20.4.21

O que fez disparar o preço da habitação nos últimos anos?

Luísa Pinto (texto), Rui Barros (dados e desenvolvimento) e Gabriel Sousa (webdesign e ilustração), com Sílvia Jorge e Aitor Varea Oro, in Público on-line 

A escalada de preços e as dificuldades no acesso à habitação tornaram-se tema global e problema sistémico um pouco por toda a Europa. Mas é possível fazer uma leitura do caso português, no contexto europeu, para perceber como chegámos até aqui. As alterações no quadro financeiro e legislativo, as novas dinâmicas que passaram a estruturar o mercado imobiliário levaram a aumentos em flecha. Os rendimentos dos portugueses não acompanharam esta subida.

Aumento em cima de aumento, em cima de aumento. Seja quem anda à procura de casa para comprar, seja quem anda à procura para arrendar, tem sempre a mesma impressão. O preço das casas não tem parado de aumentar, de ano para ano, mês após mês. E os rendimentos, os salários, nunca crescem ao mesmo ritmo.

O Eurostat, a entidade estatística europeia, monitoriza um indicador muito relevante para acompanhar esta problemática, o Housing Cost Overburden. Dito assim, em inglês, talvez se perceba melhor do que se está a falar — a sobrecarga, o fardo que é suportar o preço da habitação, incluindo as contas de electricidade, água e gás, por exemplo. Em português chamamos-lhe “taxa de esforço”.

Em 2010, os arrendatários com taxa de esforço superior a 40% em Portugal era de 17,6%. Estávamos, então, muito perto da situação da Alemanha, que registava 16,7%, e bastante abaixo da média europeia, que era de 24,1%. A Espanha, por exemplo, estava já nuns inconcebíveis 43,4%, em vésperas de estourar a bolha do imobiliário, espoletada com a chamada “crise do subprime", que em 2008 assolou o mercado norte-americano, primeiro, e depois o mundo. No final da década, em 2019, alguma coisa mudou. Os inquilinos com taxa de esforço superior a 40% dos países da União Europeia estava nos 26,2%, ou seja, aumentou cerca de dois pontos percentuais. Quase os mesmos que aumentou na Alemanha, que passou de 16,7% para os 18,3%. Mas a de Portugal disparou dos 17,6% para os 26,3%. A de Espanha melhorou um pouco, mas continuou gritante: passou de 43,4% para 37,4%.

Todos sabemos a falácia que podem trazer as estatísticas e a velha história de que, havendo duas pessoas e apenas uma galinha, cada uma delas irá comer metade. Sabemos que não, que os números enganam muitas vezes. Sabemos, por exemplo, que mesmo dentro de fronteiras o problema do acesso à habitação em Portugal não é o mesmo nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto ou numa vila como Freixo de Espada à Cinta ou Fornos de Algodres. Mas o indicador da taxa de esforço ainda é, mesmo assim, um dos melhores para nos mostrar como em algumas regiões de Portugal o assunto assume um carácter de crise — ainda mais exposta, aos olhos de todos, com a pandemia de covid-19, altura em que ter casa não é apenas um direito (assim o diz a Constituição da República) ou uma necessidade, é também um caso de saúde pública.

Mas o que fez disparar o preço da habitação nos últimos anos? Porque é que em Portugal o problema se tornou mais grave do que em outros países da Europa? É o preço das casas que é muito alto, ou são os salários dos portugueses que são muito baixos? Propomo-nos responder a estas questões no conjunto de trabalhos que vamos publicar nas próximas quatro semanas, num diálogo entre o protesto e a proposta, de forma a ampliar o retrato do país e as respostas à crise habitacional que atravessa. Arrancamos esta série de análises fazendo uma espécie de voo panorâmico ao contexto europeu, para percebermos como tudo se passou até chegarmos ao ponto em que estamos, mas também a dimensão global e sistémica que esta crise assume. 

