Susana Peralta, professora da Nova SBE, diz que a crise revelou um país e uma economia “menos robustos do que poderia parecer”. Um dos motivos é o elevado nível de desigualdade que se está ainda a agravar.
Susana Peralta, professor universitária e colunista do PÚBLICO, tem sido uma dos economistas em maior destaque no debate sobre as políticas de combate à crise durante os últimos meses, com discussões acesas nas redes sociais pelas quais passa não sem alguma “angústia”. No dia em que lança um livro sobre a presente crise, intitulado Portugal e a Crise do Século, afirma, em entrevista ao PÚBLICO, que “Portugal é um país especialmente desigual”, mas revela esperança de que a actual crise tenha aumentado a consciência sobre este problema. Ainda assim, assinala que, quando se fala em pôr os mais ricos a pagar impostos, a maior parte das pessoas não percebe que está num escalão do rendimento “mais elevado do que aquilo que acham”.
A história desta crise, do ponto de vista económico, é, em larga medida, uma história de agravamento das desigualdades?
As crises são sempre assimétricas. Há muitas pessoas que atravessam as crises incólumes e há muitas pessoas que atravessam as crises com grandes perdas de rendimento. O que é especial nesta é que nos sectores que ela atingiu e na parte do trabalho que não conseguiu passar para o digital há, em Portugal, e certamente noutros países, uma maior percentagem de salários abaixo da mediana, uma maior prevalência de contratos temporários, uma maior prevalência de mão-de-obra imigrante. Esta crise é assimétrica de uma maneira muito especial, que vai bater em sectores muito desprotegidos da população. E há ainda a própria resposta política à crise. Por exemplo, o apoio que o Estado deu, e bem, às empresas, designadamente o layoff, proíbe os despedimentos. Não estou a dizer que isso é mau, mas a verdade é que isso faz com que as empresas usem para se adaptar à crise uma margem, que é a das pessoas que não têm contrato, os recibos verdes.
No livro, fala-se de um “tecido económico e social lasso” em Portugal antes da crise. O país estava especialmente malpreparado?
Portugal é um país especialmente desigual. É um dos países mais desiguais da UE, é um país de salários baixos, é um país com um mercado de trabalho muito dual. Quando se olha para a percentagem de contratos a prazo, é um dos três países da UE com um valor mais alto. E a OCDE também diz que é um país com uma grande diferença entre o que é o grau de protecção que é dada às pessoas que têm contratos permanentes e as pessoas que têm contratos temporários. Isso deixou-nos especialmente vulneráveis. E depois tínhamos uma recuperação recente de uma crise em que um dos motores do crescimento ou pelo menos da criação de emprego foi o sector do turismo, que foi o sector que mais se espalhou ao comprido. Estávamos também muito endividados, o que leva o Governo a contrair-se nas ajudas que coloca à disposição das empresas. É difícil sermos, no contexto da UE ou da OCDE, uma economia menos bem preparada para isto.
Foi um balde de água fria no ambiente de sucesso que se vivia?
Pode-se dizer que sim, esta era a crise que não nos podia ter acontecido. Mostrou que estávamos menos robustos do que poderia parecer.
A crise trouxe-nos mais consciência em relação à desigualdade?
Acho que sim.
E vai mudar alguma coisa, por exemplo, na ciência económica?
Uma das grandes revoluções do pensamento económico da última década foram os estudos da desigualdade, que foram muito impulsionados quando o Angus Deaton ganhou o prémio Nobel em 2015. Era uma área da ciência económica já completamente madura, mas se calhar estava mais afastada do mainstream e agora de facto saltou à vista. No outro dia, no Financial Times estavam a entrevistar a presidente da London School of Economics e era ela a falar disto: da desigualdade, de um novo contrato social. A Kristalina Georgieva do FMI não fala de outra coisa.
E, portanto, vai reflectir-se em políticas diferentes?
Sei lá eu. Gostava que sim, mas não sei. Isso é a democracia que vai ter de funcionar.
As respostas à crise que foram dadas até agora já mostram alguma diferença?
Há coisas a acontecer que nunca teriam acontecido antes. Mesmo em Portugal, com toda a timidez deste Governo nas respostas à crise, tivemos renovações automáticas do rendimento social de inserção. Criou-se um programa especial para os trabalhadores informais, para as pessoas que nem sequer têm descontos. Criaram-se apoios a trabalhadores independentes, tentando pô-los ao nível – mas sempre muito atrás – dos trabalhadores que têm os vínculos contratuais. Na Alemanha, mandaram-se cheques para todas as famílias, sem excepção. E, nos EUA, Biden está a voltar ao programa War on Poverty do Lyndon Johnson, revertendo o que o Clinton fez. Há uma consciencialização e já houve alguns passos que de outra maneira não teria havido. Agora, se isto vai ser permanente ou não, não sei. Eu gostava.
