1.3.21

O tratado, assinado em Lisboa, que incentiva o aquecimento global

Paulo Pena/Investigate Europe, in Público on-line

Chama-se Tratado Carta da Energia e é um produto de outra era, em que as alterações climáticas eram menos importantes que o acesso a novas fontes de carvão, gás e petróleo. Os 53 países que o assinam abdicam da sua soberania legal e aceitam ser processados por empresas em tribunais arbitrais, pagos a peso de ouro, que, na maioria dos casos, decidem contra os países. A UE e Portugal admitem que se o tratado não for “modernizado” poderão ter de o abandonar. Mas, mesmo que o façam, estarão sob as suas regras, por 20 anos, no futuro.

No dia 17 de Dezembro de 1994 não faltavam notícias em Lisboa. A cidade terminava, nesse dia, a epopeia simbólica de um ano enquanto “capital europeia da cultura”. Por tudo isto, a assinatura de um acordo internacional, com um nome estranho — Tratado da Carta da Energia (TCE) — não ficou na memória de quase ninguém.

A versão original do tratado, como é habitual nestas circunstâncias, ficou guardada nos seis quilómetros de estantes do Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, no Palácio das Necessidades, ao lado de outros documentos do passado. Ainda lá está, disponível para consulta, com muitos anexos, como as 53 ratificações dos países que o assinam. Mas é muito mais do que uma relíquia histórica.

Este documento, assinado há quase 30 anos, em Lisboa, de que quase ninguém ouviu falar, pode tornar-se um dos principais entraves às políticas climáticas que o mundo inteiro aprova, numa luta contra o tempo. Essa é a opinião de muitas ONG e organizações ambientais, mas também da União Europeia. A Comissão da UE insiste no que chama “modernização profunda” do Tratado da Carta da Energia, o que significa alinhá-lo com os objectivos climáticos. Se isto não for possível, todas as alternativas estão sobre a mesa — incluindo a saída, dizem os porta-vozes da Comissão em resposta às perguntas do Investigate Europe. O mesmo promete o Governo português: “Portugal tem vindo a apoiar uma modernização deste tratado que priorize os investimentos em energias renováveis, incluindo o hidrogénio verde. Desta forma, temos vindo a apoiar a necessidade de limitar o âmbito do tratado e dos seus mecanismos, no que respeita à protecção dos investimentos em combustíveis fósseis, bem como das infra-estruturas necessárias à sua exploração e consumo.”

Ao longo dos últimos três meses, os jornalistas do consórcio Investigate Europe avaliaram as implicações deste acordo internacional que protege as infra-estruturas fósseis, que valem, só na UE, Reino Unido e Suíça, 344,6 mil milhões de euros.

Este tratado permite às empresas reclamarem dos Estados milhares de milhões em compensações, decididas por tribunais de arbitragem internacionais, se se sentirem prejudicadas pelas políticas energéticas ou climáticas aprovadas. O tratado é unilateral, porque só as empresas podem processar os Estados, e tem uma redacção extremamente vaga; os tribunais arbitrais reúnem-se em segredo como tribunais-sombra onde muitas vezes nem a reclamação nem a defesa são conhecidas; nalguns casos, nem sequer é tornado público que existem arbitragens. E se um Estado é condenado, raramente é possível que uma decisão arbitral possa originar um recurso perante um tribunal judicial.

O Investigate Europe falou com numerosos peritos, advogados, activistas, políticos e antigos e actuais membros do Secretariado da Carta da Energia em toda a Europa e consultou uma longa lista de documentos internos. Os exemplos mostram que os países estão a enfraquecer as suas leis climáticas mesmo sem processos arbitrais que os condicionem, simplesmente porque têm medo do alcance deste acordo.

Os Governos europeus comprometeram-se a eliminar gradualmente o carvão, o petróleo e o gás, a fim de limitar o aquecimento global a menos de dois graus, no século XXI. Mas o tratado permite às grandes empresas de energia contestar essas medidas e exigir uma compensação elevada pela perda do seu negócio fóssil.

Portugal nunca foi processado nos distantes tribunais arbitrais internacionais onde decorre a litigância. Mas isso não significa que não esteja sujeito à mesma pressão que já se abateu sobre países como a Alemanha, a Itália e a Espanha (recordista mundial no número de condenações). Em resposta às nossas perguntas, o Ministério do Ambiente diz que não dispõe de informação sobre qualquer acordo prévio que tenha solucionado uma disputa com empresas no âmbito deste tratado.

