Luísa Pinto (texto), Rui Barros (dados e desenvolvimento), Loraine Vilches (desenvolvimento) e Gabriel Sousa (webdesign e ilustração), com Sílvia Jorge e Aitor Varea Oro, in Público on-line
Se as carências habitacionais e a dificuldade de acesso à habitação fossem resolvidos com anúncios, programas, estratégias e debates já não deveria haver um problema de habitação em Portugal. Procuramos perceber que políticas e programas foram lançados e que investimentos foram feitos nos últimos cinco anos. E se contribuíram para resolver alguma coisa.
Há algumas décadas ficou famoso o saco mágico de uma série de animação, o Sport Billy, um rapaz de outro planeta. Não havia criança que não desejasse ter uma Omni-sac, assim se chamava a mala de ferramentas multi-usos que o Billy usava para resolver problemas, concretizar sonhos, alcançar objectivos – havia de tudo lá dentro. Na área de habitação pode dizer-se que há uma mala de ferramentas, porque são muitos os instrumentos, fundos, diplomas, mecanismos e programas já criados. Mas há uma marca que os atravessa: tem-lhes faltado a capacidade de, afinal, serem eficazes — de se ajustarem à realidade.
Depois de na primeira parte desta série termos tentado explicar porque é que aumentaram os preços da habitação em Portugal, enquadrando a situação do país no contexto europeu, e depois de, numa segunda parte, termos tentado problematizar as várias matizes com que se desenha o problema da habitação nacional, vamos procurar agora responder como é que o poder político se organizou para dar resposta aos problemas que afectaram o território de forma desigual. E como as ferramentas criadas chegaram ao terreno e foram utilizadas em benefício (ou não) dos seus destinatários.
No discurso político, os problemas da habitação têm vindo a ser gradualmente assumidos por todos os quadrantes, mesmo que não defendam as mesmas soluções. Ambos os lados têm argumentos para esgrimir e exemplos para dar. À direita, apela-se ao Estado para não obrigar os privados a suportar as dificuldades económicas dos inquilinos, impedindo-os de aumentar as rendas. As rendas estiveram congeladas durante décadas, e argumenta-se haver senhorios com mais problemas económicos que os inquilinos. À esquerda, fala-se de “travar os especuladores”, de impedir despejos e de dar mais estabilidade aos contratos e garantias aos inquilinos.
No entanto, as visões maniqueístas não resolvem o problema. A escala do desafio que se tem pela frente é de tal ordem de grandeza que só um acordo de regime, um consenso entre todos os actores — que sobreviva a diferentes ciclos políticos —, valerá.
Desde que, em Julho de 2015 — ainda era Passos Coelho primeiro-ministro —, se aprovou uma Estratégia Nacional para a Habitação, dizendo ser preciso recolher dados, fazer diagnósticos e partir para as acções, muita coisa mudou.
Quando António Costa chegou ao poder no final de 2015, e formou um governo minoritário e com apoio parlamentar dos partidos à esquerda – a “geringonça”, como a baptizou Vasco Pulido Valente – o tema da habitação não lhe mereceu logo uma pasta, nem uma tutela específica. O dossier caiu na alçada do ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, que tinha em mãos a política de cidades e ordenamento do território. As primeiras medidas tomadas foram lançar instrumentos financeiros — o Instrumento Financeiro Reabilitação e Revitalização Urbanas, mais conhecido como IFRRU2020 —, para incentivar investimentos de reabilitação urbana com verbas europeias, e fundos de investimento, como o Fundo Nacional para a Reabilitação do Edificado (FNRE), com verbas do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social.
Acabou por ser nesse mesmo ministério de Matos Fernandes que ano e meio mais tarde, e 12 anos depois da última vez que uma governante assinara como Secretária de Estado da Habitação (Rosário Águas, no último Governo de Durão Barroso), que a arquitecta Ana Pinho assumiu a pasta. Estávamos em Julho de 2017, e foi apenas aí que o Executivo voltou a ter alguém a debruçar-se exclusivamente sobre as questões da habitação.