O que é que poderia já ter sido diferente em Portugal? Devia dar-se mais a todos?
O layoff é bastante generoso. Aqui o problema é a enorme diferença entre o layoff, que é uma política permanente, e o que aconteceu aos trabalhadores independentes, em que os regimes foram sendo alterados ao longo do tempo. Estes são muito mais inconstantes. O problema não é só dos montantes, há também o problema da abrangência e da incerteza. No caso dos independentes, o apoio era dado por um mês e renovado por outro mês. Isso não é uma rede de segurança. Uma rede não é só receber um montante, é as pessoas projectarem-se daqui a um ano e saber que vão continuar a pagar a renda e os iogurtes para a família. É terrível enfrentar a incerteza num período destes em que não se pode ir à procura de biscates. Toda essa economia do biscate, a economia da emigração, que na crise anterior salvou muita gente da fome, neste momento não existe. A incerteza de não saber se se continua a ter dinheiro, se daqui a dois meses se vai receber menos ou alguma coisa sequer, deixa marcas enormes nas pessoas. O que era preciso era deixar menos pessoas de fora e maior constância nos apoios às pessoas que estão fora do contexto do layoff.
A aposta nas moratórias ainda pode sair caro?
Quando se compara em percentagem da economia, somos de longe o país com um maior valor de moratórias. Isso é claramente o facto de as pessoas e as empresas, sobretudo das empresas, estarem à míngua. No sector do turismo, em cada cem euros de empréstimos, 60 está em moratórias. É catastrófico.
Mas é uma boa política?
Sim, é uma boa política. É como a proibição dos despedimentos, é boa, mas até um ponto. A vantagem de proibir os despedimentos é guardar o valor gerado no acasalamento entre uma empresa e um trabalhador. Se se deixar desfazer esse casamento, perde-se esse capital. A ideia de proibir o despedimento, é congelar essa relação, e assim que a economia puder continuar a funcionar, está lá tudo. Isso é bom para aquelas empresas que é suposto sobreviverem, mas numa crise destas, em que queremos fazer uma transição digital, uma transição energética e se calhar gostávamos até de aproveitar isto para nos livrarmos desta maneira de trabalhar nos sectores do turismo que geram empregos de menor qualidade, é bom às vezes libertar o acasalamento, para os trabalhadores poderem fixar-se noutras empresas melhores ou noutros sectores. Quando se proíbe os despedimentos, pode-se estar a manter um casamento que não se devia manter.
Mas não é cedo demais para fazer isso?
Não sei, já lá vai um ano. No Outono, a maior parte das economias europeias, Portugal também, estava a preparar-se para descontinuar o layoff e pôr outra coisa no sítio, que era precisamente o desmamar do layoff, para ter esta espécie de destruição criativa. Com a segunda e a terceira vagas, isso não deu para fazer, mas começa a ser problemático, porque cria zombies. As moratórias são a mesma coisa. É bom durante um tempo para as empresas fazerem face a algo que é temporário. Mas à medida que a crise se prolonga, menor é a probabilidade de isto ser temporário, porque as próprias crises deixam cicatrizes. E em Portugal isso é evidente. Portugal tem um problema de moratórias. O próprio governador do Banco de Portugal, ex-ministro das Finanças, disse agora que já não pode haver mais moratórias, que isto agora é uma questão de políticas públicas, de apoios directos. Engraçado ele não se ter lembrado disto na altura em que ele próprio estava a desenhar os apoios.
Cheques para toda a gente teria sido melhor?
Tenho alguma dificuldade com a ideia de cheques para toda a gente, mas acho que deveríamos ter cheques muito mais abrangentes, para muito mais pessoas. Temos um Estado social que está baseado na ideia da desconfiança, em que “só te dou mesmo dinheiro se realmente provares que és um miserável desdentado”. Devíamos inverter a lógica nesta pandemia e fazer o contrário: dar a toda a gente, menos àqueles que obviamente não precisam.
E depois da crise também, com um rendimento básico universal?
Tenho simpatia pela ideia do rendimento básico incondicional e universal, mas acho que ainda assim é possível discriminar. O que digo é que a discriminação neste momento está sempre a tentar minimizar um dos tipos de erro e por isso aplica a regra de “só te dou mesmo se vir que estás esfomeado”. Acho que devia ser o contrário: “Eu não te dou mesmo se vir que não precisas.” Teria sido mais caro contemporaneamente, mas é bastante possível que a maneira de gerir a crise que foi adoptada acabe por nos custar mais a prazo.
