11.1.21

E depois do Natal... o regresso às aulas em casa

Márcio Berenguer e Idálio Revez, in Público on-line

Aulas de Educação Física na sala de jantar, pais a fazer de professores, alunos com saudades de colegas, a Internet que falha... Não é novo mas voltou a acontecer em alguns pontos do país, para alguns alunos, no arranque deste 2.º período. Como estão crianças, pais e professores a lidar com o ensino à distância de novo? Fomos à Madeira e a Tavira.

Foi um “yes” largo e redondo que Júlia, 7 anos, soltou quando soube que o início das aulas no 2.º período, marcado para a segunda-feira passada, tinha sido adiado alguns dias. Quantos? Ainda ninguém sabe.

Júlia vive no Funchal e aqui, como em outros três concelhos da Madeira – Câmara de Lobos, Ribeira Brava e Porto Santo –, o regresso às salas da escola após as férias foi adiado na véspera de se concretizar, quando os números de casos positivos de covid-19 dispararam. O governo regional decidiu antecipar o que estava programado decorrer de forma progressiva e montou uma operação para a testagem em massa de todos os professores e pessoal não docente das escolas dos concelhos sinalizados. No total, vão ser realizados e processados, numa semana, perto de seis mil testes rápidos de antigénio, antes das escolas reabrirem.

Em todo o país milhares de crianças e jovens, de norte a sul, receberam a notícia de que iam ficar em casa mais uns dias depois das férias do Natal. As aulas começaram à distância para muitos alunos de Mangualde (distrito de Viseu), de Tavira (distrito de Faro), de Pinhel (distrito da Guarda), só para dar exemplos que foram notícia por estes dias. “Com o número de casos de covid a subir não sabemos quanto tempo mais vamos ser obrigados a manter o ensino à distância. Temos de estar preparados”, diz José Baía, coordenador escolar do agrupamento Dr. Jorge Augusto Correia, em Tavira.

No Funchal, as previsões apontam para que no dia 11 recomecem as aulas presenciais. Mas são previsões, e até lá a escola voltou a casa. Para já, nesta fase, os alunos não serão testados, apesar da pressão que tem sido feita pelo Sindicato dos Professores da Madeira e por alguns partidos na oposição para que o sejam.

A sala de estar voltou assim a transformar-se num espaço aberto, multidisciplinar, híbrido, a meio caminho entre um cowork e uma sala de aula. Mas que não é uma coisa, nem outra. Nada de novo na casa de Júlia e da irmã Eduarda. As duas gémeas frequentam o 2.º ano na EB1 Prof. Eleutério Aguiar, e depois do confinamento no ano lectivo anterior, começaram este ano na expectativa, até porque na escola, foram várias as turmas que foram sendo obrigadas a cumprir isolamento profiláctico em casa.

Marta Luís, a mãe, já previa que algo assim acontecesse. “Pedi à professora, no final do 1.ª período, para mandar os manuais delas. Estava à espera de uma coisa destas”, diz ao PÚBLICO, sentada junto à mesa de jantar, onde Júlia e Eduarda lêem o plano de trabalhos para os próximos dias. Matemática, Português, Estudo do Meio... “É tanta coisa”, reclama Júlia, franzindo o sobrolho. O tal largo e redondo “yes”, que no domingo exclamou quando soube do adiamento do início das aulas, depressa deu lugar à nostalgia de não poder estar com as amigas, com a professora Sofia. As brincadeiras.

De que sentes mais falta? “Da Belkis, claro.” Belkis é o nome da melhor amiga das duas irmãs. A mãe, diz, a sorrir, que é a terceira gémea, e formam um grupo inseparável de raparigas numa escola, onde os rapazes são a larga maioria.

Às amizades, verdadeiras, que não florescem no monitor de um computador, Júlia, junta o sabor da comida da cantina da escola. “Tão boa”, fecha os olhos a saborear. Eduarda, esboça uma careta, e abana a cabeça que não. Riem as duas. “Quando elas estão assim, a colaborar, é mais fácil. Mas no confinamento houve dias em que estavam cansadas. Em que eu estava cansada. Estávamos todos, não é?”, diz a mãe, que no ano passado, durante o confinamento, conseguiu articular o teletrabalho com o papel de professora “substituta” das filhas.

“O Ricardo, o pai, teve sempre muito trabalho, mas eu não. Por isso, consegui dedicar-me mais a elas”, explica, mostrando-se apreensiva sobre os próximos meses. Os dois são técnicos superiores do Serviço Regional de Saúde, mas Marta mudou de serviço, entretanto. Onde está agora, o trabalho presencial é quase obrigatório. “Lidamos com muita papelada, e é preciso alguém para receber os processos que chegam e encaminhá-los”, acrescenta, suspirando: “Não perspectivo nada de bom, para os próximos meses.” Ricardo Pita da Silva, descansa-a. “Vai correr bem.”

