3.3.21

Avós e netos, a um ano de distância: “Já não me lembro de dar um beijo à minha avó”

Carolina Amado, in Público on-line

Em Março de 2020, surpreendidos pela pandemia, não imaginavam que as tardes partilhadas, os beijos e abraços tardariam tanto a regressar. José, Raquel e Joana falam ao P3 das memórias, das saudades e do luto.
Aurora e José

Há um ano que José Sampaio não está, “verdadeiramente”, com a avó. Já não se lembra da última vez em que lhe deu um beijinho na face, como Aurora Fernandes tanto gostava. Sempre que o neto a visitava em casa, colocava o indicador na própria bochecha e dizia, numa ordem divertida: “Um beijo!” Apesar das saudades, Aurora, de 78 anos, mantém-se positiva, tem esperança, porque “a esperança nunca morre”. “Estou bem. Durmo bem, graças a Deus. Mas a pandemia é difícil de aguentar agora, mais do que há um ano. Não se vê ninguém, nenhuma alma.”

José e Aurora tornaram-se populares com a página de Instagram Era Uma Vez Aurora, onde publicam pequenos sketches de humor, que os levaram aos programas da tarde na televisão. “Nunca mais me esqueço. Uma vez fomos buscar a minha avó à fisioterapia e ela estava a tirar fotografias com as pessoas, toda contente porque gostavam dela. Há todo um registo de influencer na Aurorinha.” Aurora nasceu no Rio de Janeiro, cresceu com a febre do samba e dos desfiles de Carnaval, de que sentiu saudades em 2021. “Para a minha avó, se nos rirmos de nós mesmos, não há nada que nos afecte.”

José passou muitas tardes de criança no café da família, numa aldeia em Amarante. Pedia, com o irmão, moedas para jogar nas máquinas, e Aurora, sempre cúmplice, dava-as, muitas vezes sem o avô dos rapazes perceber.

Aos 25 anos, e desde que trabalha em Lisboa, a 350 quilómetros de Amarante, os encontros presenciais, que já eram menos regulares, são, em tempo de confinamento, inexistentes. Falam todos os dias ao telefone, durante muito tempo. Aurora adora conversar. “Nas poucas vezes em que a vi, durante este ano de pandemia, vi-a sempre de máscara, com distanciamento, e isso causou uma estranheza em nós que, infelizmente, agora já parece a normalidade.”

Ainda mais do que as saudades dos netos, a Aurora custa-lhe a distância de Madalena, a bisneta de dois anos que apenas vê em videochamadas. “Acho que a pandemia não nos afasta. Estamos sempre a pensar nos netos e eles em nós. Mas tenho muita pena de não estar com a Madalena. Há-de chegar o dia. Quem me dera vê-la.”

Renata Benavente, psicóloga clínica e vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses, afirma que o confinamento poderá fragilizar a relação entre avós e netos. Contudo, os contactos não-presenciais, as chamadas telefónicas e de vídeo regulares podem atenuar esse dano. Já “o olhar nos olhos, tocar na mão do outro, dar um abraço” são impossíveis de substituir, e ainda não se prevê quais as consequências que essa distância trará. “A probabilidade de termos reacções de desajustamento é elevada, porque estamos numa situação que se está a prolongar muito no tempo. E temos os nossos limites para a incerteza.”

Para as crianças e jovens, a acumulação de “variáveis de risco” potencia esse desajustamento. “A ausência de relação com os pares, com familiares significativos, como os avós, a impossibilidade de se envolverem em actividades de lazer, desporto, a dificuldade em cumprir rotinas são factores que, cumulativamente, potenciam um desfecho menos bom.” Por isso, explica a psicóloga, é importante estar atento aos sinais que as crianças poderão já evidenciar, e apoiá-las, recorrendo, quando necessário, a ajuda especializada.

Magda Nico, socióloga do curso de Vida e das Relações Familiares no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE, concorda com Renata Benavente. “É muito cedo para conhecer as profundas alterações e reconfigurações que vão acontecer na relação intergeracional.” Contudo, os afectos “não estão reféns” do contacto presencial. “Acredito no afecto que une as pessoas e continuará a unir mesmo que por via virtual, e acredito na maturidade emocional das crianças para separar o confinamento da ausência dos afectos.”
Cristina e Raquel

Quando era pequenina, Raquel Mestre olhava para a avó como uma mulher muito alta, magra. À medida que crescia e via o cabelo da avó – antes sempre pintado – tornar-se grisalho, percebeu que não era, afinal, tão alta, e que ficava ainda mais bonita de cabelos brancos. Dos dias passados em casa da avó Cristina, no campo, recorda as horas de conversa no pátio sobre as memórias da juventude, “as duas, sossegadas”.

Cristina Martins, de 73 anos, era a avó “carinhosa, atenciosa”, que nos diz: “Quer comer alguma coisa? Sente-se à mesa, diga-me o que quer e eu preparo”. Para Raquel, era como uma segunda mãe. Quando se mudou do Algarve para Lisboa, para estudar, conversavam muito por telefone, e nunca se esqueciam de terminar as chamadas com um “gosto muito de ti”. “A minha avó dizia-me sempre: ‘Não te preocupes, que vou rezar à nossa santinha e a São Pedro para que tudo te corra bem’. E eu achava muita graça.”