A crise financeira que tivemos recentemente influenciou demasiado as escolhas que foram feitas?
Sim e não. O Luís Aguiar-Conraria disse “que se foda o défice”. Tenho simpatia por essa ideia, estamos preocupados com o défice quando há pessoas a morrer à fome, não pode ser. E Portugal foi de facto, mesmo comparando com a sua situação inicial, mais tímido na resposta à crise do que os seus congéneres europeus. Mas um problema é que temos um trauma enorme: o que é que acontece a um país com as nossas fragilidades, com um rácio do PIB de 136%, se os juros começam a subir, se dá aí uma maluqueira qualquer aos mercados?
Há motivos para compreender este trauma, é isso?
Tenho alguma simpatia, mas ao mesmo tempo há coisas parvas, como a fuga para a frente da TAP. Aí já ninguém pensou e apenas disseram: “Temos de salvar a TAP, é um desígnio nacional, toma lá 1200 milhões.” Aí já havia dinheiro. Então o que é que aprendemos? Fico muito revoltada de ver que não houve dinheiro para comprar computadores e depois há esta coisa da TAP. Há uma grande insensibilidade social. No fundo, ou que se “foda o défice”, parafraseando o meu amigo Conraria, ou, se não, então também não se pode salvar a TAP. Não pode ser é uma coisa e outra.
A preocupação de poupar no curto prazo é negativa?
Pode não ser uma gestão inteligente. Pode ser bom no curto prazo, cada 50 cêntimos que o João Leão poupa são 50 cêntimos que não apareceram no défice, mas entretanto deixou-se acumular os problemas das moratórias. Tornámo-nos demasiado focados em quanto é que se consegue poupar hoje, sem pensar que às vezes mais vale gastar dez hoje para poupar cem amanhã. Para além disso, o défice é uma diferença entre receitas e despesas. Continuamos a ser muito parvos nas receitas, aparentemente, basta ver o escândalo agora da EDP, que é simbólico de um Estado que aprendeu apenas a olhar para a diferença, mas não aprendeu a cuidar dos dois lados desta diferença.
Nesta altura seria útil aumentar os impostos?
Há margem para nos endividarmos mais, as taxas de juro estão muito baixas. Mas aqui a questão é: em alguma altura será preciso aumentar os impostos para pagar esta dívida. A dúvida é se é melhor aumentar agora ou se é melhor no futuro, sabendo-se que, eventualmente endividando-nos agora, poderá ser possível daqui a cinco anos estar em melhor estado do que se estaria se se aumentassem agora impostos. Sou sensível a esta questão. Mas o que é certo é que não podemos continuar a deixar uma parte da economia sozinha a levar com este custo enorme. Ou nos endividamos ou aumentamos os impostos. Provavelmente, o melhor seria fazer uma combinação das duas coisas porque há partes da economia que ganharam com esta crise.
O FMI tem uma proposta que é aumentar os impostos sobre as empresas que aumentaram os lucros. Essa lógica também é aplicável a pessoas?
Não vejo muito bem, do ponto de vista de desenho de imposto, que se possa aplicar o imposto sobre quem mais ganhou com a crise. Acho que tem de ser, simplesmente, a quem tem rendimentos altos. Ao nível das empresas vejo com menos dificuldade desenhar algum imposto com uma maior ênfase em sectores mais beneficiados. É mais fácil dizer que vamos lançar um imposto especial sobre sectores como o tecnológico porque é evidente que a Amazon não tinha multiplicado por dois se não fosse a pandemia. Agora para as pessoas, é mais difícil estar a ver quem é que ganhou e quem é que perdeu.
Não é a tal “burguesia do teletrabalho"?
A existência de uma burguesia do teletrabalho é para mim uma evidência. Quando se olha para os dados do teletrabalho, percebe-se imediatamente que é algo que é perfeitamente enviesado socialmente. São as pessoas que trabalham em certos tipos de serviços e que são pessoas com níveis educativos muito elevados. O trabalho manual não se pode fazer em teletrabalho.
Mas também há salários baixos em teletrabalho...