Professores a reinventarem-se

Sofia Silva, a professora das gémeas, está convencida que sim. Ou confiante, pelo menos. Professora há 16 anos, teve que se reinventar no ano passado – “tivemos todos, não foi?” –, e encara este 2.º período com mais confiança. “No ano passado foi tudo muito à pressa. Foi uma reacção. Este ano, tivemos tempo. Recebemos formação no Teams, o programa foi melhorado. Vai correr melhor.” É ela quem está do outro lado do monitor do computador de Júlia e Eduarda. É a professora da turma A do 2.º ano, e é ali, na sala de estar de casa, no Caniço, concelho de Santa Cruz – que, entretanto, já este texto estava a ser escrito, ficou também com as escolas encerradas, pelos números da covid-19 –, que montou o gabinete para preparar as aulas. De uma mesa de jantar, para outras.

“Não é fácil”, admite. São miúdos do 2.º ano, e a presença de um professor faz toda a diferença. Sofia Silva sentiu isso no ano passado. Quando as crianças começavam a formar ditongos, a somar e a subtrair números, foram todas para casa. O confinamento deixou marcas. Nem todos conseguiram acompanhar os estudos. Dos 15 alunos da turma, alguns com necessidades educativas especiais – a EB1 Prof. Eleutério Aguiar é a escola de referência para educação bilingue de alunos surdos –, só pouco mais de um terço conseguiu acompanhar as aulas em casa.

“Alguns ofereceram resistência. Não consideravam a telescola e os trabalhos que enviava como sendo a escola. Outros não tinham os meios tecnológicos ou a disponibilidade dos pais. Foi difícil”, desabafa, acrescentando que aquela paragem se reflectiu este ano, com algumas das crianças a revelarem dificuldades acrescidas, numa altura, o início do 1.º ciclo, fundamental de aprendizagem.

A escola, continua a professora primária, preparou-se o melhor que pôde para estas contingência de ter de regressar a casa quando é preciso. O plano é dar formação aos pais e mais autonomia às crianças, através da ambientação ao Teams. “Íamos começar esta semana [a que passou]. Para que eles consigam...” Sofia Silva não concluiu, mas a palavra apropriada é “desenrascar-se”.

As duas gémeas, desenrascam-se. A mãe também. “Acho que tenho algum jeito para ensinar, mas muitas vezes faltaram-me as estratégias. Os métodos.” A solução foi pegar no telefone, e pedir “socorro” a uma amiga, professora primária.

Agora, para este novo período, a expectativa é muita, mas a disponibilidade não será a mesma. “O serviço onde estou agora exige mais de mim. Vai ser difícil. Vão ser dias difíceis”, prevê Marta. O marido tem estado nos últimos meses em teletrabalho, e vai continuar a se desdobrar em casa.

Do outro lado do monitor, noutra sala de jantar, Sofia Silva, também promete dar o melhor. É preciso, diz, recuperar o que perdemos no confinamento, e procurar não perder mais.

Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas, disse no início da semana que a expectativa “para os próximos 55 dias úteis de aulas é que o ensino seja conduzido maioritariamente nas escolas”. Seja como for, o 1.º período já foi marcado por alguma intermitência entre casa e escola, com turmas que confinaram, com professores que estiveram isolados. Mas a experiência do ensino à distância do ano passado deu frutos. “Convivemos muito bem com esta realidade”, afirmou.

Na casa de Gabriel Inácio, o canário na gaiola canta. E o rapaz ao computador não lhe dá ouvidos. O aluno do 8.º ano da escola D. Paio Peres Correia, de Tavira, está concentrado no monitor. A aula de cidadania vai começar. Passados alguns minutos surge uma surpresa. “O professor não conseguiu entrar” na “Classroom”, a plataforma digital que liga a comunidade escolar para que as aulas possam decorrer à distância. No concelho de Tavira, que passou a fazer parte da lista dos municípios de risco “extremamente elevado” para a covid-19, as escolas estão encerradas desde o início da semana para os alunos do 2.º e 3.º ciclos e secundário.

Gabriel, de 13 anos, está sozinho em casa. A aula ia ser sobre “desenvolvimento sustentável”. Mas não aconteceu. “O professor enviou um mail, a indicar as páginas do livro que podemos consultar e a ficha para preencher, depois da pesquisa”, diz, revelando não ter ideia do que irá aprender. “A matéria é nova”, justifica. O docente da disciplina faz parte do grupo de docentes ainda não familiarizado com a plataforma digital que permite a comunicação de dados, voz e imagem. Dos 180 professores do agrupamento Dr. Jorge Augusto Correia, “30 já ultrapassaram a barreira dos 60 anos, e muitos outros andam lá próximo”, diz o coordenador escolar José Baía.

Do apartamento, situado ao lado da habitação do aluno, chega o ruído de obras que duram há cerca de quatro meses. Por momentos, faz-se silêncio. O martelo pneumático deixou de se ouvir. E o pássaro hospedado no quarto do rapaz solta um trinar, sinalizando a pausa. Segue-se a aula de Educação Física.

