Daniel Oliveira, opinião, in Expresso
Com o encerramento das escolas as perdas na aprendizagem são profundas e duradouras, com efeitos muito diferenciados numa sociedade tão desigual como a nossa. Os alunos não têm as mesmas condições em casa e os pais não têm o mesmo capital cultural. Fechar os alunos em casa é substituir o elevador social por uma escada de incêndio. É deixar para trás a escola pública. E é tornar o teletrabalho numa tortura. Espero que o Governo compense a decisão com medidas de segurança. Para que, daqui a 15 dias, não se tenha de recuar
O confinamento que começa amanhã é, no essencial, igual ao de março. É impossível ter sido a favor daquele e contra este. O outro só se justificava pela impreparação de tudo, sobretudo do Serviço Nacional de Saúde, e o desconhecimento sobre o vírus. Alguém que um dia se dedique a ir buscar o que então se escreveu, os pré-anúncios de colapso do SNS com incomensuravelmente menos casos do que agora, poderá verificar como o tempo varre a histeria do dia a dia. Agora a situação é grave. Não apenas aqui, como sabemos. Sobre a decisão tomada no Natal, já disse o que tinha a dizer. Só não disse do sorriso amargo que me causa ver partidos e personalidades que defenderam a abertura no Natal (e alguns até na passagem de ano) passarem para o lado oposto e apontarem o dedo admoestador. É o habitual.
A única vantagem de estarmos perante um segundo confinamento é o que aprendemos com o anterior. E uma das coisas que aprendemos é que o encerramento das escolas tem custos que perdurarão no tempo. Já me cansei de o escrever aqui e o meu colega de página, Luís Aguiar-Conraria, tem sido dos mais insistentes de todos os colunistas neste tema: as perdas na aprendizagem são profundas, demoram muito mais tempo a recuperar do que o tempo em que a escola está encerrada e, talvez o mais relevante, têm efeitos muitíssimo diferenciados entre alunos de famílias pobres e ricas. Os efeitos são determinantes numa sociedade tão desigual como a portuguesa.
Os alunos não têm as mesmas condições em casa. O mesmo espaço para estudar, a mesma ligação à Internet, computadores, quarto só para si. Nem sequer têm todos pequeno-almoço, para quem não saiba em que país vive. Mas, para o fosso que se cava, o mais importante nem é isso. É o capital cultural dos pais – dizem os estudos que o mais importante é o das mães. Uma criança ou adolescente que, estando em casa, é ajudada por pais que conseguem acompanhar o estudo, perde apenas um pouco do que o ensino presencial lhe dava. Uma criança ou adolescente que não tem isso perde quase tudo. Esta é, aliás, uma das razões porque sempre me opus aos trabalhos de casa – mas esse é outro debate ainda mais complicado. Fechar os alunos em casa é fechá-los na sua condição social. E substituir o elevador social, no pouco que a escola contribui para ele, por uma escada de incêndio.
Dirão: é só um mês e meio. Já foi um mês e meio no ano passado. Na realidade, juntando os dois confinamentos, seriam dois períodos destruídos. É muito. Para quem esteja no início da sua vida escolar, é determinante. E não vale a pena fazer comparações com países mais ricos e igualitários. O impacto não é o mesmo. A desigualdade não é a mesma. Mesmo que muitas pessoas, mas privilegiadas, teimem em ignorá-lo.
Mas fechar a escola também é fechar o maior radar para casos de violência, abuso, negligência e sofrimento extremo. Não só sobre menores, mas das suas famílias. É na escola, através do comportamento de crianças e jovens, que muitas vezes são detetados os problemas sociais e familiares graves. No anterior confinamento essas famílias ficaram isoladas do exterior. Sobre tudo isto, proponho que oiçam a entrevista que fiz, em abril do ano passado, com Ariana Cosme, doutorada em Ciências da Educação e professora na Faculdade de Psicologia do Porto, que trabalha em permanência com escolas TEIP e conhece, no terreno, as vítimas mais imediatas do primeiro confinamento.
Fechar as escolas é deixar para trás a escola pública, com menos condições do que as privadas para lidar com o ensino à distância. O efeito será o que alguns até desejariam: a fuga de alunos da classe média que ainda o pode fazer da escola pública para os colégios. Depois, lá viria o discurso que já se faz para o SNS: já que isto está tão mal, mais vale o Estado pagar aos privados para tratar do assunto. Ficando o público, obviamente, com as populações mais marginalizadas em escolas de gueto. A essas, para quem o ensino à distância é evidentemente uma miragem, o ensino privado nunca desejará.
Por fim, fechar as escolas é tornar o teletrabalho numa tortura. Mais uma vez, não será igual para todos. As famílias com casas maiores e vários computadores lá se safam. As outras voltam a viver um calvário que as esgota, com várias pessoas enfiadas na mesma sala, dificilmente com computadores suficientes para isso e sem tempo nem condições para estudar e trabalhar.
O resultado das escolas fechadas seria o que foi no ano passado: uma parte nada negligenciável de crianças e jovens privada de qualquer relação minimamente regular com o ensino formal. E uma boa parte dela sem qualquer apoio em casa que o compense.
Não sei se seria possível vacinar os professores na primeira fase. As vacinas são finitas e outros teriam de sair das prioridades. Não tenho dados que me permitam dizer se todos os que são considerados prioritários o são realmente. Sei que o Governo terá de reforçar a segurança dentro da escola. O que soube do que aconteceu no último desconfinamento não me pareceu animador. Mas parece que o grande problema é, antes de tudo, nas imediações das escolas, onde os jovens se juntam para conviver. A situação será, apesar de tudo, mais fácil de controlar. No meio do confinamento geral os ajuntamentos na rua são mais fáceis de impedir. Espero que o Governo compense esta decisão com medidas que não a tornem demasiado perigosa. Para que, daqui a 15 dias, não se tenha de recuar. Há vidas a proteger. Mas se nem tudo pode fechar, este é seguramente um dos casos.