Ana Cristina Pereira, in Público on-line
Secretária de Estado para a Inclusão, Ana Sofia Antunes, diz que “está na hora” de criar esta resposta. O desemprego de pessoas com deficiência cresceu durante a pandemia. Esta quinta-feira é Dia Internacional das Pessoas com Deficiência.
A Estratégia Nacional para a Inclusão das Pessoas com Deficiência 2021-2025 está em discussão pública até à véspera de Natal. “Até lá, estamos a receber contributos e vamos ter de os analisar um a um para melhorar esta estratégia”, diz Ana Sofia Antunes. O documento abarca oito eixos, incluindo a igualdade e a não discriminação, a educação, o emprego e o lazer, o ambiente inclusivo, os apoios sociais e a promoção da vida independente. As grandes prioridades do próximo ano, adianta a secretária de Estado para a Inclusão, são o emprego e as acessibilidades.
A última Estratégia Nacional acabou há sete anos. Porquê tanto tempo?
A anterior terminou em 2013, na vigência do Governo da altura. Sou responsável por esta pasta desde o final de 2015. Não o fiz mais cedo, reconheço, por incapacidade. Tínhamos vivido um período de grande austeridade. Era precioso passar à acção de imediato. Daí avançarmos com a reformação das prestações sociais, a prestação social para a inclusão, o Modelo de Apoio à Vida Independente (MAVI). Tivemos este trabalho mais ou menos orientado no final do mandato passado, não nos pareceu ser o momento adequado para lançar uma nova estratégia. Concluímos neste primeiro ano de mandato e está em consulta pública.
O MAVI abrange à volta de 800 pessoas. Vai ser alargado?
Estamos com projectos-piloto há cerca de um ano e meio. Os números de Outubro falam em 870 beneficiários. Os projectos-piloto terão três anos. Há entidades que estão a desenvolver este piloto, têm pessoas em fila de espera e gostavam de alargar. Portanto, estamos a trabalhar para, através da publicação de uma portaria, podermos alargar em mais 25% os beneficiários. Queremos que pessoas com todos os tipos de deficiência possam aceder ao MAVI, porque é diferente ter assistência pessoal quando se tem uma deficiência motora ou uma deficiência visual ou uma deficiência cognitiva. Nesta fase, o que queremos é acima de tudo recolher dados.
Que avaliação faz?
Estamos em vias de começar a primeira avaliação intercalar para se poder perceber o que está a correr bem, o que está a correr mal, o que é que as pessoas preferiam que fosse feito de maneira diferente. Queremos garantir que no final destes três anos o MAVI é uma resposta para continuar. Em definitivo.
Há muito quem defenda que as próprias pessoas com deficiência deveriam receber a verba e contratar assistentes pessoais. Isso pode vir a acontecer?
O modelo que existe agora foi o modelo que foi possível desenhar dentro dos constrangimentos que tínhamos. Um deles era estarmos a trabalhar com fundos comunitários. Se vamos conseguir avançar para um modelo em que transferimos directamente subsídios para as pessoas contratarem assistentes pessoais? Não sei. É uma das questões que estarão em cima da mesa, nomeadamente nesta avaliação intercalar que vai ser feita por uma universidade. Temos três numa fase final de concurso.
Porque não esteve no início?
Num primeiro momento, tive algumas dúvidas. Num modelo em que a pessoa recebe a verba sozinha e a gere, tem toda a autonomia, é verdade, mas, se o assistente pessoal se despede sem mais nem menos, fica desamparada, não tem forma de encontrar uma substituição imediata, que é aquilo que um centro de apoio à vida independente garante. Por outro lado, temos de garantir que não estamos a fazer isto recorrendo a formas de trabalho que não são legais, que não estamos a falar de trabalho a recibos verdes, que não garante melhores condições.
Ao mesmo tempo que se fala em consolidar o MAVI há um investimento em unidades residenciais e centros de actividades ocupacionais (CAO). Como interpretar isto? É pelas listas de espera? As listas de espera têm a ver com falta de alternativa…
Temos de ver duas coisas. O Pares 3.0 virá apoiar candidaturas para estruturas residenciais, sejam lares residenciais ou residências autónomas, sendo que apostamos neste modelo das residências autónomas, que pode vir a ser uma resposta para pessoas com deficiência que podem viver nas suas casas mas precisam de algum apoio de retaguarda não permanente que não limite as suas liberdades individuais. Também estamos a receber candidaturas para CAO. Continuamos a identificar esta necessidade porque temos listas de espera muito grandes. Para algumas pessoas os CAVI ou as residências autónomas são uma opção, não para todas. Temos pessoas com deficiências intelectuais profundas, pessoas com deficiências físicas profundas, pessoas com multideficiência para quem infelizmente não podemos ter uma resposta diferente. Pessoas que não têm retaguarda e, portanto, o melhor é uma estrutura residencial com apoio permanente e um CAO.