Se na frente governativa a atenção na habitação ganhava corpo, na Assembleia da República (AR) a deputada independente eleita pelas listas do PS, Helena Roseta, já tinha criado um grupo de trabalho para debater as questões da habitação, e avançado com uma consulta pública para lançar a primeira Lei de Bases da Habitação. Foi esse o objectivo que assumiu para o seu mandato na Assembleia da República, depois de anos como vereadora da habitação em Lisboa e presidente da Assembleia Municipal daquela cidade.
A “geringonça” ficava, assim, marcada por uma legislatura intensa na qual, por iniciativa ora do Parlamento ora do Governo, apareceram muitas propostas em cima da mesa. Desde diplomas, a instrumentos e programas, houve muito debate e discussão em torno da habitação, em grande parte motivado pelas campanhas e iniciativas lançadas pelos movimentos sociais, como ressaltamos no segundo trabalho desta série. Muitas vezes, o PS do Governo desentendeu-se com o PS da Assembleia e com os partidos mais à esquerda, e teve de ser o actual ministro da Habitação, o então secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, a zelar para que a concertação entre bancadas pudesse chegar a um acordo mínimo.
Formalmente, a primeira proposta da Lei de Bases dava entrada no Parlamento em Abril de 2018. Um mês depois, sem esperar pelos debates na Assembleia da República, o Governo lançava a sua Nova Geração de Políticas de Habitação, um pacote com 17 programas, com o objectivo principal de resolver todos os problemas de carência habitacional até aos 50 anos do 25 de Abril. E sim, o primeiro Governo de António Costa conseguiu chegar ao final da legislatura com uma Lei de Bases aprovada, a 1 de Outubro de 2019, mesmo que esta viesse a obrigar, já na segunda legislatura, a fazer várias adaptações às leis e instrumentos que já tinha no terreno ou, em muitos casos, ainda em fase de arranque.
Na verdade, a articulação entre a Lei de Bases da Habitação e os instrumentos já em vigor não tem sido propriamente oleada. Por exemplo, na sequência da entrada em vigor da Lei de Bases, Portugal passou a ter de aprovar no Parlamento a universalidade do direito à habitação, consagrado na Constituição da República desde 1976. E os municípios passaram a ter de fazer Cartas Municipais de Habitação que, associadas aos respectivos Planos Directores, permitem assegurar um sentido integrado ao investimento nas várias dimensões, desde a habitação até os transportes. Mas, neste momento, a maioria das câmaras municipais ainda está a focar os esforços nas suas Estratégias Locais de Habitação para se poderem candidatar ao 1.º Direito, um dos principais programas dessa Nova Geração de Políticas. Esta situação faz com que autarquias, técnicos e privados se encontrem, muitas vezes, numa encruzilhada entre o urgente (o acesso ao financiamento disponível) e o importante (a planificação e execução estratégica das verbas disponíveis).
Melhor do que nada?
Protagonismos políticos e questões partidárias à parte, certo é que nos últimos cinco anos apareceram muitas ferramentas para resolver o problema habitacional nas suas várias frentes.
De entre os 17 lançados, o programa governamental com execução mais avançada será mesmo o 1.º Direito, com dezenas de protocolos assinados entre as câmaras municipais e o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) para se financiar as soluções para os problemas de carências habitacionais encontradas em cada concelho. Se se concretizassem todas as intenções de investimento celebradas nesses protocolos, no horizonte de cinco anos, isto é, até 2026, as primeiras 25 câmaras que já assinaram os acordos absorviam mais de metade das verbas previstas no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). As primeiras 25, de 308 municípios.
Mas isto coloca outra questão. Qual será a ordem de prioridades e garantia de distribuição equitativa do apoio público? Que impacto terá a velocidade desejada nos critérios de atribuição das obras, da qualidade e do preço final das mesmas? O Governo tem dito que vai apoiar com uma subvenção de 100% os primeiros 26 mil casos de carência que surjam resolvidos, independentemente de onde surjam.
Será, de facto, uma oportunidade para materializar a abordagem integrada e participada preconizada na Nova Geração de Políticas de Habitação? Ou assistiremos a um novo Programa Especial de Realojamento, com a construção de melhores casas em localizações periféricas, acentuando a clivagem social que se pretende combater?