Os accionistas da EDP decidiram, em 2018, numa reunião do conselho geral de supervisão, contestar em tribunal arbitral internacional a decisão do Governo português de exigir a devolução de 285 milhões de euros, recebidos pela empresa ao abrigo dos custos de manutenção do equilíbrio contratual (CMEC). Mas o processo nunca chegou. A EDP esclarece agora que optou por outro caminho legal: “A EDP decidiu impugnar o despacho do secretário de Estado da Energia, num processo que ainda decorre no tribunal administrativo e não arbitral.”

Em muitos casos que consultámos, a simples ameaça de um processo arbitral leva os governos a negociar acordos prévios. Por uma razão muito simples: a taxa de êxito dos processos arbitrais é muito favorável às empresas (60%) que, quando ganham, podem criar problemas sérios aos países.

O Tratado da Carta da Energia foi concebido para proteger os investidores de práticas discriminatórias relacionadas especificamente com investimentos no sector da energia. Foi criado após o colapso da União Soviética como uma forma de fomentar a cooperação política Leste-Oeste. Muitas das antigas repúblicas soviéticas eram ricas em energia, mas eram consideradas arriscadas pelos investidores. Ao mesmo tempo, os países da Europa Ocidental procuravam diversificar o seu abastecimento energético. Mas as preocupações de então criaram um problema diferente, hoje.

Markus Krajewski, professor da Universidade de Erlangen-Nuremberga, fala, portanto, de um “erro histórico”. Os Estados da UE, diz ele, poderiam ter previsto, no início dos anos 90, que o tratado seria um dia utilizado contra eles. Este erro está agora a custar caro aos Estados europeus — e travar projectos legislativos ambiciosos para combater a crise climática.

Itália em risco de pagar “lucros futuros” a petrolífera

A região dos Abruzos, entre as encostas dos Apeninos e os quilómetros de costa do Adriático, é famosa pelas suas reservas naturais e vida selvagem. Mas tem também outras reservas, menos idílicas. O campo petrolífero de Ombrina Mare — “um produtor de petróleo e gás de tamanho médio” —, situado em plena costa, foi descoberto em 2007 pela Mediterranean Oil & Gas, que obteve uma licença para perfurar. Em 2014, a Rockhopper Exploration, sediada no Reino Unido, adquiriu a empresa titular do furo e, juntamente com esta, a licença para Ombrina Mare.

Entretanto, a sociedade italiana já tinha saído à rua para protestar. Enrico Gagliano, fundador do Movimento No Triv (Sem Exploração) contou-nos o que viu acontecer naquela costa de Trabocchi: “Um dia, em 2008, vimos uma pequena plataforma junto à costa, uma abominação. Perguntámo-nos o que era, juntámos forças, começámos a questionar as autoridades, fizemo-nos ouvir”.

Em 2015, o Parlamento italiano decidiu não permitir qualquer extracção de petróleo e gás próxima da costa, decretando assim o fim do projecto Ombrina Mare. Ou assim pensavam os parlamentares de Roma.

Em Março de 2017, a Rockhopper iniciou uma acção judicial ao abrigo do Tratado da Carta da Energia exigindo uma compensação de 29 milhões de dólares pelos investimentos feitos até à data. Compensar as empresas por investimentos realizados num projecto que termina por razões de política ambiental pode até parecer normal. O que já pode causar estranheza é que a empresa também reclame mais 246 milhões, neste caso (segundo o CEO da Rockhopper, Sam Moody), por lucros futuros perdidos. O tratado permite-o, transformando este negócio num caso de estudo em que não existe risco, e os lucros são previsíveis e garantidos à partida (mesmo antes de haver barris de petróleo à venda num mercado volátil e instável).

O advogado do Estado italiano neste caso, Giacomo Aiello, é claro quando nos explica as implicações de uma sentença que dê razão à petrolífera: “Uma derrota nesta arbitragem seria extremamente grave, porque daria a outras empresas, cujos projectos de extracção foram bloqueados, o desejo de imitar a Rockhopper.”

