12.4.21

Plano contra o racismo prevê quotas para acesso de alunos de escolas desfavorecidas às universidades

Joana Gorjão Henriques, in Público on-line

Plano nacional de combate ao racismo e à discriminação 2021-2025 entra esta sexta-feira em discussão pública. Destaca dezenas de medidas em 10 eixos. Governo quer mais diversidade na função pública e empresas e incentivo ao “recrutamento cego”. Prevêem-se vários estudos que irão recorrer a recolha de dados étnico-raciais.

O Governo está a trabalhar na criação de quotas para alunos das escolas do programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP) no acesso ao ensino superior e a cursos técnicos superiores profissionais. Esta medida está prevista no plano contra o racismo que é posto esta sexta-feira em discussão pública.

Ao PÚBLICO, a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, adiantou que os Ministérios da Presidência, da Educação e do Ensino Superior estão a estudar a criação de "uma percentagem, um contingente especial” de alunos de “escolas de intervenção especial, que concentram alunos de contextos desfavorecidos e com grandes percentagens de grupos das comunidades discriminadas”, à imagem do que existe para outros grupos como as pessoas com deficiência. Há muito que o tema das quotas no ensino é debatido, e tem estado na agenda de movimentos sociais que combatem o racismo.

Esta é apenas uma das medidas que o Governo quer desenvolver nos próximos quatros anos no âmbito do Plano nacional de combate ao racismo e à discriminação 2021-2025 que estará disponível para recolha de contributos até 10 de Maio. É o primeiro plano nacional deste género, do qual se destaca ainda o objectivo de desenhar medidas que promovam uma maior diversidade entre os trabalhadores da administração pública: de professores a forças de segurança, de oficiais de justiça a magistrados, de profissionais da cultura aos media. O Governo quer também que o sector público lhe siga o exemplo e por isso pretende incentivar práticas de contratação que promovam a diversidade.

Rosa Monteiro diz que espera que o plano seja recebido pelos agentes políticos com “responsabilidade” e reconhecimento de que “há fenómenos de segregação e discriminação na nossa sociedade que não queremos" e portanto há que “encontrar as vias e instrumentos para que todas as pessoas tenham a mesma igualdade de oportunidades”.

Em Junho o Parlamento aprovou projectos de resolução que aconselhavam o Governo a adoptar medidas contra o racismo. No ano anterior, em 2019, foi feito, com colaboração de todos os partidos, um Relatório sobre Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-Racial em Portugal.

Uma das medidas deste novo plano passa por promover a formação de chefias e de departamentos de recursos humanos na área do combate à discriminação étnico-racial e alargar o conhecimento sobre práticas de recrutamento cego, ou seja, formas de omitir dados e traços dos candidatos que possam identificar a sua origem para “evitar enviesamento” de escolhas. Está prevista ainda a “majoração no acesso a apoios” que assegurem “a igualdade na progressão na carreira e o acesso a lugares de liderança por parte de profissionais de grupos discriminados”.

Ao longo de 20 páginas, o documento descreve os quatro princípios transversais sob os quais se orienta — desconstrução de estereótipos; coordenação, governança integrada e territorialização; intervenção integrada no combate às desigualdades e interseccionalidade — e as dez linhas de intervenção: governação, informação e conhecimento para uma sociedade não discriminatória; educação e cultura; ensino superior; trabalho e emprego; habitação; saúde e acção social; justiça, segurança e direitos; participação e representação; desporto e meios de comunicação e o digital.

Trata-se de uma resposta do Governo ao primeiro Plano de acção da União Europeia contra o racismo 2020-2025, apresentado em Setembro, e onde se pedia a cada estado para desenvolver o seu projecto de combate ao racismo. O documento sublinha que o objectivo é “concretizar o direito à igualdade e à não-discriminação através de uma estratégia de actuação nacional que vá para além da proibição e da punição da discriminação”. Quer-se reforçar os meios para a prevenção e combate ao racismo, mas também aplicar “medidas transversais e direccionadas aos vários sectores” para promover “a diversidade de uma sociedade plural”.

Este resultado incorpora os contributos do relatório preliminar do Grupo de Trabalho para a Prevenção e o Combate ao Racismo e à Discriminação, criado em Janeiro e composto por mais de uma dezena de pessoas. Segundo o Governo, reflecte os resultados das 10 reuniões de auscultação realizadas pelo grupo de trabalho a cerca de 60 entidades — entre as quais o PÚBLICO que esteve presente numa sessão sobre os media.
Queixas aumentaram

No documento lembra-se que a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR) tem registado um aumento do número de queixas desde 2014 — nesse ano foram 60, e em 2020 passaram para 655. Mas “estes dados não reflectem ainda a realidade, tendo em conta as ainda baixas taxas de queixas”. A autonomização da CICDR e a criação de um Observatório do Racismo, já previstos no programa do Governo, estão também referidos.

Para o Governo, embora tenham sido dados passos importantes em termos de políticas públicas, continuam a verificar-se “fenómenos de racismo e de discriminação que violam direitos fundamentais”. Por isso sublinha que se reconhece o racismo como “um fenómeno multifacetado e com várias expressões, desde a negrofobia e afrofobia, ao anticiganismo, antissemitismo e xenofobia”.

Além de inúmeras acções de formação sobre o combate ao racismo pensadas para vários sectores e em várias vertentes — vão do direito ao atendimento ou à educação e saúde ou desporto — há sugestão de dezenas de medidas que se enquadram numa perspectiva da acção afirmativa, ou seja, o objectivo é aumentar a representatividade de grupos discriminados em áreas em que o estão menos.