Os CAO são como os centros de dia para idosos…
Há uma intenção clara de reformular esta resposta para que deixe de ser um sítio de estar e ocupar. Temos um decreto-lei, que contamos venha a ser aprovado esta semana, que propõe que funcionem em diferentes níveis, proporcionando a cada utente aquilo de que precisa. Se o utente apenas demonstrar aptidão para desenvolver actividades ocupacionais, assim será. Se tiver capacidades para ser preparado para outras actividades, então o CAO servirá também para isso.
Isso implica requalificar os que já existem ou criar uma nova geração de CAO?
Para já, implica criar uma nova legislação de CAO, porque a que existe é de 1989, está ultrapassada. Depois, os CAO terão um período de adaptação para se transformarem, para criarem condições para terem esta actuação multinível. Em muitos há uma divisão de utentes por salas em função da funcionalidade. O desafio é conseguir trabalhar a funcionalidade. Aqueles que têm mais funcionalidade devem ser desafiados a ter uma presença na comunidade mais efectiva. Se possível uma actividade laboral. Se não, uma actividade útil.
Trabalho, trabalho voluntário, trabalho socialmente útil…
As pessoas com deficiência têm um regime especial de actividades socialmente úteis. Convida-se a pessoa a fazer uma actividade numa empresa, numa instituição ou num serviço público. Durante x horas, faz algo com que se identifica, que não pode ser enquadrado como uma tarefa laboral regular. Por exemplo, uma pessoa que quer muito ser cabeleireira, mas pelas suas dificuldades cognitivas não consegue concluir o curso e está num CAO, pode estar duas manhãs ou duas tardes por semana num cabeleireiro e ajudar a lavar cabeças, a chegar à cabeleireira os produtos de que ela precisa. Isso traz-lhe auto-estima e uma remuneração simbólica.
A sua ideia é desenvolver essa possibilidade?
A minha ideia é deixar de ver integradas na resposta de CAO pessoas que a meu ver não tinham que lá estar e estão porque não têm outra resposta. O CAO é muito útil para pessoas com um determinado perfil de deficiência com muito baixas capacidades cognitivas. Quando estamos a falar de pessoas com outras capacidades cognitivas, temos de as trabalhar, de as estimular, nem que seja criando este nível mais avançado de resposta nos CAO.
Até aos 18 anos, a escola responde. A partir daí, muitas pessoas, sobretudo mulheres, deixam de trabalhar para cuidar de filhos com deficiência, porque não têm alternativa...
Se conseguirmos que a lei se cumpra, que os jovens tenham um plano individual de transição que indica quais as suas expectativas, que capacidades têm, até onde conseguem ir, isso ajudaria muito a chegar aos 18 anos e dizer: a resposta para ti não é um CAO, podes frequentar um curso de formação profissional. Ou de concluir que a resposta adequada é mesmo um CAO. Se cada um conseguir obter uma resposta em função das necessidades, vamos conseguir libertar muitas vagas em CAO para situações em que a única resposta possível é o CAO.
Doze mortes por covid-19 nos lares residenciais até agora
Até 30 de Novembro, na resposta social Lar Residencial (estruturas de acolhimento para pessoas com deficiência com mais de 16 anos) houve 769 infecções e 12 óbitos. Estes dados resultam de uma recolha feita junto das entidades que gerem estas estruturas. Não são, pois, dados da Direcção-Geral de Saúde. "Felizmente a pandemia não tem afectado os lares residenciais da forma que tem afectado as estruturas residências para pessoas idosas", responde a secretária de Estado para a Inclusão. "Estamos a falar de uma população diferente. Não é uma população idosa, quanto muito de meia-idade. Apesar de ter deficiência não tem especiais morbidades associadas a perigo de infecção por covid-19."
Porque não se faz?
Acho que falta formação. Temos escolas a fazê-lo e a fazê-lo bem. A legislação é de 2018. Está em vigor há dois anos. O último ano foi atípico. Gostava muito de, com o Ministério da Educação, reforçar estes planos. Era importante que o fizéssemos. Não vou dizer que do pé para a mão íamos conseguir resposta para toda a gente, mas ia ajudar bastante. Certamente na comunidade íamos conseguir encontrar lugar para muitos destes jovens.
Isso implica mudar a formação?
Acima de tudo actualizá-la. Já temos cursos de formação profissional por todo o lado. Temos é de meter na cabeça que os alunos com deficiência em muitas situações podem frequentar a formação profissional regular. A própria formação específica tem que se actualizar. Há cursos que já não levam a lado nenhum. Enquanto este boom turístico se verificou, tínhamos muitos jovens a serem formados na hotelaria, na pastelaria, na panificação. Havia saída. As pessoas eram colocadas.
Quais os dados mais recentes de que dispõe do emprego das pessoas com deficiência?
Os dados fiáveis que temos são os inscritos nos centros de emprego. Vinha a descer o número de inscritos. Estávamos abaixo dos 12 mil e [com a pandemia] o número voltou a aumentar consideravelmente. À semelhança do que aconteceu com os números do desemprego em geral. Neste momento já estamos novamente próximos dos 13 mil inscritos.
Acessos a deficientes. Só há elevador em 55% dos edifícios públicos com escadas
Disse que uma das prioridades para o próximo ano é o emprego.