A Itália decidiu sair do tratado em 2016, mas ao abrigo de uma cláusula de caducidade, de 20 anos, pode continuar a ser processada por investimentos feitos antes dessa data, até 2036. A Itália e qualquer país que queira sair do tratado. E há vários…
Vários países querem sair do tratado, Portugal ainda não

Na Primavera de 2017, o então ministro do Ambiente francês, François Hulot, apresentou uma nova lei para proibir a extracção de combustíveis fósseis em França. Pouco depois, recebeu correio. Em nome da companhia petrolífera Vermilion, um escritório de advogados parisiense escreveu: “O projecto viola as obrigações da França como membro do Tratado da Carta da Energia”. O aviso, aparentemente, não passou despercebido. A versão final da lei de Hulot permitiu subitamente a continuação da produção de petróleo e gás, e licenças para novas perfurações até 2040.

Também na Alemanha, o TCE é tido em conta quando novas leis climáticas são redigidas. Todas as centrais eléctricas a carvão na Alemanha deverão ser encerradas até 2038, de acordo com a lei de supressão gradual aprovada em Agosto passado. Mas o governo federal parece querer evitar a todo o custo processos judiciais contra a Carta da Energia. O acordo de eliminação progressiva do carvão assinado pelo Governo federal e pelas empresas de energia RWE e Leag em meados de Fevereiro deste ano contém o seguinte parágrafo: “As partes contratantes concordam que as empresas renunciam às reivindicações e exigências decorrentes do Tratado da Carta da Energia”, diz o acordo. O perito em protecção de investimentos Markus Krajewski diz a este respeito: “Nenhuma empresa renunciaria ao seu direito a uma reivindicação arbitral sem exigir algo em troca.”

Numa análise interna encomendada pelo Ministério da Economia, os peritos estimam os custos adicionais para as duas empresas de energia RWE e Leag resultantes da eliminação progressiva do carvão: seriam cerca de 2,6 mil milhões de euros para a RWE, e 35 milhões de euros para a Leag. No contrato assinado com estas empresas, no entanto, o Governo federal oferece à RWE 2,6 mil milhões de euros em compensação, mas compensa a Leag, que é uma empresa estrangeira que poderia processar a Alemanha sob o TCE, com 1,735 mil milhões de euros, quase 50 vezes mais do que o valor estimado pelos peritos. O Governo federal declara: “A qualidade e alcance da renúncia aos direitos desempenhou certamente um papel na discussão da compensação, mas não foram os únicos factores decisivos.”

A redução dos preços da electricidade na Bulgária em 2014 levou três empresas estrangeiras a a apresentar processos, ao abrigo do TCE. Espanha e República Checa são os países mais visados.

Todas as reclamações contra Espanha têm a sua origem nos incentivos aos investimentos em energias renováveis que o Governo aprovou em 2007 (“o Regime Especial”). Entre 2013 e 2014, em plena crise financeira, a Espanha introduziu uma série de medidas que revogaram o “Regime Especial”, eliminaram os seus benefícios e reduziram a taxa de remuneração das centrais de energias renováveis existentes. Isto culminou em 48 processos arbitrais, 29 dos quais já foram resolvidos. Até agora, a Espanha perdeu 18 (tendo um sido, posteriormente, anulado) e o Governo de Madrid foi condenado a pagar 988 milhões de euros no total.

A empresa portuguesa Cavalum foi uma dessas 18. Em 2020, numa longa sentença, o tribunal arbitral concluiu que, “ao promulgar e aplicar o Novo Regime Regulamentar, a Espanha pôs em causa as legítimas expectativas do requerente”, criando uma situação em que “o retorno dos seus investimentos nas fábricas fica aquém de um retorno razoável por referência ao custo do dinheiro nos mercados de capitais” e, nessa medida, Madrid “também violou a obrigação de estabilidade”.

Nestes casos, são os cidadãos que pagam os lucros imaginários dos investidores. O Supremo Tribunal espanhol tem uma interpretação muito mais restritiva das “expectativas legítimas” que não incluem “lucros perdidos”. O Supremo decidiu, em 2015, que nada impede o Governo de modificar os incentivos às energias renováveis. A Espanha utilizou esta decisão na sua defesa, mas foi rejeitada nos casos de arbitragem.

Um novo tratado parecido com o velho

Os Estados europeus há muito que reconheceram que precisam de agir. Em 2019, encarregaram a Comissão Europeia de modernizar a Carta da Energia. Mas o progresso é lento. Só em Outubro passado, pouco mais de um ano depois, a Comissão fez uma proposta sobre o tipo de energia que deveria ser protegida pelo Tratado da Carta da Energia no futuro. Os países tinham pedido à Comissão que tornasse o tratado significativamente mais ecológico.

