23.4.21

Sexo, religião, habitação: críticas a Censos “feitos à pressa” não páram

Maria João Lopes, in Público on-line

Mais de três milhões de pessoas já responderam, mas levantamento continua a motivar discussão.

Críticas em relação aos critérios para identificação de pessoas em situação de sem-abrigo. Críticas à ausência de questões sobre identidade de género e orientação sexual. Alertas sobre a lista de religiões e, ainda, sobre eventuais dificuldades da comunidade imigrante no preenchimento do inquérito. Na quinta-feira, já havia respostas de 1.521.806 alojamentos de residência habitual e de 3.755.019 pessoas, segundo dados que vão sendo actualizados no site do Instituto Nacional de Estatística (INE). Porém, e já depois de a ILGA Portugal e o BE terem apontado o dedo à “invisibilidade das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, ‘trans’ e intersexo no Censos de 2021”, a discussão em torno do processo continua e mais chamadas de atenção surgem. “Parece-me uma coisa feita à pressa, sem grande interesse em perceber qual a dimensão da diversidade que existe em Portugal”, diz a antropóloga, professora universitária e investigadora do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, do ISCTE-IUL, Cristina Santinho.

Foi já na semana passada que Manuel Grilo, com o pelouro da Educação e Direitos Sociais da Câmara Municipal de Lisboa, escreveu ao presidente do INE um email mostrando preocupação com os critérios para identificação das pessoas em situação de sem abrigo e defendendo a inclusão das “que se encontrem em respostas de alojamento temporário, de emergência, de transição, apartamentos partilhados, entre outras”.

Tendo em conta o “esforço” de “aprofundamento” das “respostas públicas”, dizia não poder “anuir com qualquer metodologia que desvirtue esta realidade”: “Evidencia-se que o número de pessoas em rua é bastante menor do que o número de pessoas que estão em respostas sociais, decorrentes de acompanhamento e encaminhamento, mas que não alteram a circunstância de permanecerem na situação de sem abrigo”. Manuel Grilo – que lembrava que este recenseamento em particular estava previsto acontecer entre 18 e 19 de Abril, em colaboração, por exemplo, com os Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo – manifestava “discordância com qualquer abordagem que enviese o conhecimento da realidade”.

Os bloquistas enviaram também uma pergunta à ministra de Estado e da Presidência sobre se “o entendimento” do Censos 2021 “relativamente às pessoas em situação de sem-abrigo é o da identificação de pessoas sem tecto e não de pessoas sem casa” e se “está o Governo disponível para diligenciar junto do INE para que o critério de identificação das pessoas em situação de sem-abrigo” permita incluir as outras situações referidas.

Os bloquistas estão preocupados com a exclusão desta classificação das pessoas alojadas, por exemplo, em centros de alojamento ou “quartos pagos pela Segurança Social”, alertando que tal “proporcionará um retrato estatístico muito distorcido da realidade”. O PÚBLICO questionou o INE sobre este tema, mas ainda sem resposta.

“Está a perder-se uma oportunidade”

Cristina Santinho mostra-se, ainda, preocupada com a necessidade de apoio a refugiados e imigrantes no preenchimento. Já no Facebook tinha referido que seria bom que todas as pessoas preenchessem o inquérito, “nomeadamente por causa das condições habitacionais, um dos maiores flagelos do país nesta matéria”.

Ao PÚBLICO, voltou a sublinhar esta preocupação com a importância de preencherem “claramente” o questionário, dizendo as condições residenciais em que vivem, muitas vezes com mais do que uma família a ocupar um fogo. “Está a perder-se uma oportunidade essencial para percebermos realmente a diversidade das condições de vida da população em Portugal”, diz.

Timóteo Macedo, coordenador da Solidariedade Imigrante, não tem recebido pedidos de ajuda na associação, mas antevê problemas no processo. Há na comunidade imigrante, diz, pessoas com dificuldades no português, no acesso à Internet e também quem mude de residência com muita frequência, por questões relacionadas com a situação documental e com precariedade no trabalho. “Imagine quem está a viver num lugarejo, a trabalhar na agricultura, numa barraca, nem sequer ouviram falar nisso, o Censos passa-lhes ao lado, estão preocupados com questões de residência, com trabalho, os processos que não terminam no SEF… Estamos a falar de uma comunidade com pessoas muitas vezes em condições dramáticas e em condições de sobrevivência.”