Também há, mas há uma prevalência de salários mais elevados. Os seja, em média, os salários são mais elevados. Não quer dizer que não haja salários baixos em teletrabalho e que não haja pessoas muito bem pagas que tiveram de continuar a trabalhar presencialmente, como os médicos, por exemplo. Agora em média, quando se compara o salário médio, o nível da educação médio das pessoas em teletrabalho com as pessoas que não puderam teletrabalhar, a diferença é muito grande. Eu usei a expressão “burguesia do teletrabalho” porque se vê essas pessoas que estavam a gritar para fechar as escolas, essas pessoas estão a pensar na realidade delas. Pensam nas crianças fechadas nos apartamentos delas, aqui nas Avenidas Novas ou em Alfama, como o meu, com três crianças cada um com o seu device, com ligação à Internet à vontade. Eu, dentro do meu horário de trabalho muito ocupado, mas com flexibilidade de horário praticamente infinita. Essas pessoas não percebem que a realidade das pessoas normais não é a realidade deles. E isso, lamento, é a burguesia do teletrabalho. E reivindico essa expressão.
Houve pessoas que não gostaram da expressão porque estava associada a um eventual aumento de impostos. Em termos práticos, aplicar mais impostos com uma definição destas parece difícil...
Sim, tinha de ser outra coisa. Tem de ser pessoas que têm rendimentos mais altos, ponto final. Agora, essas pessoas vão coincidir, em média, bastante com quem pôde manter o teletrabalho.
E o que são os rendimentos mais altos? Não apanha a chamada “classe média”?
Os 10% mais ricos nos dados da autoridade tributária por agregado familiar são os que ganham mais de 50 mil euros brutos por ano. Depois, há muito dinheiro que não é tributado, e isso é mau e faz com que a carga fiscal seja muito mais injusta. A verdade é que, como Portugal não é um país muito rico, as pessoas como eu acham que são da classe média, lamento mas não são. Eu faço parte dos 10% mais ricos deste país.
E essas pessoas têm de ter consciência de que têm de arcar com uma parte grande dos impostos pagos, é isso?
Eu acho que é uma coisa evidente. Eu não posso estar à espera de passar por uma crise em que o meu país perdeu 7,6% do PIB no ano passado e não querer pagar nada por isso. Há pessoas que podem pagar mais do que eu, certamente, e que em alguns casos não pagam, mas não vamos conseguir mudar isto de um dia para o outro. É verdade que devemos ter um debate sobre os impostos, sobre os rendimentos que devem ser englobados, por exemplo. Já para não falar da EDP. Dizem que se formos muito exigentes, as empresas vão deslocalizar-se, mas as barragens, experimentem lá, mudem-nas lá para as ilhas Caimão. Portanto, é um debate que se deve fazer. Mas ainda assim, é importante as pessoas perceberem em que ponto é que estão da distribuição do rendimento e a maior parte delas está num ponto mais elevado do que aquilo que acham.
Alguma vez pensou em assumir responsabilidades na condução da política económica?
Jamais, não podia. Não tenho jeito nenhum para isso. E perde-se a liberdade. Sei que é um bocado egoísta, porque é muito mais fácil estar deste lado a dizer mal do que estar do outro lado a fazer as coisas. Eu adoro o meu trabalho, adoro os alunos, a faculdade, não queria fazer outra coisa na vida.
Mas imaginando que assumia uma responsabilidade desse tipo, em que quadrante político seria?
Considero-me uma pessoa bastante à esquerda, mas agora estou bastante órfã. Em algumas coisas, a esquerda não gosta muito de me ouvir, como esta coisa de achar que não se devia pôr dinheiro na TAP, e há mais. Mas sou obviamente uma pessoa de esquerda.
Economicamente, no que diz respeito ao papel do Estado?
Não vejo o Estado como produtor, mas sou sensível às ideias, por exemplo, da Mariana Mazzucato do Estado empreendedor, de que os grandes saltos tecnológicos são saltos que foram fortemente impulsionados e pagos pelo Estado, como se vê aliás bem agora com o caso das vacinas. E o Estado devia estar muito mais presente no sector dos transportes, por exemplo a trazer as pessoas dos subúrbios para Lisboa com qualidade de vida, não é a meter-se na TAP. Gostava de ver o Estado a intervir mais na habitação, provavelmente construindo, não sou grande fã de regulação de preços. E uma coisa importante: gosto de impostos. São instrumentos muito importantes, não só para obter receita, são muito importantes para dar incentivos. E gosto de taxas marginais altas sobre os ricos, tenho um fetiche com isso.
As discussões nas redes sociais, como as que aconteceram por causa da expressão “burguesia do teletrabalho” são um estímulo ou uma fonte de angústia?