A Comissão quer continuar a proteger as infra-estruturas de carvão, petróleo e gás existentes. Novas centrais eléctricas e gasodutos poderiam mesmo ser abrangidas pelo tratado até 2040. Os cientistas há muito que advertem que novas infra-estruturas de gás natural comprometeriam os objectivos climáticos da Europa. Claudia Kemfert, economista climática do Instituto Alemão de Investigação Económica (DIW), disse ao Investigate Europe no ano passado: “Qualquer investimento em infra-estruturas fósseis, incluindo gasodutos de gás natural e terminais de gás natural liquefeito, será um investimento perdido”.

Nos últimos meses, os Estados-membros discutiram a proposta da Comissão. Vários Governos pressionaram para que a posição fosse melhorada. Os Governos enumeraram as suas ambiciosas propostas num documento que consultámos. O Luxemburgo e a Áustria querem proteger as centrais eléctricas alimentadas a gás apenas até 2030. Nas reuniões do Conselho da UE, os representantes da França, Luxemburgo e Espanha também pressionaram para um valor-limite muito mais ambicioso. Sem êxito: a 15 de Fevereiro de 2021, a Comissão apresentou a sua posição final.

Imediatamente após o acordo, o ministro do Ambiente verde do Luxemburgo, Claude Turmes, regozijou-se: “Após meses de esforço, estou satisfeito por ter uma proposta da UE para a modernização da Carta da Energia que está de acordo com o Acordo de Paris”. Paul de Clerck, que está a acompanhar as conversações dos Estados-membros para a ONG Amigos da Terra, chega a uma avaliação diferente. “Nada sobre esta proposta é compatível com o Acordo de Paris ou com o Acordo Verde Europeu”, critica. “Com esta modernização, as empresas poderão continuar a utilizar a Carta da Energia para desafiar a política climática dos Estados.”

Mas mesmo agora que os Estados europeus acordaram numa linha comum, isto não significa que o tratado possa ser modernizado. O Grupo de Modernização do Tratado da Carta da Energia tem vindo a reunir-se há um ano. No ano passado, o grupo reuniu-se quatro vezes. “É incrivelmente técnico”, revela um diplomata que participa nas negociações. “Passámos 16 dias, seis horas de cada vez, nas conversações”. Ele estima que serão necessários pelo menos dois anos até que possa haver um acordo. A próxima ronda de negociações terá lugar no início de Março.

É altamente questionável se haverá então um novo tratado dentro de dois anos que proteja o clima em vez de o pôr em perigo. Todas as partes teriam de concordar com a nova versão do tratado, mas o Governo japonês já anunciou, em 2019, que acredita “que não é necessário alterar as actuais disposições do TCE”.

Exasperados pelas duras negociações, vários ministros franceses recorreram a um meio invulgar. Numa carta dirigida à Comissão, obtida pelo Investigate Europe, escalaram a disputa sobre a modernização. A carta afirma que a modernização “provavelmente não será concluída durante vários anos”. Além disso, os objectivos da UE estão “longe de ser alcançados”. A França quer, portanto, “discutir publicamente” uma “retirada coordenada” da Carta da Energia.

No início de Fevereiro, o Governo espanhol também expressou as suas preocupações. Atingir um acordo que cumpre os objectivos do Acordo de Paris parece “impossível”. Se não fosse possível alinhar o Tratado da Carta da Energia com os objectivos climáticos europeus, a retirada seria a “única solução eficaz a longo prazo”.
“Nada sobre esta proposta [de modernização] é compatível com o Acordo de Paris ou com o Acordo Verde Europeu”Paul de Clerck

Portugal não partilha esta posição de Paris e Madrid. Por isso, a Plataforma Troca e a associação ambientalista Zero lançaram há dias uma petição portuguesa para “travar o tratado que bloqueia o Acordo de Paris”. João Gama, da Troca, explica porquê: “Parece-me um absurdo considerar que ficarmos no tratado e modernizá-lo vai proteger mais o clima do que sair. Não, isso não é verdade.” Mesmo que as propostas da UE fossem todas aceites pelos outros países signatários, o que é muito improvável, isso não bastaria para que os objectivos climáticos fossem atingidos nos próximos anos. “A única solução compatível com a luta contra as alterações climáticas é sair.” Ana Moreno, da mesma ONG, acrescenta que Portugal “não se quer posicionar”, porque tenta evitar “tomar grandes decisões” e está “um pouco à espera do posicionamento de outras instituições”.