Começar com a teoria do caos é um bom ponto de partida. Foi assim que se lhe referiu pela primeira vez Edward Lorenz, quando quis demonstrar que um bater de asas num determinado ponto do globo pode desencadear uma tempestade do outro lado do mundo. Regressemos, então, à já aqui invocada crise do subprime em 2008, nos Estados Unidos da América. Os créditos de risco então concedidos a tomadores que não ofereciam garantias de pagamento, assentes na lógica de uma valorização contínua de mercado, foi a borboleta. Ou um exército de borboletas, que acabou por provocar um tsunami mundial. O sector financeiro, o primeiro responsável por aquela crise, continuou a ditar as regras e acabou a engolir a capacidade de os Estados intervirem assim que se confrontaram com as dívidas soberanas.

Foi a crise da dívida pública que instalou a troika em Portugal, e foi a emergência financeira que sustentou o avanço do novo quadro regulamentar que alterou o panorama habitacional. À conta de um empréstimo de 78 mil milhões de euros junto da tríade composta pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), a Comissão Europeia (CE) e o Banco Central Europeu (BCE), Portugal perdeu alguma soberania, ficando nos anos seguintes submetido ao guião redigido pela troika.

A troika foi formalmente abordada pelo Governo português em Abril de 2011. A mudança na Lei das Rendas — — a chamada “Lei Cristas¨, porque era Assunção Cristas, do CDS-PP, quem tinha a tutela da Habitação — deu-se em 2012. Esta lei impôs a liberalização das rendas, especificamente um prazo de transição de cinco anos para que o valor das rendas se pudesse reger pelo mercado. Também foi em 2012 que arrancou o programa conhecido como "Vistos Gold" destinado a captar investimento estrangeiro. Estas duas medidas acabaram por ser determinantes na evolução dos preços tanto no mercado da venda, como no mercado de arrendamento. Falta juntar o sucesso de Portugal como destino turístico de eleição para termos o terceiro elemento desta outra troika, fechando a tríade que mais contribuiu para o legado da financeirização da habitação, a que se refere a própria Organização das Nações Unidas (ONU).

A história legislativa ajuda a explicar a evolução dos preços das rendas e de venda da habitação em Portugal.

Maio 2011

Assinatura do Memorando da troika. Portugal ficou sob assistência financeira internacional e esteve sob escrutínio da Comissão Europeia, BCE e FMI durante três anos

Agosto 2012

Alteração à lei de Estrangeiros, que introduziu os "vistos gold"

Novembro 2012

É publicada a chamada "Lei Cristas" com alterações ao Novo Regime de Arrendamento Urbano, que aprofundou a liberalização do mercado de arrendamento

Agosto 2014

É aprovado o regime jurídico da exploração dos estabelecimentos de alojamento local

Abril 2018

Lançada a Nova Geração das Políticas de Habitação, composta por 17 programas

Setembro 2019

Aprovada a Primeira Lei de Bases da Habitação (Lei n.º 83/2019)

A habitação como mercadoria

O que é que este vocabulário tem que ver com o preço da habitação? Nada, pensarão alguns. Tudo, diria Manuel B. Aalbers, investigador da Universidade de Lovaina, que com os seus estudos tem centrado a habitação na lógica da economia política, definindo em 2017 a financeirização enquanto “o domínio crescente de actores financeiros, mercados, práticas, medidas e narrativas, em várias escalas, resultando numa transformação estrutural das economias, das empresas (incluindo instituições financeiras), Estados e famílias”.

Dito de forma mais simples: no seio do sistema capitalista, o sector financeiro é aquele em que se acumula riqueza sem recurso a meios de produção propriamente ditos. Não são necessárias matérias-primas nem máquinas. A lógica da economia financeira é fazer mais dinheiro do que o dinheiro que se tem.

David Madden, professor de Sociologia na London School of Economics and Political Science, e Peter Marcuse, professor emérito da School of Architecture, Planning and Preservation da Universidade de Colúmbia, no livro In Defense of Housing (“Em defesa da habitação”), centram o tema: “A habitação transformou-se numa mercadoria, tornando as desigualdades da cidade cada vez mais agudas. O lucro tornou-se mais importante do que a necessidade social. Os pobres são forçados a pagar mais por casas piores. As comunidades enfrentam a violência do deslocamento e da gentrificação. E os benefícios de uma habitação condigna estão disponíveis apenas para quem os pode pagar.”