“Depois de a minha avó falecer, em Janeiro, o ambiente em casa ficou pesado. A minha mãe perdeu os dois pais no último ano. É difícil lidar com tudo e ter de estar confinada em casa piora a situação, não posso espairecer.” Nos últimos meses, desde a perda do marido, Cristina andava mais triste. “Dizia que se queria ir embora, que isto lhe custava tudo imenso. Eu tentava mostrar-lhe que estávamos todos cá para a apoiar. Mas a família não podia estar junta e isso preocupava-a muito, deixava-a muito em baixo. Foi muito complicado não nos podermos ver e termos de lidar com o luto.”

Os constrangimentos da pandemia comprometem, de facto, um luto bem-sucedido, explica a psicóloga Renata Benavente. “Nesta circunstância, há um sentimento de que não se viveu os últimos tempos de vida da pessoa como se deveria. Com contacto, abraços, beijos, e isso dificulta o luto.” No último ano, Raquel chegou a fazer videochamadas com as avós, mas era uma interacção “estranha”. “Elas não se entendem com aquilo e acaba por ser uma conversa muito rápida”, conta a estudante de 21 anos. “Acho que temos mesmo de estar com alguém para fortalecer relações.”

Também as cerimónias fúnebres, agora com limitações, são um ritual que nos ajuda a fazer o “processo de luto normativo”. Como explica Renata Benavente, “a forma como os jovens lidam com o luto depende muito da forma como os adultos que os rodeiam reagem. E estar confinado num espaço torna a experiência mais difícil.”

Cristina não era uma “avó moderna”, não tinha carta, por isso passava muito tempo em casa. A 12 de Janeiro, Raquel passou no exame de condução, e fez questão de, com todos os cuidados, ir até casa da avó para lhe dar a notícia. “Avó, passei! Já tenho a carta, finalmente vou poder andar por aí a laurear a pevide.” No dia 13, Raquel regressou, a conduzir o carro pela primeira vez. A avó entregou-lhe uma nota e disse-lhe que levasse a prima a lanchar. “Foi a última vez que a vi. Ela estava muito feliz por mim.”

Isabel e Joana

Ao fim-de-semana, o ritual repetia-se. Isabel Peres ia até casa da neta para um almoço prolongado de domingo. Joana Peres e a avó costumavam sentar-se, lado a lado, e dar as mãos para falarem das histórias do passado. “Tem sido muito duro gerir a distância.”

Joana não está com a avó, de 91 anos, desde que Isabel foi viver para um lar, em Maio de 2020. As visitas têm de ser curtas, e são limitadas, só pode entrar uma pessoa de cada vez. Por isso, são os filhos que mais a visitam.

“Sinto que a saúde da minha avó piorou. Por saudades, por se sentir sozinha, por querer voltar a casa. É muito difícil ver que ela não está feliz, não está em paz, porque não pode ver ninguém.” Joana vai ligando, fazendo videochamadas, quando é possível, mas não substituem as mãos dadas, a família sentada à mesa ao domingo, as telenovelas no final da tarde.

“Os idosos têm perfeita consciência de que são os seus últimos anos e de que estão a perdê-los”, garante Renata Benavente. “Muitos estão a desenvolver quadros depressivos, pelo medo de adoecer e pela privação das actividades normais. Às tantas, há pessoas que dizem preferir morrer da doença do que da cura.”

Também o sobrinho de Joana, de quatro anos, passou um ano distante do avô. “Eles tinham uma relação muito próxima e sinto que pode estar a perder-se.” O sobrinho, diz a viseense de 23 anos, já não terá as memórias de quando era mesmo pequenino com o avô.

“As relações poderão mudar, precisamos de tempo e paciência para perceber como”, explica Magda Nico. No entanto, a socióloga não tem uma “visão catastrófica” da quebra da relação afectiva entre familiares. O tipo de interacção pode ser diferente, mas “as nossas redes de afecto não se dissipam pelas dificuldades da vida”. Para os mais novos, “é possível explicar que o afastamento é involuntário. Falar muito das pessoas, recordar ou criar expectativas sobre o reencontro.”

A saúde mental após a terceira vaga: ansiedade, depressão e stress pós-traumático

Segundo uma investigação do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião (Cesop) da Universidade Católica para o PÚBLICO e para a RTP, feita em Julho de 2020, foram os mais novos que sentiram maior impacto da pandemia de covid-19 na sua saúde mental. Quase metade dos jovens entre os 18 e os 24 anos considerava que o seu estado de saúde mental se agravara, enquanto apenas 17% das pessoas com 65 ou mais anos diziam sentir-se pior do que antes da pandemia.

Um estudo mais recente da Universidade de Coimbra, divulgado a 24 de Fevereiro de 2021, conclui que 14% dos adolescentes, entre os 13 e os 16 anos, apresentam “sintomatologia depressiva elevada durante a pandemia de covid-19”.

A ansiedade e depressão, reforça Renata Benavente, são os problemas mais recorrentes. Deverão surgir, também, “muitas perturbações de stress pós-traumático, sobretudo fruto do que aconteceu nesta fase de grande afluxo de pessoas aos serviços de saúde, e muitos óbitos”. Para a psicóloga, é essencial uma intervenção imediata, pela oferta de mais recursos e respostas nos serviços de saúde mental, “para evitar uma perspectiva remediativa, em que só agimos quando as pessoas já estão doentes”.