Árbitros ganham milhões

Há uma loja no piso térreo da Câmara de Comércio de Estocolmo que vende camas e colchões exclusivos. Isso pode ser uma completa coincidência, mas o desejo de aterrar silenciosa e suavemente é uma das razões pelas quais os investidores de todo o mundo contactam a Câmara de Comércio quando pretendem apresentar pedidos de indemnização contra um Estado. Aqui, podem contar com discrição a todos os níveis.

Para a Suécia, a arbitragem é muito valiosa, diz a secretária-geral, Annette Magnusson. Entre outras coisas, a arbitragem tem um peso em Estocolmo que faz com que se veja um “turismo de disputas”, um fluxo constante de advogados de todo o mundo que vêm negociar casos, principalmente entre empresas, mas também entre empresas e Estados. Segundo Magnusson, eles costumam ficar num hotel durante três semanas, alugar quartos de negociação, sair para jantar todas as noites e comprar presentes para a família no seu regresso a casa.

O número de processos judiciais contra Estados explodiu desde 2000. Vários países da UE ou foram ameaçados com processos judiciais ou foram de facto processados por investidores estrangeiros que são frequentemente também europeus. Em média, os queixosos recebem cerca de 40% do que exigem, uma média de 545 milhões de dólares, de acordo com a organização da ONU Unctad. Os prémios tornaram-se muito, muito elevados, diz Sarah Brewin, consultora de direito internacional do Instituto Internacional para o Desenvolvimento Sustentável: “São elevados porque muitas partes no sistema estão interessadas em que o sistema funcione para os investidores.”

Desenvolveu-se em torno da arbitragem toda uma corte de advogdos especializados e muito bem pagos. Em 2017, os investigadores da Universidade de Oslo registaram 3910 advogados que trabalham com arbitragem internacional a nível mundial. Descobriram que um núcleo poderoso de 25 pessoas — quase todos homens de escritórios de advogados ocidentais — funciona como uma elite de árbitros com muitos casos sob a sua alçada.

“É muito lucrativo ser um árbitro. A remuneração horária em casos de grandes investimentos pode ser de centenas de euros. Os grandes casos duram muito tempo. Um árbitro pode ganhar centenas de milhares num único caso”, diz Ivar Alvik, professor no Instituto Escandinavo de Direito Marítimo da Universidade de Oslo.

Documentos oficiais mostram que L. Yves Fortier recebeu 1,7 milhões de euros como árbitro-presidente no caso verdadeiramente extraordinário da Yukos. Embora não esteja relacionado com o clima, o caso Yukos contra a Rússia, que ditou uma indemnização estatal à empresa de 50 mil milhões de dólares (57 mil milhões de dólares agora, com juros), é a indemnização mais cara da história do TCE e da arbitragem internacional.

Mas os advogados das partes recebem geralmente o maior volume de dinheiro em arbitragem internacional. Os seus honorários são grande parte da factura final do processo. Um inquérito de 2019 concluiu que a empresa tem de pagar uma média de seis milhões de dólares por assistência jurídica, enquanto o mesmo custa aos Estados uma média de 5,2 milhões de dólares para se defenderem.
“Parece-me um absurdo considerar que ficarmos no tratado e modernizá-lo vai proteger mais o clima do que sair. Não, isso não é verdade"João Gama

Alguns dos advogados alternam entre papéis: um dia é juiz nomeado por uma das partes numa disputa, no dia seguinte é advogado de uma empresa ou Estado, noutro dia é testemunha especializada. Isto tem levado a constantes perguntas sobre conflitos de interesses.

O advogado francês, professor de Direito e árbitro Pierre-Marie Dupuy considera prejudicial que os advogados sejam também árbitros: “Penso realmente que sim, e acredito firmemente que os papéis de advogado e de árbitro não devem ser misturados.” O próprio Dupuy participou em muitos processos, como o da Rockhopper versus Itália. Os árbitros precisam de decidir sobre um papel, insiste. “Após algum tempo, quando se tiver tornado mais árbitro do que advogado, deve deixar de ser advogado. E, ao contrário, isso também tem uma dimensão ética.”

A UE quer actualizar o sistema de arbitragem internacional para algo que possa resistir ao escrutínio público. Pia Eberhardt, do Observatório Europeu das Empresas (CEO), é uma crítica ao sistema de arbitragem de investimentos. Ela admite que a proposta da UE está a um passo de tornar um sistema privado num sistema mais público, “mas estas são pequenas alterações nos limites. Não tocam no cerne: um sistema de justiça paralelo para os ricos, à custa do interesse público”.