Depende. Há alturas em que me apetece estar lá a dizer parvoíces, mas há alturas em que fico dois ou três dias sem ir ao Facebook ou ao Twitter. Às vezes angustia-me. Quando foi aquilo da “burguesia do teletrabalho”, foi horrível. Eu depois dei o peito às balas, não ia fingir que não tinha sido eu, ou pedir desculpa, de maneira nenhuma, até porque reivindico o termo. Mas naquele dia, cheguei ao fim do dia, até porque é um dia em que dou sete horas de aula, completamente desfeita. Eu estava nos intervalos das aulas e era tudo a bater-me, e ninguém gosta disso. Não sou nada imune a isso. Podia aprender, mas acho que não aprendo.
A história desta crise, do ponto de vista económico, é, em larga medida, uma história de agravamento das desigualdades?
As crises são sempre assimétricas. Há muitas pessoas que atravessam as crises incólumes e há muitas pessoas que atravessam as crises com grandes perdas de rendimento. O que é especial nesta é que nos sectores que ela atingiu e na parte do trabalho que não conseguiu passar para o digital há, em Portugal, e certamente noutros países, uma maior percentagem de salários abaixo da mediana, uma maior prevalência de contratos temporários, uma maior prevalência de mão-de-obra imigrante. Esta crise é assimétrica de uma maneira muito especial, que vai bater em sectores muito desprotegidos da população. E há ainda a própria resposta política à crise. Por exemplo, o apoio que o Estado deu, e bem, às empresas, designadamente o layoff, proíbe os despedimentos. Não estou a dizer que isso é mau, mas a verdade é que isso faz com que as empresas usem para se adaptar à crise uma margem, que é a das pessoas que não têm contrato, os recibos verdes.
No livro, fala-se de um “tecido económico e social lasso” em Portugal antes da crise. O país estava especialmente malpreparado?
Portugal é um país especialmente desigual. É um dos países mais desiguais da UE, é um país de salários baixos, é um país com um mercado de trabalho muito dual. Quando se olha para a percentagem de contratos a prazo, é um dos três países da UE com um valor mais alto. E a OCDE também diz que é um país com uma grande diferença entre o que é o grau de protecção que é dada às pessoas que têm contratos permanentes e as pessoas que têm contratos temporários. Isso deixou-nos especialmente vulneráveis. E depois tínhamos uma recuperação recente de uma crise em que um dos motores do crescimento ou pelo menos da criação de emprego foi o sector do turismo, que foi o sector que mais se espalhou ao comprido. Estávamos também muito endividados, o que leva o Governo a contrair-se nas ajudas que coloca à disposição das empresas. É difícil sermos, no contexto da UE ou da OCDE, uma economia menos bem preparada para isto.
Foi um balde de água fria no ambiente de sucesso que se vivia?
Pode-se dizer que sim, esta era a crise que não nos podia ter acontecido. Mostrou que estávamos menos robustos do que poderia parecer.
A crise trouxe-nos mais consciência em relação à desigualdade?
Acho que sim.
E vai mudar alguma coisa, por exemplo, na ciência económica?
Uma das grandes revoluções do pensamento económico da última década foram os estudos da desigualdade, que foram muito impulsionados quando o Angus Deaton ganhou o prémio Nobel em 2015. Era uma área da ciência económica já completamente madura, mas se calhar estava mais afastada do mainstream e agora de facto saltou à vista. No outro dia, no Financial Times estavam a entrevistar a presidente da London School of Economics e era ela a falar disto: da desigualdade, de um novo contrato social. A Kristalina Georgieva do FMI não fala de outra coisa.
E, portanto, vai reflectir-se em políticas diferentes?
Sei lá eu. Gostava que sim, mas não sei. Isso é a democracia que vai ter de funcionar.
As respostas à crise que foram dadas até agora já mostram alguma diferença?
Há coisas a acontecer que nunca teriam acontecido antes. Mesmo em Portugal, com toda a timidez deste Governo nas respostas à crise, tivemos renovações automáticas do rendimento social de inserção. Criou-se um programa especial para os trabalhadores informais, para as pessoas que nem sequer têm descontos. Criaram-se apoios a trabalhadores independentes, tentando pô-los ao nível – mas sempre muito atrás – dos trabalhadores que têm os vínculos contratuais. Na Alemanha, mandaram-se cheques para todas as famílias, sem excepção. E, nos EUA, Biden está a voltar ao programa War on Poverty do Lyndon Johnson, revertendo o que o Clinton fez. Há uma consciencialização e já houve alguns passos que de outra maneira não teria havido. Agora, se isto vai ser permanente ou não, não sei. Eu gostava.
O que é que poderia já ter sido diferente em Portugal? Devia dar-se mais a todos?