Dir-se-á que algo é melhor do que nada. Mas nem sempre. Quem se vê confrontado com vários problemas, pode não encontrar resposta na sobreposição dos vários programas actualmente em vigor. Como prova o próximo exercício, a conjugação pode até ser contraproducente. Colocamos na mesma casa de partida três proprietários, de cidades diferentes, com a mesma vontade de reabilitar um imóvel — e com os capitais próprios necessários para o fazer — para o colocar no mercado de arrendamento. Fizemos as contas a quantos meses teriam cada um de esperar para reaver o dinheiro investido e a renda máxima que poderiam cobrar, isto no caso de colocarem o imóvel no Programa de Arrendamento Acessível (que limita as rendas a 20% abaixo do valor de mercado) ou no Porta 65 Jovem (que define tectos máximos consoante as localizações dos imóveis). Tivemos uma surpresa — como teve a (inventada) cidadã proprietária de um T1 em Coimbra.
Afinal, até é possível receber incentivos governamentais para colocar no mercado fogos a valores especulativos. Da mesma forma, a noção de “acessível”, calculada em função do valor de mercado e não do rendimento dos beneficiários, tem sido apontada por muitos como insuficiente e enganadora, ou seja, “inacessível”.
Para além da subversão de algumas iniciativas, a implementação das políticas públicas acontece geralmente a uma velocidade inferior à desejada. Entre o reconhecimento do problema, a definição e aprovação de uma política ou programa, e a sua implementação no terreno, a assimilação das ferramentas pelas autarquias, técnicos e restantes envolvidos, exige necessariamente mais tempo do que aquele que o destinatário do programa se pode dar ao luxo de aguardar, sobretudo se estiver numa situação de carência. E mesmo o que tem maiores respostas, o 1º Direito, entre o seu lançamento e apresentação pública, a elaboração de estratégias e aprovação de acordos de financiamento, a verdade é que as obras necessárias, e as soluções desejadas, demoram a chegar ao terreno. Se há ferramentas, o que atrasa ou impede a materialização de respostas? É uma questão de dinheiro?
O foco orçamental
Mesmo que em termos de complexidade fique aquém dos desafios lançados na Nova Geração de Políticas de Habitação, o investimento do Estado na habitação tem sido muitas vezes tema. E vai continuar a ser, sobretudo agora, em que esta área assume uma fatia importante dos projectos a apresentar no âmbito do PRR. Entre subvenções e empréstimos, o Governo espera conseguir investir 2,7 mil milhões de euros nos próximos cinco anos. Será o maior investimento de sempre na área da habitação, prometeu o ministro Pedro Nuno Santos, mantendo a afirmação, depois de ter cortado quase metade da verba que havia anunciado na primeira versão do documento. Quando se conheceram as primeiras linhas gerais do PRR, em Outubro do ano passado, o investimento em habitação seria de 4,3 mil milhões de euros.
Ainda antes de projectarmos o futuro — o plano, afinal, ainda não foi aprovado — vale a pena analisar onde é que o dinheiro foi gasto no passado. O Governo de Passos Coelho fez as contas, quando apresentou a sua Estratégia Nacional da Habitação. Nos 25 anos que decorreram entre 1987 e 2011, o Orçamento de Estado suportou, a fundo perdido, 9,6 mil milhões de euros com as várias políticas públicas relacionadas com a habitação. Este valor dá uma média anual de 384 milhões de euros, como contabilizou Helena Roseta, no artigo “Habitação no orçamento de Estado: uma gota de água”, publicado há um ano na edição portuguesa do jornal Le Monde Diplomatique.
Porventura, tão importante quanto o dinheiro investido é perceber onde ele foi aplicado. Sabe-se para onde foram aqueles quase dez mil milhões de euros em 25 anos: apoiar a aquisição de casa própria. Entre 1987 e 2011, gastaram-se cerca de sete mil milhões de euros (isto é, 73% do orçamento destinado à habitação) em bonificações de juros no crédito à habitação. Os programas de realojamento mereceram 1,3 mil milhões (14,2%), os incentivos ao arrendamento 803 milhões de euros (8,4%), os programas de reabilitação de edifícios tiveram 166 milhões (1,7 %) e os subsídios de renda da segurança social uma migalha de 0,3% de todo o orçamento em 25 anos: 29,2 milhões de euros.