O texto impreciso do tratado é também culpado, diz Kristian Fauchald, professor de Direito na Universidade de Oslo. “Se tais regras estivessem hoje num tratado, eu nem sequer lhe tocaria com um alicate”, diz.

Nos últimos anos, os investidores da UE processaram os Estados da UE em dois terços de todos os casos de cartas energéticas. Segundo os nossos cálculos, 90% das infra-estruturas fósseis na UE pertencem a um investidor estrangeiro da UE. Um acordo entre os Estados-membros resolveria, portanto, uma grande parte do problema. Mas é altamente improvável que isto venha a acontecer.
Ligações perigosas no secretariado do TCE

Yamina Saheb trouxe a crise climática para o seu apartamento em Paris. Os livros, ensaios e documentos estão empilhados na mesa do café, na sua mesa de trabalho e até no piano. No meio, está a elegante mulher de cabelo curto que se encarregou de chamar a atenção para um tratado obscuro.

“Eu estive a chefiar a Unidade de Eficiência Energética no Secretariado da Carta da Energia entre Outubro de 2018 e Junho de 2019. Uma das minhas tarefas era avaliar se a modernização do TCE poderia tornar o Tratado de Paris compatível. No final de 2018, mostrei que é pouco provável que, durante o processo de modernização, o TCE se torne compatível com o Acordo de Paris. Infelizmente, este trabalho foi interrompido, e as minhas primeiras conclusões nunca foram partilhadas com as partes contratantes do TCE”. Saheb foi despedida em 2019.

No entanto, enquanto os Estados da UE discutem sobre como lidar com a Carta da Energia, enquanto os tribunais arbitrais continuam a ouvir processos de mil milhões de euros, e enquanto Yamina Saheb tenta apoiar os opositores do tratado do seu apartamento em Paris, os seus ex-companheiros estão a mexer para tornar o tratado ainda mais poderoso.

O Secretariado da Carta da Energia, para o qual a Saheb também trabalhou, é uma pequena organização com cerca de 25 empregados. O seu escritório está localizado na zona Oeste de Bruxelas, não muito longe do bairro europeu. A sua tarefa é acompanhar a implementação da Carta da Energia e organizar a conferência anual dos membros. Desde há vários anos, o pessoal do secretariado tem vindo a exercer pressão junto dos Governos africanos para que adiram à Carta da Energia. O secretariado quer expandir-se para países “que têm poucos tratados de protecção de investimentos e não fazem parte da densa rede de tratados”, diz a activista Pia Eberhardt. Quando os Estados africanos se tornam membros da Carta da Energia, diz Eberhardt, há uma “elevada probabilidade” de que também sejam processados.

No Secretariado da Carta da Energia, não é provável que os interesses dos Estados africanos estejam em primeiro plano. Isto é sugerido pela proximidade de um membro líder do secretariado com empresas de energia fóssil.

Marat Terterov, chefe do importante Departamento do Alargamento e responsável pelo recrutamento de países africanos, fundou o Clube da Energia de Bruxelas. O clube é chefiado por um antigo director da Novi Sad, subsidiária da Gazprom. Outros membros são representantes de empresas que comercializam combustíveis fósseis, tais como a Gazprom ou a ENI.

Isto contradiz as regras de conduta do secretariado, que estabelecem que o pessoal deve “evitar situações que possam conduzir a conflitos reais, percebidos ou potenciais entre os interesses pessoais e os da organização”. Mas isso não é tudo: Terterov também trabalhou, a tempo parcial, para dois institutos, o Fórum Geopolítico Europeu e a Parceria Global de Recursos. Os seus clientes incluem a companhia de gás turca EgeGaz e a BP.

Com Elisa Simantke, Harald Schumann, Ingeborg Eliassen, Juliet Ferguson, Leila Miñano, Nico Schmidt, Nikolas Leontopoulos, Maria Maggiore, Sigrid Melchior, Thodoris Chondrogiannos e Wojciech Ciesla

O Investigate Europe é um projecto iniciado em Setembro de 2016 que junta jornalistas de oito países europeus. Tem o apoio das fundações Cariplo (Milão), Stiftung Hübner und Kennedy (Kassel), Fritt Ord (Oslo), Rudolf Augstein-Stiftung (Hamburgo), GLS (Alemanha) e Open Society Initiative for Europe (Barcelona)