A nossa prioridade vai para o investimento num programa de apoio à empregabilidade, criando investimentos adicionais não apenas das medidas de apoio ao emprego do Instituto de Emprego e Formação Profissional [IEFP], mas também incentivos às empresas para contratarem pessoas com deficiência.
Será só um reforço das medidas que já existem ou haverá um programa novo?
Gostava de repensar algumas medidas que existem para reforçar apoios, nomeadamente o contrato de emprego apoiado em mercado aberto. E criar majorações mais dignas desse nome ao nível de outras medidas que já existem. Por exemplo, se dou um apoio a alguém que contrata uma pessoa sem deficiência, devo dar esse apoio acrescido de uma percentagem considerável se contrata uma pessoa com deficiência. Também temos que apoiar as pessoas que andam à procura de emprego. E aqui, sim, há uma resposta nova que está na hora de criar e que vamos tentar pôr no terreno, numa primeira fase com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Uma agência de emprego para pessoas com deficiência?
Sim. Está pensada dessa forma, mas passa por uma parceria estreita entre a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, o Instituto Nacional para a Reabilitação e o IEFP. É um trabalho a três para que possamos fazer isto acontecer: o encontro entre pessoas que andem à procura de emprego e empresas que tenham vagas abertas ou estejam dispostas a abri-las para estas pessoas.
Só em Lisboa?
A ideia do projecto é nacional. A primeira equipa vai estar a trabalhar em Lisboa, mas o projecto vai crescer a nível nacional. Numa primeira fase, provavelmente vamos estar a responder mais a Lisboa, mas vamos receber candidaturas de todo o país, e vamos fazer avaliações em todo o país.
Associações alertam para falha na lei sobre acessos para deficientes
Essa agência arranca quando?
Primeiro trimestre de 2021. Não consigo precisar ainda uma data. Há protocolos a serem finalizados. Às vezes, é preciso sinalizar, trabalhar as pessoas porque já desistiram de procurar, as famílias que não acreditam. É preciso fazer o encontro com a empresa adequada para receber essa pessoa e fazer o acompanhamento. As empresas sentem alguma insegurança. Terem alguém que podem contactar no caso de haver dúvidas ou problemas é importante.
Haverá alguma campanha?
Penso que sim, mas este é um trabalho mais porta a porta. Por telefone não consigo convencer um empresário que não está para aí virado a contratar uma pessoa com deficiência. Tenho de ir lá, de me sentar à frente dele. Muitas vezes, tenho de o levar a conhecer a pessoa com deficiência para que perceba de quem estamos a falar, o que consegue fazer, o que não consegue. Só assim é que lá chegamos.
Há muito preconceito?
Acho que há uma natural resistência para aceitar o que é diferente. Não vou dizer que haja uma tendência para tratar pior as pessoas com deficiência, mas acho que quem nunca trabalhou com uma pessoa com deficiência resiste. Nunca fez, não sabe como pode ser, acha que pode ser muito difícil. É preciso desconstruir esta ideia.
Intervenção em cerca de 400 edifícios públicos
O diagnóstico sobre acessibilidades obrigou a ver o muito que há fazer: em quase metade dos edifícios públicos com mais do que um andar não há elevadores ou plataformas elevatórias e só dois terços têm balcões de atendimento adaptados do ponto de vista da altura. A secretária de Estado para a Inclusão, Ana Sofia Antunes, colocou o tema no topo das prioridades do próximo ano.
"Temos um grande plano de acessibilidade aos serviços públicos que foi lançado ao abrigo do Programa de Estabilização Económica e Social, para fazer obras em edifícios pré-existentes à lei e que nunca foram intervencionados", diz. "Se queremos puxar as orelhas aos outros temos de dar o exemplo."
O relatório da Comissão para a Promoção das Acessibilidades, formada mais de uma década depois de esgotado o prazo de adaptação, debruçou-se sobre 3806 edifícios públicos e foi divulgado no final de Janeiro. Uma Estrutura de Missão para a Promoção das Acessibilidades foi criada em Fevereiro para, entre outras tarefas, traçar o plano e supervisionar a correcção das lacunas identificadas.
“Nós vamos conseguir intervir, ao abrigo das candidaturas que já aprovámos e que estão neste momento em processo de lançamento de concursos públicos das empreitadas, em cerca de 400 edifícios com serviços públicos”, adianta Ana Sofia Antunes. “Desde serviços da segurança social até finanças, centros de emprego, instituições universitárias, espaços culturais, etc..”
A intervenção, afirma aquela responsável pela pasta da Inclusão, não ficará por aí. “Ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência, que não sabemos quando nos trará dinheiro líquido, teremos uma verba para acessibilidades.” Esse reforço abarcará tanto as acessibilidades físicas como as digitais. “Devo dizer que ambos me preocupam, mas a física mais”, comenta. Não posso deixar de pensar que há pessoas que dependem dela para todo o resto. Se têm dificuldade em sair de casa e andar na rua, mais dificuldade terão em estudar, encontrar um emprego, ter uma vida social.”