O tema da financeirização da habitação está a ser estudado um pouco por todo o mundo. Em Portugal também. Ana Cordeiro Santos, investigadora da Universidade de Coimbra, dedicou-se exaustivamente ao tema enquanto coordenadora do Finhabit, um projecto de investigação que culminou na publicação de“A nova questão da habitação em Portugal” pelo Observatório sobre Crises e Alternativas. Este trabalho mostra como o nexo finança-habitação tem vindo a acentuar desequilíbrios e desigualdades. O escrutínio feito às políticas públicas levadas a cabo em Portugal atesta que agravaram a transformação da habitação num activo financeiro transaccionável. Entre as políticas públicas lançadas no período compreendido entre 1987 e 2011 sobressai o apoio dado à bonificação de juros do crédito à habitação, que consumiu 73% do financiamento público atribuído ao sector habitacional.

Os apoios públicos em Portugal serviram, pois, sobretudo para incentivar a compra de casa própria com recurso ao crédito bancário, o que ajuda a perceber porque é que nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto 68% e 67% das famílias, respectivamente, são proprietárias da casa em que habitam. Nos outros casos, que envolvem as famílias de menores recursos financeiros, os municípios poderiam assegurar o acesso à habitação a custos controlados ou com rendas sociais.

Mas quando se começou a instalar a crise financeira em Portugal, e era então o actual primeiro-ministro, António Costa, presidente da Câmara de Lisboa, chegou a equacionar-se a venda de bairros municipais na capital, à semelhança do que já estava a ser feito noutras cidades da Europa. Berlim, por exemplo, foi vendendo os seus bairros municipais. Só em 2004 vendeu uma empresa municipal que geria 65 mil fogos a um consórcio de empresas em que sobressaem fundos internacionais como a Goldman Sachs ou o Cerebus.

António Costa não vendeu os bairros municipais — mas pensou seriamente nisso, como contou, anos mais tarde, a então vereadora da Habitação e posteriormente presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, Helena Roseta. Em Lisboa houve, no entanto, outros exemplos, como a venda do portfólio de habitação da Fidelidade ao fundo Apollo, dos chineses da Fosum. E, de repente, os inquilinos de 271 imóveis, espalhados por todo o país, mas com particular incidência em Lisboa e Porto, mudaram de senhorio. A Apollo, que pagou 425 milhões de euros por esta carteira de imóveis, nunca escondeu que pretendia aliená-los de novo — e por causa disso não lhe foi cobrado, na altura da transacção, o respectivo Imposto sobre Transacção de Imóveis (IMT).

Ao mesmo tempo que as autoridades de supervisão europeias instavam os bancos a livrarem-se dos seus ativos tóxicos — o que incluía os portfólios imobiliários não rentáveis —, em Portugal abria-se (mais) a porta ao investimento estrangeiro.

O sector imobiliário em Portugal — que não sofreu com os efeitos de uma bolha, como em Espanha, mas onde também houve uma descida abrupta de preços — respirou de alívio, quando se avançou com os incentivos à captação de investimento estrangeiro. Luís Lima, presidente da Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária (APEMIP), refere que o programa de “vistos gold” foi o balão de oxigénio que permitiu ao sector manter-se à tona.

Em Agosto de 2012 foi publicada uma alteração à lei de estrangeiros que previu, pela primeira vez, a atribuição de uma autorização especial de residência por investimento (ARI) a todos os cidadãos estrangeiros que, entre outros critérios, pudessem investir 500 mil euros em imobiliário. Esta autorização de residência acabou por atrair investidores de vários cantos do mundo, que, à custa de meio milhão de euros, conseguiam acesso ao espaço Schengen e não tinham sequer obrigação de permanecer em Portugal mais do que uma semana por ano.

