11.1.21

RSI: mitos e factos, no país das desigualdades

José Soeiro, opinião, in Expresso

Portugal continua a ser um país de contrastes e de desigualdades profundas. Muitos dos discursos que afirmam condoer-se com a pobreza (mesmo que sobre ela tenham uma visão fatalista), não parecem especialmente importunados com o crescimento da desigualdade. São insufladas clivagens internas aos pobres para alimentar conflitos que evitem pôr o foco nas desigualdades sistémicas, de classe e de distribuição da riqueza. Não se trata de um acaso ou de um pormenor, mas de uma estratégia consciente que precisa de quem se lhe oponha sem hesitações

Um fosso de desigualdades

Esta semana ficámos a saber, através de um estudo da consultora Mercer, os números mais recentes das desigualdades salariais nas empresas portuguesas. Com 916 mil euros de salário médio anual, os CEO das empresas do PSI-20 ganham cerca de 30 vezes mais, em média, do que os trabalhadores da sua empresa. Além do fosso enorme dentro das organizações, choca o facto de ele não parar de aumentar. Num ano, os salários do topo cresceram 20%, os dos trabalhadores 1,5%. O pódio da desigualdade tem vencedores recorrentes: Pedro Soares dos Santos, dono do Pingo Doce, ganha 167 vezes o salário médio de um trabalhador do grupo. António Mexia, ex-presidente executivo da EDP, auferia cerca de 2,17 milhões de euros de remuneração anual. Carlos Gomes da Silva, da Galp, 1,4 milhões.

Este tema podia ter centralidade política e mediática. E no entanto, os debates das últimas semanas são marcados por quem prefere apontar o dedo aos pobres do que à desigualdade e à privação. A agitação do RSI como instrumento de campanha, baseada em equívocos e mentiras, não vem de hoje, mas voltou a estar na moda nestas presidenciais. A extrema-direita dá o tom, mas há quem se disponha a acompanhá-la, como se viu nos Açores. Felizmente, nem todos o fazem, mesmo à direita. Vale a pena combater essa campanha com factos e com argumentos.

Há muita gente que vive à custa do RSI?

A despesa com o RSI no Orçamento da Segurança Social é totalmente residual: apenas 1,27%. É uma pequena gota no oceano, cerca de 281 milhões de despesa num orçamento de mais de 22 mil milhões, de acordo com os últimos dados da execução orçamental. As 210.490 pessoas que, em novembro de 2020, eram beneficiárias do RSI recebiam um valor médio muitíssimo baixo: 119€ por mês. Está muito aquém do limiar de pobreza, que é de 502€. Ou seja: quem recebe o RSI vê a severidade da pobreza ligeiramente atenuada, mas permanece na pobreza. O RSI não dá para viver fora dela e chega atualmente apenas a uma pequena parte do universo dos pobres (cerca de 10% dos que vivem abaixo do limiar de pobreza). Se há alguma crítica a fazer ao RSI não é tanto a da “falta de fiscalização” (é a prestação social com mais mecanismos de fiscalização e há menos fraude que no subsídio de doença, por exemplo, que ninguém propõe “diminuir para metade”), mas sim o seu baixíssimo valor, o desinvestimento e a falta de vigor do instrumento de política e a que o desinteresse dos últimos Governos o votou.

Cortar no RSI para pôr as pessoas a trabalhar?

O PSD aceitou caucionar a absurda exigência do Chega de “diminuir para metade os beneficiários do RSI”, inscrevendo esse compromisso no acordo de governo nos Açores, sem que se perceba como seria isso possível, ou com que critério. Ao fazê-lo, parece ter inscrito no senso comum (que alguns moderadores reproduzem acriticamente) a ideia de que há, entre os beneficiários do RSI, muito quem “pudesse trabalhar mas não queira”. Uma das razões pelas quais uma tal afirmação não faz sentido é que grande parte dos beneficiários do RSI não pode, legalmente, trabalhar. Cerca de um terço dos beneficiários, a nível nacional, são menores de idade (os dados estão aqui), sendo ilegal que tenham um emprego. Quase um décimo já trabalha, mas tem rendimentos do trabalho tão baixos (pequenos biscates, trabalho irregular e intermitente) que mesmo assim vive muitíssimo aquém do limiar de pobreza. Cerca de 3% são pensionistas, ou seja, já trabalharam uma vida inteira, mas têm uma reforma tão miserável que precisam do RSI. E dos restantes, a maioria dos quais mulheres, há uma parte importante que são cuidadoras informais de crianças com deficiência, idosos acamados ou doentes crónicos. Mesmo não tendo um emprego formal, alguém se atreve a dizer que estas mulheres “não trabalham”?

“Não podem viver à custa dos outros”

Esta frase, atirada muitas vezes contra os pobres, cairia que nem uma luva numa empresa como a Jerónimo Martins: o que dizer de uma realidade em que um gestor ganha 160 vezes o salário médio de um trabalhador? É significativo, contudo, que protagonistas políticos que não querem tocar neste regime de exploração e de privilégio na distribuição da riqueza sejam vezeiros na utilização deste tipo de retórica contra os pobres. Para combater a pobreza são necessárias, sem dúvida, políticas de pleno emprego e de defesa do salário. Mas não basta dizer que as pessoas devem ter um emprego, é preciso que esses postos de trabalho existam e que estejam disponíveis. A lei do RSI, de resto, já prevê, nos contratos de inserção, que sempre que haja uma oferta de emprego conveniente o beneficiário tem de aceitar. Se não o fizer, perde o direito à prestação. Por isso mesmo, a ideia de que se deve “cortar para metade” o número de beneficiários, sem considerar que uma grande parte não tem idade para ter um emprego, sem cuidar de políticas de pleno emprego que respondam aos que se encontram encurralados entre a dificuldade de encontrar um trabalho e a impossibilidade de aceder à reforma, sem sublinhar que a lei já prevê planos de inserção, é uma ideia disparatada, que funciona como mero slogan de ressentimento e de preconceito, sem nenhuma sustentação ou aplicabilidade. É uma manifestação de ignorância com objetivos precisos.

As batalhas políticas travam-se também nas lutas simbólicas e nas disputas pelo entendimento da realidade. As categorias com que descrevemos o mundo, bem como os pressupostos que aceitamos ou rejeitamos num debate, têm implicações de fundo. Por isso, precisamos de todo o conhecimento crítico e de não ceder aos equívocos e às manipulações grosseiras. Nesta questão e em tantas outras, é também nessa pedagogia e nessa firmeza de quem não desiste que se ganha a democracia.