“O Estado deixou de promover directamente habitação pública desde 1982, com a extinção do Fundo de Fomento da Habitação, e foi-se desfazendo da habitação pública que havia promovido. Foi assim que chegámos aqui, muito abaixo da média europeia, com apenas 2% de habitação pública face a 98% de habitação privada. Destes 2%, que representam perto de 121 mil fogos, só cerca de 11 mil estão na alçada do Estado, geridos pelo Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU). Os restantes 110 mil pertencem sobretudo aos municípios, em quem o Estado vem delegando a sua responsabilidade de promotor de habitação pública”, escreveu Roseta no já citado artigo.
Para 2021, o Orçamento de Estado mantém-se na ordem dos 300 milhões de euros, mas será à partida aplicado noutra direcção, revelando, como mostram os gráficos no início deste texto, uma mudança de paradigma ao nível do discurso. Nas notas explicativas para o Orçamento de Estado deste ano, o ministro Pedro Nuno Santos adianta onde pretende aplicar o dinheiro: 154 milhões de euros para “a reestruturação do parque de habitação social, nomeadamente no âmbito do programa 1º Direito”; 100,8 milhões para “a promoção de um parque habitacional público e cooperativo a custos acessíveis, a par com o desenvolvimento de instrumentos de intervenção e regulação do mercado de habitação já existentes”; 9,3 milhões de euros para “a criação de uma resposta habitacional urgente e temporária”; 13,6 milhões para a reabilitação do parque habitacional do IHRU actualmente devoluto; e cerca de 24 milhões de euros para o programa Porta 65 Jovem, entre outros subsídios de renda.
Num seminário organizado recentemente pela Associação de Inquilinos de Lisboa (AIL), para assinalar os seus 97 anos de actividade, ressaltou-se um “passo histórico para a agenda da União Europeia” — a aprovação do Relatório de Iniciativa sobre o Acesso a Habitação Digna e Acessível para Todos em Janeiro deste ano. Esta aprovação pode trazer mudanças significativas na política europeia de habitação. A Comissão deverá reagir a este relatório de iniciativa e propor medidas legislativas e financeiras a acordar e aprovar pelos Estados-membros.
Até agora, e de acordo com o Protocolo 26 do Tratado da União Europeia (TFUE), relativo aos serviços de interesse geral, o fornecimento de habitação social a preços acessíveis continua e deve permanecer sob a competência nacional. Mas o Parlamento insta a Comissão a usar as competências relacionadas com o mercado da habitação (como sejam política monetária, empréstimos, crédito e hipotecas) a intervir em prol da habitação social e acessível. A relatora Kim Van Sparrentak, e a presidente da União Internacional dos Inquilinos, Marie Linder, estiveram presentes no seminário da AIL, onde disseram ter ficado demonstrado que o mercado não resolve os problemas de habitação, e que têm de ser os governos nacionais a fazê-lo.
Pela voz de Marina Gonçalves, actual Secretária de Estado da Habitação, o Governo português diz não desdenhar esse repto, e vai aproveitar todas as oportunidades. No quadro do PRR, a componente da habitação passa a absorver uma fatia importante do investimento público. O Governo de António Costa inscreveu 1251 milhões de euros para financiar a resolução dos 26 mil casos de carência habitacional identificados no levantamento realizado pelo IHRU em 2018. O que o Executivo fez foi aproveitar o PRR como uma oportunidade para financiar e acelerar o 1.º Direito, um programa que já existia antes de haver crise pandémica e antes de haver PRR.