Elaborar guias e dispositivos para prevenir enviesamentos, formar chefias e departamentos de recursos humanos ou envolver associações representativas nos processos de recrutamento são algumas das sugestões. Enfatiza-se a criação de códigos de conduta e ferramentas de apoio para os empregadores em várias áreas.

Com o “chumbo” da pergunta do Censos 2021 sobre a origem étnico-racial da população o Governo comprometeu-se a promover o Inquérito Piloto às Condições, Origens e Trajectórias da População residente em Portugal, que irá ser aplicado pelo Instituto Nacional de Estatística até ao fim do ano.

Sobre este tipo de estudos, o plano refere que será feita a recolha, análise e difusão regular de dados administrativos ou estatísticos nos diferentes sectores — não dá detalhes sobre como irá concretizá-lo, mas em algumas áreas aparecem sugestões concretas. Por exemplo, na educação sugere-se fazer a recolha de dados sobre escolarização (de retenção, conclusão, abandono) e reforço dos mecanismos de monitorização de situações de segregação intra e interescolar. A secretária de Estado admite que seja feita recolha de dados étnico-raciais para elaborar estes estudos.

Outra das propostas na educação passa por implementar nas escolas mecanismos de queixas, resposta e apoio a vítimas de discriminação. Na área da educação o plano inclui, de resto, algumas sugestões referenciadas na recomendação feita no ano passado pelo Conselho Nacional de Educação. Diversificar o ensino e os currículos e manuais escolares de disciplinas obrigatórias, “através da inclusão de conteúdos, imagens e recursos” sobre “presença histórica dos grupos discriminados, e processos de discriminação e racismo” é uma delas.

Também se sugere que seja incluído no plano nacional de leitura um maior leque de autores lusófonos e de outros países não europeus ou norte-americanos, incluindo autores portugueses ciganos e afrodescendentes, autores imigrantes e emigrantes e refugiados a viver em Portugal.

Já na justiça e direitos as sugestões vão da criação de serviços de aconselhamento para vítimas de discriminação à produção de mais conhecimento sobre a presença de grupos discriminados no sistema prisional e tutelar educativo. Também se sugere a ideia de tornar mais robusto o sistema sancionatório contraordenacional, “revendo as molduras das coimas e as condutas sancionadas”.

Para a área das polícias, o plano sugere medidas já contidas no Plano de Prevenção de Manifestações de Discriminação nas Forças e Serviços de Segurança, criado pela Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI), e apresentado a 19 de Março, como a mobilização de candidaturas de pessoas de grupos discriminados como via para o aumento de representatividade. O documento que vai agora a discussão pública sugere criar uma proposta legislativa que viabilize a utilização de sistemas de vigilância por câmaras de vídeo pelas forças de segurança, por exemplo, as câmaras de lapela (body cam).

Na área da participação política o Governo quer que se faça a avaliação de formas de “acção positiva de promoção de maior diversidade e representatividade nos cargos de decisão política e nos cargos de assessoria política”, bem como do reforço da capacidade eleitoral de cidadãos estrangeiros.
Acção social para todos

Na habitação é sugerido o incentivo à mobilização das autarquias para o 1.º Direito - Programa de Apoio ao Acesso à Habitação e para promoverem medidas de arrendamento acessível a grupos que vivem em precariedade habitacional, como pessoas ciganas e afrodescendentes. Mas sublinha-se ainda a necessidade de promover junto de senhorios, proprietários, promotores e financiadores, incluindo entidades bancárias, o combate à discriminação no acesso ao mercado da habitação e ao assédio no arrendamento; o desenvolvimento de intervenções em bairros sociais e espaços segregados, e a requalificação de zonas habitacionais degradadas em articulação com programas como o Programa Bairros Saudáveis é outra das medidas referidas.

O plano chama a atenção, na área da saúde, para uma avaliação da forma como os dados étnico-raciais são recolhidos e inseridos nos registos clínicos e pede que se desenvolvam estudos que façam uma melhor caracterização das necessidades em saúde dos grupos discriminados. Reforçar respostas de proximidade, no âmbito dos cuidados de saúde primários, é outra das sugestões nesta área, a par da formação e colocação de mediadores socioculturais e acesso a serviços de tradução nos hospitais e centros de saúde.

Também defende que deve ser assegurado que todas crianças têm acesso à acção social escolar — algo que a pandemia veio revelar não acontecer entre filhos de imigrantes que não têm a sua situação regularizada.

Também na cultura se estabelece como meta promover maior diversidade na programação artística das entidades públicas e o desenvolvimento de programas que tenham como objectivo o combate ao racismo e a promoção do pluralismo.

Finalmente, entre as várias propostas no desporto destaca-se a criação de códigos de conduta ou o encorajamento das organizações de adeptos a adoptarem protocolos com cláusulas anti-racismo.

Nos media, sublinha-se a necessidade de desenvolver acções junto dos órgãos de comunicação social para promoverem maior diversidade na programação, em conteúdos e em protagonistas; mas também maior inclusão e diversidade entre jornalistas, comentadores, colunistas e fontes. Sugere-se ainda a elaboração de um guia de boas práticas e mecanismos de responsabilização e de administração de comentários e de combate a fake news.

Quem quiser enviar comentários e documentos sobre este plano deve fazê-lo pelo portal ConsultaLEX (consultalex.gov.pt), que pressupõe inscrição na plataforma.