Em 2012 ainda foram atribuídos dois vistos. Em 2013, dispararam para 494; em 2014, foram atribuídos 1526, o máximo de sempre. Em 2015 foram 766; 1414 em 2016, 1351 em 2017, 1409 em 2018, 1245 em 2019 e no ano passado, ano de pandemia, 1182. Nos oito anos que leva de vigência, foram atribuídos 9389 “vistos gold”. Isto dá uma média de menos de duas mil casas por ano. Se pensarmos que todos os anos há cerca de 150 mil transacções, não deveria ser o investimento feito em dois mil casos que iria intervir na fixação de preços.

Esse é o argumento que a Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII) avança para recusar a ideia de que os “vistos gold” são responsáveis pela especulação. “Não foram os 56 ‘vistos gold’ concedidos na Área Metropolitana do Porto em cinco anos e meio que provocaram a especulação imobiliária”, dizia ao PÚBLICO Hugo Santos Ferreira, referindo-se aos dados conhecidos desde o arranque do programa, em 2013, até ao final do primeiro semestre de 2018, última vez que o Ministério da Administração Interna informou sobre a localização geográfica dos vistos concedidos, a pedido de um deputado do Bloco de Esquerda.

Foi a olhar para esses números que o PÚBLICO percebeu que, desde o final de 2012 (início dos “vistos gold) até ao final de 2017, o concelho de Lisboa concentrou 47% dos “vistos gold” ligados ao imobiliário (correspondentes a 2423 ARI), cabendo outros 13% a Cascais (672 ARI). Já o Porto ficou-se pelos 1% (31), o que coloca este concelho atrás de outros da Área Metropolitana de Lisboa, como Oeiras e Sintra ou até Palmela e Almada.

Evolução dos "vistos gold "


Mas as estatísticas gerais mostram-se, uma vez mais, enganadoras. Ou, pelo menos, não contam a história toda. Susana Coroado, presidente da Transparência e Integridade, refere que a especulação imobiliária e o aumento do preço das casas é apenas um dos factores que deviam levar o Governo a cancelar o programa, pura e simplesmente. O outro é a falta de transparência na origem do dinheiro, e o princípio de que a cidadania não deveria estar ao alcance de um cheque. Porém, a intenção não é essa. O objectivo do governo, anunciado há já um ano, mas que só deve entrar em vigor em Julho, é restringir a concessão dos "vistos gold" apenas a quem faça investimentos em áreas de baixa densidade populacional. A APPII diz que se vão perder, pelo menos, 700 milhões de euros de investimento em apenas um ano. “E esse é um valor que não se pode desperdiçar numa altura em que é preciso relançar o sector e a economia”, diz Hugo Santos Ferreira, presidente da associação de promotores, em jeito de apelo.

Mas a APPII viu algumas brechas de oportunidade na lei entretanto publicada — as restrições limitam-se a fogos para habitação, pelo que o turismo parece ficar de fora. Para além disso, como notou Hugo Santos Ferreira, zonas litorais do Algarve a da costa alentejana continuam a ser interior. “É para aí que os promotores vão canalizar as forças de venda – porque, não tenhamos dúvidas, ninguém quer ir para o interior, não com a falta de planeamento e os atrasos nos processos de licenciamento”, argumenta.

Na primeira conferência da Promoção Imobiliária realizada em Portugal, em Setembro do ano passado, José Cardoso Botelho, CEO da Vanguard Properties, relembrou que “Portugal não está sozinho no mundo”. “Há muitos países que têm programas parecidos, com outros nomes, mas que no fundo são a mesma coisa e que estão muito activos e a olhar para Portugal”, afirmou, referindo-se a países como “Espanha, Grécia ou Itália, entre outros”. “Neste momento, estão a olhar Portugal com muita atenção e, eventualmente, vão propor soluções que visem desviar os investidores de Portugal para esses países”, alertou.