Para além dos 1251 milhões de euros para o acesso a habitação condigna inscrita no PRR, também estão 300 milhões de euros destinados à melhoria da eficiência energética dos edifícios — via Fundo Ambiental. Ainda no capítulo das subvenções, o Governo quer também ir buscar 186 milhões de euros para criar a Bolsa Nacional de Alojamento Urgente, de forma a poder dar uma resposta estruturada e transversal às pessoas que precisam de soluções de alojamento de emergência (devido a acontecimentos excepcionais ou imprevisíveis, como uma pandemia, por exemplo) ou de transição (como os sem-abrigo, situações que, pela sua natureza, necessitam de respostas de alojamento de acompanhamento antes de poderem ser encaminhadas para uma solução habitacional definitiva).
Por fim, pretende-se também aumentar o papel do poder público no sector da habitação através da colocação dos seus próprios imóveis no segmento acessível, aumentando a oferta e contribuindo assim para a baixa dos preços de mercado. Uma das últimas medidas que tomou foi criar uma bolsa pública de imóveis, promovendo o levantamento do património habitacional do Estado que esteja devoluto ou possa ser reconvertido, para a promoção de arrendamento a preços acessíveis. E para este objectivo, inscreveu na componente de empréstimos no âmbito do PRR uma verba de 774 milhões de euros.
Feitas as contas, parece que estamos perante um dos maiores investimentos de sempre na habitação. Contudo, ainda nada está garantido. A “bazuca” europeia não está ainda formalmente aprovada e os problemas estão a resolver-se a conta-gotas, como o desconfinamento da pandemia que decretou o primeiro-ministro. As rendas começaram a descer marginalmente, o preço das casas congelou. Até quando?
Afinal, (o que) vai mesmo acontecer?
Futurologia à parte, olhemos para as propostas, mas também para o que tem vindo a acontecer no terreno. Interessa, não só perceber o que se quer fazer, mas também a capacidade real para aceder às ferramentas e o interesse de quem se quer alinhar noutra direcção. Para além do financiamento, de inegável importância, as motivações, o tempo de duração dos programas ou a complexidade burocrática associada à sua implementação, são ingredientes de uma receita difícil de agradar a todos.
Voltemos a olhar para o que já se fez e avaliar a adesão e respectivo impacto de algumas das ferramentas lançadas. Orientar mais dinheiro para a entrada de casas e mais casas no mercado não parece, por si só, garantir o efeito desejável. Antes pelo contrário. Prova disto são os investimentos apoiados pelo IFRRU2020, que já vão em 800 milhões de euros, e não serviram apenas a habitação nem impuseram nenhuma obrigatoriedade contratual de colocar no mercado habitação a preços acessíveis.
Também não parece viável criar alternativas capazes de concorrer com o lucro obtido num mercado aquecido, designadamente com a entrada de investidores e consumidores internacionais. Há um instrumento criado pelo próprio Governo que mostra como tem sido difícil conseguir a desejada geografia de investir na reabilitação, baixar as rendas e garantir rentabilidade. O Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado (FNRE), que pretendia aplicar verbas do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social na recuperação de imóveis, garantindo taxas de rentabilidade (4%) e aplicando preços acessíveis nas rendas ainda não arrancou com uma única obra, quase cinco anos depois de ser lançado.
Apesar de ter conseguido menos de 400 contratos em todo o país, o Governo mantém como prioritário o Programa de Arrendamento Acessível (PAA), que isenta os proprietários de tributação de rendimentos nos fogos que arrendem 20% abaixo do valor de mercado. E se chegar aos imóveis que já estão no mercado de arrendamento de longa duração é difícil, fazer com que novos senhorios adiram parece quase impossível. Os programas municipais com que avançaram as câmaras de Lisboa, Porto e Matosinhos, são exemplo disso. Mesmo agora, que os fogos estão vazios, com a ausência de turistas. A exigência de que esses contratos sejam, no mínimo, de cinco anos é uma das razões que levam os proprietários e promotores a afastarem-se deste segmento. Confrontada recentemente com esta fraca adesão, numa entrevista ao Jornal de Negócios e à Radio Renascença, a secretária de Estado da Habitação, Marina Gonçalves, admitia não saber “como tornar mais atractivo o arrendamento acessível”.
