3.12.20

Prémio Norte-Sul: “Um dia os Estados da Europa serão julgados pelo genocídio no Mediterrâneo”

Sofia Lorena, in Público on-line

Leoluca Orlando transformou Palermo numa “cidade-porto seguro” para quem chega de fora. Nabila Hamza dedicou a vida à luta pelos direitos das tunisinas. Nesta quarta-feira recebem o Prémio Norte-Sul do Conselho da Europa em Lisboa.

Há 25 anos que o Centro Norte-Sul do Conselho da Europa distingue duas pessoas que promovem a solidariedade entre os hemisférios. Este ano, os premiados estão especialmente próximos: Leoluca Orlando, do Norte, é presidente da Câmara de Palermo, em Itália; Nabila Hamza vem de La Marsa, na Tunísia, a pouco mais de 300 quilómetros a sul. A separá-los, ou a uni-los, está o Mediterrâneo, ou, como lhe chama Orlando, um “grande continente de água”.

Há mais a uni-los. Ambos passaram os últimos anos empenhados na integração de imigrantes. Depois de uma vida de activismo, Hamza não resistiu à “efervescência” das primeiras eleições municipais livres e é hoje vice-presidente da Câmara de La Marsa. A Palermo chegam muitos magrebinos, entre outros; a La Marsa cada vez mais subsarianos.

“Os palermitanos não vêem o Mediterrâneo como um mar que divide”, diz Orlando, numa conversa por videochamada, que será como o italiano vai assistir nesta quarta-feira à cerimónia na Assembleia da República, em Lisboa. Aos residentes que vieram de fora Orlando chama “palermitanos com passaporte não-italiano”.

Com 73 anos, o ex-advogado e ex-professor de Direito Público foi pela primeira vez presidente da câmara em 1985. Em 2022 chegará ao fim o seu sexto e último mandato não-consecutivo. “Iniciei a minha vida política com uma missão: libertar Palermo do governo da máfia”, afirma. Levou 40 anos, o que só prova que “tudo é possível” e “leva tempo”, mas Palermo mudou “de cabeça, coração e estilo de vida”. “Na primeira fase, a mudança cultural passou por impor o primado da lei”, explica.

Com isso, uma cidade que “só era visitada por jornalistas por causa da máfia tornou-se atractiva para turistas” que antes da pandemia “enchiam hotéis, restaurantes, teatros”. “Só que não parámos aí. Ao praticar a legalidade, descobrimos que muitas vezes a lei é contra os direitos humanos.” E assim Palermo tornou-se numa cidade de “acolhimento” e de “integração”, “um mosaico” mais multicultural, “atractiva também por isso”.

Quando Matteo Salvini, ex-ministro do Interior italiano, fechou os portos aos barcos que resgatavam migrantes, Orlando recusou cumprir a lei. “Sou um criminoso? Não. Violei a Lei Salvini, mas não a Constituição. O terrorista era ele”, diz.

O Prémio Norte-Sul foi-lhe atribuído por duas iniciativas anteriores. Em 2015, criou a Carta de Palermo, um manifesto que defende a “mobilidade como direito inalienável” com uma visão que define assim: “Eu sou pessoa, a alternativa ao egoísmo do individualismo, e nós somos comunidade, a alternativa à sufocante pertença a grupos fechados.” Um ano antes, tinha lançado o Conselho das Culturas, um órgão consultivo composto por membros eleitos pelos migrantes para lhes dar voz na política em Palermo.

Indiferença e desenvolvimento

Orlando tem feito a sua parte. “Sou co-fundador e presidente do Global Parliament of Mayors. Ligámos Hamburgo com Palermo com a fórmula “cidades-porto seguro” para dizer que o acolhimento nos beneficia.” Agora, espera que o “grito de Palermo” se faça ouvir. Acredita que “se está a consumar um genocídio no Mediterrâneo”, que a indiferança dos líderes europeus mata quem tenta chegar. “Haverá um segundo processo de Nuremberga, contra os Estados europeus. Não sei se será diante dos livros de História ou de um tribunal. Mas vai acontecer. E nós não vamos poder dizer que não sabíamos.”

Hamza encontra “algumas “luzes” na realidade actual da sua Tunísia, em transição para a democracia. Mas diz que lhe “dói o coração” ouvir os slogans gritado pelos jovens: “Quer estudes, quer não estudes, não há futuro”. “Decepcionados, amargos e revoltados” é como a presidente da Fundação Para o Futuro descreve aqueles que há quase dez anos fizeram a revolução.

Os tunisinos que tentam vir para a Europa preferiam ficar, assegura. “Mas para isso era preciso uma verdadeira aposta no desenvolvimento. E que as parcerias Norte-Sul o sejam de facto”, defende.

A chamada Parceria Privilegiada UE-Tunísia, de 2019, por exemplo, ficou por assinar, face ao “enorme movimento de protesto, de empresários, de agricultores, da sociedade civil” com que foi recebida em Tunes. “Exige que os produtos tunisinos cumpram os critérios dos europeus, o que não se faz de um dia para o outro, e abre um mercado pequeno como a Tunísia aos excedentes agrícolas europeus”, explica, numa conversa em Lisboa.

Terrorismo e coragem cívica

Hamza assinou uma declaração de repúdio ao terrorismo depois dos atentados de Outubro e Novembro em França e na Áustria. “Para nós, é pessoal. Sofremos o horror de ver um país como a Tunísia, aberto e um exemplo de modernidade no mundo árabe, tornar-se, depois da revolução, num país exportador de terroristas”, diz. O autor do atentado de Nice era tunisino.

Defensora de “medidas draconianas contra associações ou mesquitas que propaguem a ideologia do ódio”, Hamza apoia muitas medidas que o Presidente francês, Emmanuel Macron, tem defendido para combater o islamismo radical. Mas diz que “estigmatizar uma população por causa dos actos de uns é um escândalo” e “é pouco inteligente, é brincar com o fogo”, avisa.

“Como o vírus, o terrorismo não conhece fronteiras”, afirma. Por isso se “impõe, mais do que nunca, uma solidariedade entre o Norte e o Sul”, sustenta. “Há uma boa cooperação em termos de segurança, de troca de informações, mas deve abrir-se para uma cooperação de trocas culturais, educação, investimento nas economias, programas de intercâmbio de jovens como o Erasmus…”

“Vou contar um segredo: sabem que há muçulmanos criminosos?”, diz Orlando, quando a conversa chega ao terrorismo. E logo regressa a Palermo. “Quando há um atentado, os muçulmanos de Palermo saem à rua para o condenar”, descreve. “Há tempos, um grupo de nigerianos mafiosos foi preso. Em duas horas, 200 nigerianos fizeram uma flash mob em apoio da polícia. No fim, eu voltei para casa de carro blindado, escolta da polícia… Eles voltaram sozinhos, para um prédio onde se cruzam com irmãos dos nigerianos presos”, diz. “A isto chama-se coragem civil. A minha grande esperança no futuro é que a coragem civil seja mais forte do que a indiferença incivilizada.”