A crise provocada pela pandemia é "uma razão acrescida" para um compromisso político forte na Cimeira Social do Porto, porque aumenta o risco de desigualdade que as transições verde e digital já implicam, defende Maria João Rodrigues.
Relatora do Parlamento Europeu e negociadora com o Conselho e a Comissão do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, a antiga ministra do Emprego e atual presidente da Fundação Europeia de Estudos Progressivos afirma, em entrevista à Lusa, que "espera bem" que a Cimeira do Porto, em 07 e 08 de maio, resulte num compromisso histórico dos Estados-membros com o plano de ação.
"Porque se a transição verde e a transição digital já por si podem aumentar as desigualdades sociais e entre países, porque nem todos os países têm os mesmos meios financeiros para levar a cabo essas transições, com a crise covid-19 esse risco de desigualdade ainda é maior", sustenta.
"Há regiões, há setores, há empregos mais expostos à pandemia e, portanto, é uma razão acrescida para nós termos o Pilar Social", frisa.
Após a proclamação na Cimeira Social de Gotemburgo (2017), "a intenção era realmente passar o Pilar Social à prática, tornando-o o instrumento chave para pôr em marcha outros dois grandes compromissos da União Europeia": "conduzir a transição verde e ecológica e a transição digital reduzindo as desigualdades sociais".
"Se não fizermos nada, naturalmente a transição ecológica, transformando tantos setores, onde vamos perder empregos, mas temos de criar outros, tem de ser acompanhada de uma política social forte. E a transição digital ainda mais, porque ela pode criar muitos empregos, mas vai suprimir outros, e temos de ter uma política social e educativa para preparar as pessoas para isso", explica.
Mas, em face da pandemia de covid-19 e da crise económica e social que ela provocou, a frente social precisa ainda mais de "medidas excecionais", ao nível do "salto histórico" dado na frente económica, com "um orçamento comunitário reforçado e um fundo de recuperação pela primeira vez financiado por dívida conjunta europeia".
"Puxámos por isso num momento dramático que foi a crise da zona euro e, apesar do momento dramático, essa decisão não foi tomada. Foi preciso chegar um momento ainda mais dramático, que atingiu todos os países, como a crise covid, para finalmente essa medida ser tomada", sublinha.
Neste novo contexto, defende, impõe-se "uma reinterpretação do Pilar Social".
O Pilar, explica, foi "um salto importante na história da política social europeia" ao criar "uma base de direitos sociais para todos os cidadãos europeus".
A "grande novidade" é que a política social passa a basear-se no conceito de cidadania europeia: "sejam crianças, jovens, adultos, mulheres ou homens, onde quer que vivam, onde quer que trabalhem, desde que seja cidadão europeu, tem direito a esta base comum de direitos sociais".
A segunda novidade, prossegue, "é que para que esses direitos se tornem reais é preciso financiá-los": "o Pilar Social foi introduzido também para reequilibrar a forma como a Europa funciona e dizer: se temos direitos, temos de ter formas de os financiar".
"Mas, com o aparecimento da crise covid, todos nós estamos a perceber que a nossa vida já não vai ser como era antes [...]. E isso implica reorganizar quase tudo na forma como as empresas funcionam, como as nossas casas funcionam, como os nossos transportes diários funcionam", frisa.
Maria João Rodrigues dá o exemplo do teletrabalho "em grande escala", apontando-lhe vantagens, como "permitir uma melhor conciliação vida profissional/vida pessoal, reduzir o tráfego das cidades, reduzir até a poluição", mas também desvantagens, que obrigam a que as condições de trabalho tenham de ser garantidas, "em termos de horários de trabalho, de equipamento em casa, etc.".
Esta crise mostrou também até que ponto são "vitais" certas profissões --- da saúde, dos serviços comerciais fundamentais, dos transportes, dos cuidados à pessoa ---, profissões que urge revalorizar, defende.
"Segundo o Pilar Europeu, qualquer que seja o emprego que uma pessoa tenha, qualquer que seja o setor, pequena ou média empresa, qualquer que seja a região, qualquer pessoa tem de ter contrato de trabalho, claramente identificado, com direitos básicos de condições físicas de trabalho, de remuneração, de acesso à formação, de acesso à participação e [...] tem de ter uma ligação clara à proteção social, para os vários riscos de desemprego, de doença, de envelhecimento", afirmou.
Isto aplica-se muito à situação atual, em que persistem "empregos precários em que essas condições estão longe de estar garantidas", mas também "uma nova realidade criada pela economia digital, que é o trabalho para grandes plataformas em que, muitas vezes, não há qualquer tipo de direito".
"Uma das medidas do plano de ação é exatamente definir o enquadramento europeu para as plataformas [...]. Quando na realidade são entidades empregadoras, não são apenas plataformas tecnológicas, têm de comportar-se como entidades empregadoras, têm de estipular um contrato de trabalho com tudo o que é próprio de um contrato de trabalho", explica.
"A aplicação do pilar social vai permitir que estes direitos básicos sejam de facto passados à prática", sublinha.