dois os resultados desta (des)ordem. O primeiro é a exclusão de grandes massas humanas, atiradas existencialmente para becos sem saída. O segundo é a crise ecológica, que atenta contra a nossa casa comumQuando a hegemonia de uma visão das coisas é totalmente sólida, todos os discursos contra-hegemónicos parecem angelicamente idealistas ou diabolicamente irresponsáveis.
As últimas décadas assistiram à entronização da hegemonia da perspetiva neoliberal sobre a economia. Essa entronização foi um projeto político bem urdido, ligando a condução das políticas económicas liberalizadoras à produção de discurso académico e de senso comum que lhes deu uma marca de irrefutabilidade poderosíssima. Fórmulas de óbvia natureza ideológica – como a superioridade do privado sobre o público, a minimalização da regulação laboral ou ambiental ou a máxima liberdade de atuação do sistema financeiro – foram assumidas como axiomas sem contestação possível.
A disputa dessa hegemonia teve nos movimentos sociais alterglobalização os seus primeiros intérpretes fortes. A contraposição do mundo de Porto Alegre ao mundo de Davos foi o rosto inicial dessa disputa. Mas a desaceleração dos fóruns sociais e o evidente desequilíbrio entre as instâncias produtoras de discurso neoliberal e as produtoras de discurso alternativo – desde redes de universidades a fazedores de opinião e de agenda mediática – mantiveram a hegemonia neoliberal sem lesões maiores.
Nos últimos anos, tem-se acentuado a importância de um novo sujeito nessa disputa. Surpreendente, talvez. E talvez com condições acrescidas para o sucesso na legitimação de alternativas ao credo neoliberal. Esse sujeito é a Igreja Católica. Como todos os atores sociais, a Igreja é heterogénea: nela convivem instâncias de reprodução de elites animadas pelo credo neoliberal – como algumas universidades católicas – e críticos dessa hegemonia e fautores de pensamento alternativo. Francisco, o Papa, situa-se claramente deste último lado.
Francisco denuncia a “economia que mata” e a antropologia individualista que a anima. O “fetichismo do dinheiro”, a “ditadura de uma economia sem rosto”, as “ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira” fazem instaurar “uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras”. Para Francisco, são dois os resultados desta (des)ordem. O primeiro é a exclusão de grandes massas humanas, atiradas existencialmente para becos sem saída: “Já não se trata simplesmente do fenómeno de exploração e opressão, mas de uma realidade nova (…), pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está [na sociedade] mas fora. Os excluídos não são ‘explorados’, mas ‘resíduos’, ‘sobras’”. O segundo é a crise ecológica, que atenta contra a nossa casa comum: regida pela economia que mata e indiferente à dívida ecológica dos países ricos para com os países pobres, “a Terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo”.
Francisco assume toda a responsabilidade de ser sujeito da luta contra a hegemonia do pensamento e da prática neoliberais: “O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja.”
O recente encontro de 2 000 jovens de 155 países, promovido pelo Papa para pensar “modelos de desenvolvimento, progresso e sustentabilidade em que as pessoas, especialmente os excluídos (incluindo a nossa Irmã Terra) não serão mais uma presença nominal, técnica ou funcional”, mas sim “protagonistas das suas próprias vidas e de toda a construção da sociedade”, acentua esta intervenção da Igreja na disputa da hegemonia. Combater a economia que mata com a economia do bem comum para cuidar da casa comum – eis uma tensão essencial dos dias que estamos a viver.