A concorrência de cidades

A competição entre países e entre cidades foi um discurso que se instalou no sector imobiliário nos últimos anos. Afinal, a principal razão do sucesso de Portugal tinha a ver, sobretudo, com a criação de uma imagem de marca concorrencial no circuito internacional. E, nesse aspecto, e sobretudo no circuito turístico, Portugal e Lisboa em particular andaram nas bocas do mundo. Lisboa foi eleita o principal destino de férias de cidade em 2017, 2018 e 2019 pelos World Travel Awards. Em 2019, o número de turistas em Lisboa atingiu quase 12 milhões, mais de 20 vezes a sua população residente.

Os pequenos proprietários viram aqui uma fonte de rendimento — e foram colocando imóveis não no segmento residencial, e nos arrendamentos de longa duração, mas nos segmentos turísticos, alugando à noite e não ao mês, conseguindo assim elevadas taxas de rentabilidade. Os números de alojamentos locais dispararam.

Esta dinâmica foi positiva nisso — na reabilitação dos centros das cidades — porque pela primeira vez, e como já não acontecia há muitos anos, era possível fazer a reabilitação de um imóvel degradado e conseguir mais do que recuperar o investimento. Era possível ter lucro depois da reabilitação. Foram conhecidas muitas histórias de investidores que nem chegavam a fazer as obras: compravam por um preço e vendiam com grandes margens de lucro no mês seguinte, para ser construído um hotel, ou vários apartamentos para colocar no segmento turístico, quase sempre.

Nos rankings organizados todos os anos pela consultora PwC e pelo Urban Land Institute, Lisboa chegou a ser considerada a melhor cidade europeia para investir no imobiliário. Em 2020 passou para a 10.ª posição, mas ainda lá estava, nos lugares de topo. Em 2021 desceu para 15.ª, com Berlim a assumir a dianteira.

As cidades espanholas de Madrid e Barcelona também caíram neste ranking, para o 8.º e o 13.º lugar, respectivamente. Explica-se, no relatório, que os desafios económicos que enfrentam as cidades do Sul da Europa na sequência da crise pandémica “são demasiado elevados para justificar uma recuperação rápida”. Um dos consultores citado no estudo — que, estranhamente, nunca são identificados — refere que estas três cidades dependem muito do sector do turismo, e este foi um dos que mais sentiu o impacto causado pelo novo coronavírus.

As ondas de investimento fazem-se assim. Surgem e desaparecem. A financeirização da habitação e a gentrificação de cidades como Lisboa e Porto são comuns a outras cidades europeias, reflectindo um problema global. O mais recente estudo da Comissão Europeia sobre o Futuro das Cidades, com um capítulo dedicado ao tema da habitação acessível, atesta isso mesmo: nos mais de 220 milhões de lares que existem na Europa, cerca de 82 milhões de cidadãos gastam mais de 40% do seu rendimento nas despesas com a habitação, a tal taxa de esforço que começámos por referir.

De acordo com esse estudo, um trabalhador em Munique precisava, em 2008, de juntar todos os salários e rendimentos de cinco anos de trabalho para conseguir comprar um apartamento de 60 metros quadrados. Uma década depois, em 2018, esse valor disparou para nove anos de trabalho.

Do lado das consultoras e dos promotores imobiliários, a subida dos preços também não passa despercebida. No seu último relatório sobre mercados residenciais, a Delloite ocupou-se em tentar perceber o quão difícil pode ser para os habitantes de vários países europeus comprar casa. E, analisadas várias cidades europeias, a maior desproporção no preço das casas foi encontrada precisamente em Lisboa. A capital portuguesa é a única em que a habitação é três vezes mais cara do que a média nacional — 336%! Mais do que Paris (284%), Londres (199%), Barcelona (240%) ou Berlim (147%). No Porto a desproporção também é elevada, atinge os 191%.

Mas se os problemas são idênticos, as medidas que os respectivos governos têm usado para os mitigar têm sido diferentes. E o que se pode ver em Berlim, por exemplo, onde o problema do acesso à habitação não é tão grave como em outras cidades, estão no terreno medidas mais musculadas do que as que vão sendo aplicadas em Portugal.