O layoff é bastante generoso. Aqui o problema é a enorme diferença entre o layoff, que é uma política permanente, e o que aconteceu aos trabalhadores independentes, em que os regimes foram sendo alterados ao longo do tempo. Estes são muito mais inconstantes. O problema não é só dos montantes, há também o problema da abrangência e da incerteza. No caso dos independentes, o apoio era dado por um mês e renovado por outro mês. Isso não é uma rede de segurança. Uma rede não é só receber um montante, é as pessoas projectarem-se daqui a um ano e saber que vão continuar a pagar a renda e os iogurtes para a família. É terrível enfrentar a incerteza num período destes em que não se pode ir à procura de biscates. Toda essa economia do biscate, a economia da emigração, que na crise anterior salvou muita gente da fome, neste momento não existe. A incerteza de não saber se se continua a ter dinheiro, se daqui a dois meses se vai receber menos ou alguma coisa sequer, deixa marcas enormes nas pessoas. O que era preciso era deixar menos pessoas de fora e maior constância nos apoios às pessoas que estão fora do contexto do layoff.
A aposta nas moratórias ainda pode sair caro?
Quando se compara em percentagem da economia, somos de longe o país com um maior valor de moratórias. Isso é claramente o facto de as pessoas e as empresas, sobretudo das empresas, estarem à míngua. No sector do turismo, em cada cem euros de empréstimos, 60 está em moratórias. É catastrófico.
Mas é uma boa política?
Sim, é uma boa política. É como a proibição dos despedimentos, é boa, mas até um ponto. A vantagem de proibir os despedimentos é guardar o valor gerado no acasalamento entre uma empresa e um trabalhador. Se se deixar desfazer esse casamento, perde-se esse capital. A ideia de proibir o despedimento, é congelar essa relação, e assim que a economia puder continuar a funcionar, está lá tudo. Isso é bom para aquelas empresas que é suposto sobreviverem, mas numa crise destas, em que queremos fazer uma transição digital, uma transição energética e se calhar gostávamos até de aproveitar isto para nos livrarmos desta maneira de trabalhar nos sectores do turismo que geram empregos de menor qualidade, é bom às vezes libertar o acasalamento, para os trabalhadores poderem fixar-se noutras empresas melhores ou noutros sectores. Quando se proíbe os despedimentos, pode-se estar a manter um casamento que não se devia manter.
Mas não é cedo demais para fazer isso?
Não sei, já lá vai um ano. No Outono, a maior parte das economias europeias, Portugal também, estava a preparar-se para descontinuar o layoff e pôr outra coisa no sítio, que era precisamente o desmamar do layoff, para ter esta espécie de destruição criativa. Com a segunda e a terceira vagas, isso não deu para fazer, mas começa a ser problemático, porque cria zombies. As moratórias são a mesma coisa. É bom durante um tempo para as empresas fazerem face a algo que é temporário. Mas à medida que a crise se prolonga, menor é a probabilidade de isto ser temporário, porque as próprias crises deixam cicatrizes. E em Portugal isso é evidente. Portugal tem um problema de moratórias. O próprio governador do Banco de Portugal, ex-ministro das Finanças, disse agora que já não pode haver mais moratórias, que isto agora é uma questão de políticas públicas, de apoios directos. Engraçado ele não se ter lembrado disto na altura em que ele próprio estava a desenhar os apoios.
Cheques para toda a gente teria sido melhor?
Tenho alguma dificuldade com a ideia de cheques para toda a gente, mas acho que deveríamos ter cheques muito mais abrangentes, para muito mais pessoas. Temos um Estado social que está baseado na ideia da desconfiança, em que “só te dou mesmo dinheiro se realmente provares que és um miserável desdentado”. Devíamos inverter a lógica nesta pandemia e fazer o contrário: dar a toda a gente, menos àqueles que obviamente não precisam.
E depois da crise também, com um rendimento básico universal?
Tenho simpatia pela ideia do rendimento básico incondicional e universal, mas acho que ainda assim é possível discriminar. O que digo é que a discriminação neste momento está sempre a tentar minimizar um dos tipos de erro e por isso aplica a regra de “só te dou mesmo se vir que estás esfomeado”. Acho que devia ser o contrário: “Eu não te dou mesmo se vir que não precisas.” Teria sido mais caro contemporaneamente, mas é bastante possível que a maneira de gerir a crise que foi adoptada acabe por nos custar mais a prazo.
A crise financeira que tivemos recentemente influenciou demasiado as escolhas que foram feitas?