Os tempos de jogar à bola, pular e saltar, ao ar livre, parecem distantes. Agora, enfiado num apartamento, com área de 92 metros quadrados, Gabriel está mais perto do pássaro que tem no quarto, dentro de uma gaiola. Ambos estão a pagar o preço da falta de liberdade de movimentos e fazem de conta que é tudo normal. Na segunda-feira, dia da última aula de ginástica, os exercícios foram pouco mais do que um aquecimento: “Dei cinco voltas pela sala de jantar, cozinha e quartos.” No final, fez os alongamentos, registou as frequências cardíacas, antes e depois dos exercícios, como mandara a professora.

“Nada substitui o ensino presencial”, diz José Baía. No final do ano, diz, recebeu 300 computadores para distribuir, a título de empréstimo, pelos alunos mais carenciados. O plano digital, adianta, será alargado aos professores, nas mesmas condições. Cláudia Marcelino, docente na área dos cursos técnicos, enfatiza: “Há muitas actividades [lectivas] que requerem prática.” Uma das turmas onde dá aulas, exemplifica, estava a preparar um projecto comunitário. Ficou suspenso. A professora, de 40 anos, de Almodôvar, confessa ter alguma dificuldade em manusear as ferramentas da plataforma digital. “Na passada segunda-feira não consegui dar a aula, os alunos ouviam-me, mas eu não os via, deve ser do meu equipamento.”

A equipa de professores de informática do agrupamento elaborou, esta semana, um guião, com perguntas e respostas, para que os colegas e os alunos possam tirar maior aproveitamento das novas tecnologias. Cláudia Marcelino candidatou-se a ser aluna. “Estamos sempre a aprender, isto é tudo novo.” Em Março, quando se deu o primeiro confinamento, recorda, começou a dar as aulas a partir de casa, no baixo Alentejo. Nessa altura, sentiu de forma mais próxima o peso da interioridade. “Quando fazia mau tempo, não conseguia aceder à ligação.” Para colmatar as falhas da Internet viu-se obrigada a adquirir um novo equipamento.

Embora o 1.º ciclo em Tavira continue a funcionar presencialmente, a verdade é que cerca de 30% dos pais não deixaram os filhos ir às aulas esta semana. “O meu neto, por decisão da minha filha, não foi”, exemplifica Baía. E quando assim acontece, os alunos ficam privados das aulas. “Mas há professores que, por iniciativa própria, estão a dar aulas através da plataforma”, adianta.

O medo espalhou-se pela cidade. A análise da situação epidemiológica do concelho vai ser reavaliada na segunda-feira. “Tenho professores que já começaram a dizer para nos prepararmos para mais uma ou duas semanas em casa”, conta Gabriel Inácio, confessando que tem saudades do “convívio com os amigos”. Porém, lembra que um antigo colega de infantário e mais dois alunos da sua turma foram para confinamento por terem estado em contacto com pessoas infectadas. “Tenho um bocado receio de voltar à escola”, confessa.

A mãe, Carla Silvestre, assistente operacional na Escola EB1 da Horta do Carmo, lamenta não poder estar com o filho em casa para o poder ajudar. “Sei que ele é muito responsável, mas tenho sempre aquela coisa no coração, por deixá-lo sozinho”. O marido, vidreiro, trabalha em Faro. “Sai de casa às 6h para fugir ao transito intenso da Estrada Nacional (EN) 125.” O percurso, se optasse por utilizar a Via do Infante, daria para ganhar alguns minutos, mas o preço das portagens teria um peso adicional no orçamento familiar. “Estou a pagar a casa a prestações”, enfatiza, lembrando que o novo computador para o filho, para poder aceder mais facilmente às aulas não presenciais, está também a ser pago em fracções. “A impressora ofereceu-me a minha sogra, graças a Deus.”

Gabriel conta que gostava de ir para o ensino superior e “seguir a área das ciências”. O irmão, Afonso, de sete anos, tem outros objectivos: “Gostaria de ser como o Cristiano Ronaldo.” A mãe aproveita a ocasião para lhe lembrar que o desporto não deve fazer esmorecer “o gosto pelos estudos”. No que a ela diz respeito, lembra, chegou ao 9.º ano de escolaridade. No ano passado, durante a pandemia aproveitou para rever alguma das matérias aprendidas nos tempos de juventude, ao lado do filho. “A professora de ciências dava explicações ao Gabriel, e eu fui acompanhando — embora hoje os métodos de ensino sejam diferentes.”

Ao final do dia, quando chega a casa, tenta “dentro das possibilidades, ajudá-lo a interpretar alguns textos”. Afonso, por sua vez, conta com o apoio do irmão: “Dá-lhe explicações, e eu sinto-me orgulhosa.” O canário parece ter ouvido a declaração. Volta a cantar, como se não estivesse confinado numa gaiola.