As dificuldades não estão apenas no modelo económico e financeiro. O Governo assume que quer estabilidade contratual. Os promotores privados querem estabilidade legislativa — e ao longo dos anos têm-se queixado das muitas alterações que as leis do arrendamento têm sido sujeitas, alegando falta de confiança e estabilidade neste sector. Mas, agora mesmo, continuam em cima da mesa muitas vozes e propostas a falar da necessidade de revisitar a Lei das Rendas, e fazer uma nova Lei do Arrendamento.
Por onde se começa?
Já em 1981, o sociólogo Manuel Castells frisava as limitações de analisar isoladamente o poder governamental, sublinhando a necessidade de interligar a acção (e o poder) do capital, do Estado e dos movimentos sociais, que falam dialectos aparentemente diferentes e raramente consonantes, mas escrevem conjuntamente, com pesos e medidas diferentes, a gramática da cidade.
De facto, a sociedade civil, mais ou menos organizada em movimentos cívicos ou em colectivos activistas, também tem escrito parte da história dos últimos anos em Portugal. Com pedidos e reivindicações que acabam por influenciar partidos com representação na AR (as alterações ao direito de preferência dos inquilinos sob a venda do seu locado avançaram após os protestos dos antigos inquilinos da Fidelidade, por exemplo), ou com iniciativas de intervenção directa, como as muitas que fez a Stop Despejos e a Associação Habita.
Quem continua a depender das respostas do Estado para, em muitos casos, sobreviver, desespera com a espera. Um exemplo entre os muitos e variados de que o PÚBLICO vai tendo conhecimento: o caso de Diana Ribeiro, 34 anos, 9º ano de escolaridade, mãe solteira, quatro filhos — de 13, 9, 7 e 4 anos —, sem pensão de alimentos e com rendimento social de inserção (RSI), e que não encontra resposta pública para o seu problema habitacional. E junta o RSI e o abono dos quatro filhos para pagar uma renda de 350 euros numa habitação quase lúgubre numa ilha em Campanhã.
Por não estar recenseada no Porto há mais de cinco anos (trabalhou num hotel rural em Espanha que fechou, regressou a Portugal, e à casa do pai, há pouco mais de dois anos), Diana está impedida, em termos regulamentares, de instruir pedido de alojamento na Câmara Municipal do Porto. Com a ajuda dos serviços de acção social da Junta de Freguesia de Campanhã, escreveu ao ministro Pedro Nuno Santos a pedir ajuda. Estávamos em Outubro de 2019, o ministério reenviou o pedido ao IHRU. Em Novembro, o IHRU respondeu, alertando Diana que ela podia, e devia, efectuar um pedido de apoio habitacional na plataforma electrónica de arrendamento apoiado. “Quem não dominar as tecnologias de informação fica automaticamente excluída”, reclama Diana que, por estes dias, andou mais preocupada em assegurar a forma como os seus filhos marcavam presença e participação nas aulas online.
Diana não se considera infoexcluída, o pedido está feito há muito. Mas, quando consegue ser atendida na Delegação Regional do Porto do IHRU, a resposta que tem é que não há casas disponíveis. E que tem de continuar a aguardar. Mas, uma vez mais, até quando e em que circunstâncias? Se as carências habitacionais e a dificuldade de acesso à habitação fossem resolvidos com anúncios, programas, estratégias e debates já não deveria haver um problema de habitação em Portugal.
Recorremos ao arquitecto Nuno Portas para deixar a questão essencial que já ele havia lançado em 1986 como sendo típica de todas as fases de transição: “A questão de saber por onde se começa”. “Se se começa pelos decretos e pelas leis ou se se começa por processos que alterem as condições e as relações de força, para que as leis sejam já a recolha dessas experiências e a sua necessária consolidação, no caso de serem boas e de a relação de forças ser favorável”, escreveu num texto em que fez a análise entre o Estado e o poder local.
No último capítulo desta série, vamos reflectir sobre como podemos passar do país que temos ao país que queremos, dando o salto dos programas (como vimos demasiado específicos e instáveis) às políticas (duradouras e estratégicas). Não será o problema da habitação apenas um dos sintomas de uma crise generalizada? Será possível deixar de abordar o território como quem puxa um lençol, que cobre a cabeça à custa de deixar os pés de fora?