Sim e não. O Luís Aguiar-Conraria disse “que se foda o défice”. Tenho simpatia por essa ideia, estamos preocupados com o défice quando há pessoas a morrer à fome, não pode ser. E Portugal foi de facto, mesmo comparando com a sua situação inicial, mais tímido na resposta à crise do que os seus congéneres europeus. Mas um problema é que temos um trauma enorme: o que é que acontece a um país com as nossas fragilidades, com um rácio do PIB de 136%, se os juros começam a subir, se dá aí uma maluqueira qualquer aos mercados?
Há motivos para compreender este trauma, é isso?
Tenho alguma simpatia, mas ao mesmo tempo há coisas parvas, como a fuga para a frente da TAP. Aí já ninguém pensou e apenas disseram: “Temos de salvar a TAP, é um desígnio nacional, toma lá 1200 milhões.” Aí já havia dinheiro. Então o que é que aprendemos? Fico muito revoltada de ver que não houve dinheiro para comprar computadores e depois há esta coisa da TAP. Há uma grande insensibilidade social. No fundo, ou que se “foda o défice”, parafraseando o meu amigo Conraria, ou, se não, então também não se pode salvar a TAP. Não pode ser é uma coisa e outra.
A preocupação de poupar no curto prazo é negativa?
Pode não ser uma gestão inteligente. Pode ser bom no curto prazo, cada 50 cêntimos que o João Leão poupa são 50 cêntimos que não apareceram no défice, mas entretanto deixou-se acumular os problemas das moratórias. Tornámo-nos demasiado focados em quanto é que se consegue poupar hoje, sem pensar que às vezes mais vale gastar dez hoje para poupar cem amanhã. Para além disso, o défice é uma diferença entre receitas e despesas. Continuamos a ser muito parvos nas receitas, aparentemente, basta ver o escândalo agora da EDP, que é simbólico de um Estado que aprendeu apenas a olhar para a diferença, mas não aprendeu a cuidar dos dois lados desta diferença.
Nesta altura seria útil aumentar os impostos?
Há margem para nos endividarmos mais, as taxas de juro estão muito baixas. Mas aqui a questão é: em alguma altura será preciso aumentar os impostos para pagar esta dívida. A dúvida é se é melhor aumentar agora ou se é melhor no futuro, sabendo-se que, eventualmente endividando-nos agora, poderá ser possível daqui a cinco anos estar em melhor estado do que se estaria se se aumentassem agora impostos. Sou sensível a esta questão. Mas o que é certo é que não podemos continuar a deixar uma parte da economia sozinha a levar com este custo enorme. Ou nos endividamos ou aumentamos os impostos. Provavelmente, o melhor seria fazer uma combinação das duas coisas porque há partes da economia que ganharam com esta crise.
O FMI tem uma proposta que é aumentar os impostos sobre as empresas que aumentaram os lucros. Essa lógica também é aplicável a pessoas?
Não vejo muito bem, do ponto de vista de desenho de imposto, que se possa aplicar o imposto sobre quem mais ganhou com a crise. Acho que tem de ser, simplesmente, a quem tem rendimentos altos. Ao nível das empresas vejo com menos dificuldade desenhar algum imposto com uma maior ênfase em sectores mais beneficiados. É mais fácil dizer que vamos lançar um imposto especial sobre sectores como o tecnológico porque é evidente que a Amazon não tinha multiplicado por dois se não fosse a pandemia. Agora para as pessoas, é mais difícil estar a ver quem é que ganhou e quem é que perdeu.
Não é a tal “burguesia do teletrabalho"?
A existência de uma burguesia do teletrabalho é para mim uma evidência. Quando se olha para os dados do teletrabalho, percebe-se imediatamente que é algo que é perfeitamente enviesado socialmente. São as pessoas que trabalham em certos tipos de serviços e que são pessoas com níveis educativos muito elevados. O trabalho manual não se pode fazer em teletrabalho.
Mas também há salários baixos em teletrabalho...
Também há, mas há uma prevalência de salários mais elevados. Os seja, em média, os salários são mais elevados. Não quer dizer que não haja salários baixos em teletrabalho e que não haja pessoas muito bem pagas que tiveram de continuar a trabalhar presencialmente, como os médicos, por exemplo. Agora em média, quando se compara o salário médio, o nível da educação médio das pessoas em teletrabalho com as pessoas que não puderam teletrabalhar, a diferença é muito grande. Eu usei a expressão “burguesia do teletrabalho” porque se vê essas pessoas que estavam a gritar para fechar as escolas, essas pessoas estão a pensar na realidade delas. Pensam nas crianças fechadas nos apartamentos delas, aqui nas Avenidas Novas ou em Alfama, como o meu, com três crianças cada um com o seu device, com ligação à Internet à vontade. Eu, dentro do meu horário de trabalho muito ocupado, mas com flexibilidade de horário praticamente infinita. Essas pessoas não percebem que a realidade das pessoas normais não é a realidade deles. E isso, lamento, é a burguesia do teletrabalho. E reivindico essa expressão.