Para reagir às rendas altas em Berlim e melhorar o acesso à habitação, o governo regional e o Senado de Berlim têm apostado, nos últimos anos, não só em avançar com novas construções, como em comprar apartamentos existentes, assumindo a “remunicipalização” como instrumento para contrariar o aumento das rendas e a especulação imobiliária.

Mas uma das medidas regulamentares que têm dado mais polémica, e que emanou não do governo da cidade, mas do próprio Governo federal, consiste na limitação administrativa ao aumento de preços — o chamado “ Mietpreisbremse” —, um projecto central da política do mercado habitacional alemão dos últimos anos que arrancou em 2015. Esta legislação trava o aumento das rendas, obrigando os senhorios a limitá-las assim que recolocam os seus imóveis no mercado. A lei define que não poderá cobrar rendas acima dos 10% do valor de referência na localização em causa. O regulamento não se aplica automaticamente, mas apenas em áreas onde há uma situação tensa e insustentável no mercado imobiliário (e que são definidas pelos governos regionais) e há muitas excepções, como apartamentos recém-construídos ou objecto de intervenções profundas.

O Instituto Alemão de Investigação Económica (Deutsches Institut für Wirtschaftsforschung – DWI) fez em 2018 uma avaliação a este instrumento, revelando que o travão para os preços no aluguer não estava a abrandar visivelmente o aumento geral das rendas. A lei foi revista e manter-se-á em vigor até 2025. Desde Janeiro de 2019 que os senhorios são obrigados a revelar ao novo inquilino o valor da renda que cobravam ao inquilino anterior, e desde Abril de 2020 que os arrendatários podem recuperar o valor pago em excesso retroactivamente nos primeiros dois anos e meio do contrato.

Em Portugal, há uma “mala de ferramentas”, como se referiu a impulsionadora da primeira Lei de Bases da Habitação, Helena Roseta, aos muitos programas e instrumentos que podem ser usados e criados para acudir aos problemas que foram sempre crescendo. Mas sobre essa mala de ferramentas falaremos em profundidade noutra edição. Por enquanto, avançamos apenas com alguns das muitas designações que existem para as rendas com limites fixados administrativamente: “renda social”, “renda apoiada”, “renda condicionada” e, mais recentemente, “renda acessível”. Mas, como vem notando o Governo, sobretudo o actual ministro com a pasta da Habitação, com apenas 2% do parque habitacional como património público é difícil influenciar os preços do mercado. Portugal está na cauda da Europa neste indicador, e Pedro Nuno Santos assume que agora a prioridade é aumentar o parque público, e lamenta que no passado ele tenha sido alienado. E lamenta, certamente, o estado de degradação a que chegou, quer o parque público, quer o privado.

É curioso — ou talvez não — que mesmo depois da onda de reabilitação que varreu as principais cidades do país, à boleia do Regime Excepcional para a Reabilitação Urbana (RERU), que aligeirou as exigências técnicas a aplicar, Portugal continue na cauda da Europa na relação entre o rendimento e a qualidade de vida. Foi o o Eurostat quem o evidenciou ,quando actualizou as estatísticas sobre rendimento e condições de vida nos 27 Estados- membros da União Europeia. Pior do que Portugal só o Chipre. E Portugal é pior do que todos os outros países em indicadores como as infiltrações, desconforto térmico e o ruído. E, mais revelador ainda, é que não se está a falar apenas da população de menores rendimentos, mas também da classe média: 21,8% têm problemas de infiltrações. A média na Europa é de 11,2%. Quase o dobro, portanto.

No voo panorâmico que propusemos fazer neste primeiro capítulo vemos que os problemas de acesso a uma habitação condigna e a custos acessíveis se generalizaram um pouco por toda a Europa. Todavia, percebemos também que Portugal está, em muitos aspectos, muito pior do que os outros países. Nos próximos textos tentaremos explicar porquê e abordaremos as soluções em cima da mesa para tentar mitigar este imbróglio.