O sociólogo Fernando Diogo, que coordena o estudo sobre a pobreza apresentado esta semana pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, apela a uma coordenação interministerial da Estratégia Nacional contra a Pobreza, cuja versão final não foi ainda apresentada pelo Governo. No "Da Capa à Contracapa", Fernando Diogo acredita que os reformados vão sofrer um impacto negativo menos acentuado nesta pandemia face a trabalhadores e desempregados. Já a presidente da Cáritas Portuguesa alerta que a crise social vai prolongar-se para lá do fim da crise económica.
Seis meses depois da constituição da comissão encarregue de desenhar uma Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, a versão final do documento não é ainda conhecida. O sociólogo Fernando Diogo, coordenador do estudo sobre a pobreza apresentado esta semana pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, defende que esta realidade é multissectorial e por isso não pode ficar "acantonada" na pasta da Segurança Social sob pena de conduzir a Estratégia ao falhanço.
"Sou um dos autores da estratégia regional dos Açores da luta contra a pobreza, tenho alguma experiência de como é que isto se faz e posso garantir que se a intenção do governo da República é colocar a luta contra a pobreza nas mãos da Segurança Social, isso vai falhar de certeza absoluta, inequivocamente. Tem que haver ali uma coordenação que envolva a dimensão económica, a saúde, a educação, a habitação e não apenas as questões relativas à Segurança Social. Deve haver um envolvimento forte a partir da Presidência do Conselho de Ministros na coordenação. Se a única coisa que resultar dessa Estratégia for uma maior coordenação entre os departamentos no Estado já seria uma grande vitória para o combate a pobreza", afirma Fernando Diogo no programa "Da Capa à Contracapa" da Renascença em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos.
O sociólogo sustenta que "não há um único caminho" para resolver "um problema complexo que tem que ter soluções variadas". As transferências sociais são essenciais para travar o impacto da pobreza, reconhece este especialista que considera que o aumento dos valores pagos nalgumas componentes de apoio social é " incontornável " por exemplo no apoio a situações de doença " que levam as pessoas rapidamente à pobreza ou impedem que elas saiam de lá".
Não basta atirar dinheiro para a pobreza
Rita Valadas, presidente da Cáritas Portuguesa, não esconde uma " enorme frustração" pela incapacidade em diminuir a pobreza de forma significativa.
"Todos já participámos em projetos, programas, investigações, candidaturas sem fim. E não conseguimos que essa situação se altere. Na verdade, ela altera-se mais esteticamente do que na realidade que está sempre à volta dos 2 milhões de pessoas. Para quem trabalha nesta área olhar para os territórios e perceber que não estamos a conseguir fazer nada, apesar do dinheiro que isto envolve, é muito frustrante. Se dar subsídios e dinheiro resolvesse o problema da pobreza, certamente ele já estaria resolvido", desabafa a sucessora de Eugénio Fonseca e ex-administradora do pelouro da Acção Social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Sobre a tutela da Estratégia de Luta contra a Pobreza, Rita Valadas assume que "o excesso de estrutura então também não ajuda". A mulher que lidera a Cáritas em Portugal diz-se preocupada com a prevalência da pobreza infantil face à dos idosos e apela à necessidade da intervenção precoce sobre as crianças e não só quando entram na escola.
"Há fatores que prejudicam o normal desenvolvimento das crianças que acontecem na primeira infância. E essas situações também deviam ser acauteladas. Muito do insucesso escolar está às vezes ligado a questões que acontecem antes de as crianças entrarem para a escola", alerta Rita Valadas na Renascença.
Já Fernando Diogo sublinha a diminuição da taxa de abandono escolar precoce mas sublinha carências ao nível do insucesso escolar que considera "provavelmente o maior desafio ao desenvolvimento do país".
A pandemia não ajudará
Não existindo ainda dados estatísticos consistentes sobre o impacto da pandemia nos níveis de pobreza em Portugal. há dados indiretos que apontam para o agravamento das condições socioeconómicas dos portugueses mais expostos a esta realidade.
"Esta pandemia vem mudar as coisas, mas vem deixá-las na mesma, embora com valores um pouco mais elevados", admite Fernando Diogo ao sustentar que a pobreza está a receber de novo pessoas em situações vulneráveis que tinham acabado de sair da pobreza. " Tinham melhorado a sua vida e que agora estão em risco de voltar a cair. E claro temos também os famosos "novos pobres" que obviamente também estão a aparecer neste contexto e neste momento", observa o investigador da Universidade dos Açores.
Fernando Diogo admite que o impacto negativo será mais pequeno para os reformados e maior para as pessoas que estão em idade ativa.
"Se na crise anterior o setor de atividade mais afetado foi a construção civil, que tradicionalmente emprega muitas pessoas em situação de pobreza, nesta pandemia temos outros sectores de atividade onde também se empregam tradicionalmente muitas pessoas em situação de pobreza, nomeadamente a restauração e turismo. Mas também temos outros sectores de atividade onde as pessoas em situação de pobreza não são tão numerosas, como as pequenas lojas de rua e de bairro", acrescenta o coordenador do estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Já Rita Valadas avisa que a crise social vai ficar para lá do momento em que a crise económica seja dada como resolvida.
"A história desta crise vai escrever-se depois. Acho que ninguém pode dizer o que vai acontecer. Perguntaram-me no ano passado o que é que vai acontecer daqui a um ano. Disse que o que a crise nos ensinou em 2020 é que nós não podemos planear. O que nós planeámos em 2019 não aconteceu. Temos mais uma complexidade, em cima das crises económicas e sociais que nós temos sido habituados a ver", remata a presidente da Cáritas.