Houve pessoas que não gostaram da expressão porque estava associada a um eventual aumento de impostos. Em termos práticos, aplicar mais impostos com uma definição destas parece difícil...
Sim, tinha de ser outra coisa. Tem de ser pessoas que têm rendimentos mais altos, ponto final. Agora, essas pessoas vão coincidir, em média, bastante com quem pôde manter o teletrabalho.
E o que são os rendimentos mais altos? Não apanha a chamada “classe média”?
Os 10% mais ricos nos dados da autoridade tributária por agregado familiar são os que ganham mais de 50 mil euros brutos por ano. Depois, há muito dinheiro que não é tributado, e isso é mau e faz com que a carga fiscal seja muito mais injusta. A verdade é que, como Portugal não é um país muito rico, as pessoas como eu acham que são da classe média, lamento mas não são. Eu faço parte dos 10% mais ricos deste país.
E essas pessoas têm de ter consciência de que têm de arcar com uma parte grande dos impostos pagos, é isso?
Eu acho que é uma coisa evidente. Eu não posso estar à espera de passar por uma crise em que o meu país perdeu 7,6% do PIB no ano passado e não querer pagar nada por isso. Há pessoas que podem pagar mais do que eu, certamente, e que em alguns casos não pagam, mas não vamos conseguir mudar isto de um dia para o outro. É verdade que devemos ter um debate sobre os impostos, sobre os rendimentos que devem ser englobados, por exemplo. Já para não falar da EDP. Dizem que se formos muito exigentes, as empresas vão deslocalizar-se, mas as barragens, experimentem lá, mudem-nas lá para as ilhas Caimão. Portanto, é um debate que se deve fazer. Mas ainda assim, é importante as pessoas perceberem em que ponto é que estão da distribuição do rendimento e a maior parte delas está num ponto mais elevado do que aquilo que acham.
Alguma vez pensou em assumir responsabilidades na condução da política económica?
Jamais, não podia. Não tenho jeito nenhum para isso. E perde-se a liberdade. Sei que é um bocado egoísta, porque é muito mais fácil estar deste lado a dizer mal do que estar do outro lado a fazer as coisas. Eu adoro o meu trabalho, adoro os alunos, a faculdade, não queria fazer outra coisa na vida.
Mas imaginando que assumia uma responsabilidade desse tipo, em que quadrante político seria?
Considero-me uma pessoa bastante à esquerda, mas agora estou bastante órfã. Em algumas coisas, a esquerda não gosta muito de me ouvir, como esta coisa de achar que não se devia pôr dinheiro na TAP, e há mais. Mas sou obviamente uma pessoa de esquerda.
Economicamente, no que diz respeito ao papel do Estado?
Não vejo o Estado como produtor, mas sou sensível às ideias, por exemplo, da Mariana Mazzucato do Estado empreendedor, de que os grandes saltos tecnológicos são saltos que foram fortemente impulsionados e pagos pelo Estado, como se vê aliás bem agora com o caso das vacinas. E o Estado devia estar muito mais presente no sector dos transportes, por exemplo a trazer as pessoas dos subúrbios para Lisboa com qualidade de vida, não é a meter-se na TAP. Gostava de ver o Estado a intervir mais na habitação, provavelmente construindo, não sou grande fã de regulação de preços. E uma coisa importante: gosto de impostos. São instrumentos muito importantes, não só para obter receita, são muito importantes para dar incentivos. E gosto de taxas marginais altas sobre os ricos, tenho um fetiche com isso.
As discussões nas redes sociais, como as que aconteceram por causa da expressão “burguesia do teletrabalho” são um estímulo ou uma fonte de angústia?
Depende. Há alturas em que me apetece estar lá a dizer parvoíces, mas há alturas em que fico dois ou três dias sem ir ao Facebook ou ao Twitter. Às vezes angustia-me. Quando foi aquilo da “burguesia do teletrabalho”, foi horrível. Eu depois dei o peito às balas, não ia fingir que não tinha sido eu, ou pedir desculpa, de maneira nenhuma, até porque reivindico o termo. Mas naquele dia, cheguei ao fim do dia, até porque é um dia em que dou sete horas de aula, completamente desfeita. Eu estava nos intervalos das aulas e era tudo a bater-me, e ninguém gosta disso. Não sou nada imune a isso. Podia aprender, mas acho que não aprendo.