Ao PÚBLICO, o INE salientou que “a resposta aos Censos 2021 através da Internet pode ser efectuada em português e em inglês”, que estão disponíveis no site “exemplares dos questionários em diversas línguas estrangeiras (Árabe; Bengali; Francês; Hindi; Italiano; Mandarim; Nepalês; Romeno; Russo e Ucraniano) e em Língua Gestual Portuguesa”, e que a linha de apoio tem “atendimento em Inglês”. Mas não respondeu, entre outras questões, se todas as cartas colocadas nas caixas de correio foram em português.
“Tudo isto é sujeito a discussão, com certeza”

Cristina Santinho entende ainda serem “limitadas” as questões relativas à religião, classificando o item “outras”, cristãs e não cristãs, como “vago”. Entende que poderiam ser mais, concordando, por exemplo, que poderia ser incluídas as religiões de matriz africana. O questionário permite escolher a católica, ortodoxa, protestante/evangélica, testemunhas de Jeová, outra cristã, budista, hindu, judaica, muçulmana, outra não cristã e sem religião. O padre católico, professor universitário da Universidade de Coimbra e teólogo, Anselmo Borges, admite que, tendo em conta a “panorâmica muito ampla” elencada no questionário, este seria, de qualquer forma, mais inclusivo se atendesse também às chamadas “religiões tradicionais” que poderiam responder a parte da comunidade africana, por exemplo.

Ao PÚBLICO, o presidente da Comissão da Liberdade Religiosa, Vera Jardim, defende que o inquérito “já foi bastante mais inclusivo do que costuma ser, porque foram acrescentadas algumas religiões”: “O INE conversou connosco e solicitámos que fossem incluídas religiões que pensamos que possam ter algum peso em Portugal, mesmo que pequeno, porque há uma enorme predominância no país da Igreja Católica. Na nossa perspectiva, as religiões de matriz africana, afro-americana ou brasileira não têm em Portugal um peso que justificasse incluí-las, a maior parte das religiões de origem brasileira e africana que nos chegam são, de modo geral, evangélicas ou neopentecostais. O universo é muito pequeno e, em estatística, tem de haver universos mínimos. Nós não levantámos esse problema. Temos de ter um levantamento tratável do ponto de vista estatístico, já nessa lista há religiões que irão ter um peso pequeno”, diz.

E acrescenta: “Da realidade que conheço, as religiões de matriz africana não têm peso significativo nas comunidades africanas e brasileira em Portugal, muito longe disso.” Baseia-se, por exemplo, nos pedidos de inscrição de comunidades religiosas que chegam à comissão: “Não me parece que seja significativo esse peso, mas sim um universo limitado, só se existem e não pedem, não é obrigatório as religiões estarem inscritas, podem existir sem estarem inscritas. As estatísticas e os censos têm de lidar com grandes números, puseram-se as que se julga terem um peso mais significativo. Tudo isto é sujeito a discussão, com certeza.” Afirma que não se podia “pôr as religiões todas do mundo” e que também não têm campos autónomos, por exemplo, os sikhs, o xintoísmo, os bahá’í, ou os anglicanos, entre outros. O INE respondeu que, “no âmbito da consulta pública, os utilizadores nacionais consideraram adequada a observação da variável religião”, que a questão foi “analisada no âmbito do Conselho Superior de Estatística” e que as categorias de respostas “foram articuladas com especialistas da Comissão da Liberdade Religiosa”.
"Pessoas idosas com dúvidas"

O PÚBLICO contactou algumas juntas de freguesia para perguntar como estava a correr o processo. ​A junta de freguesia do Bonfim, no Porto, registou “muita afluência, com pessoas idosas com dúvidas sobre os Censos 2021”, lê-se numa resposta enviada por escrito. O presidente da Associação Nacional de Freguesias também admitia que pessoas sem Internet em casa ou com dificuldade em usá-la estavam a ir às juntas. Garantia, no entanto, que tal era expectável e que têm recenseadores para ajudar. Na página do INE, pode ler-se que, quem “não tiver condições para responder pela Internet”, pode solicitar “o apoio de familiares ou amigos”, telefonar para a linha de apoio (210542021), dirigir-se à junta de freguesia ou aguardar pelo contacto do recenseador.

Em Lisboa, a junta de freguesia de Arroios, garantiu, por escrito, que o processo estava a “correr bem”, estando já os cidadãos “a entregar via electrónica os questionários preenchidos, a recorrer ao apoio ao respondente ou a deslocar-se aos três e-balcões disponíveis na freguesia”. Já em Coimbra, o coordenador da freguesia de Santo António dos Olivais nos Censos 2021, respondeu que, “no e-balcão do Censos 2021” naquela junta, “foi já prestado apoio ao preenchimento do questionário” a 145 fregueses. Ali, “num universo de 28.156 cartas código entregues, foram reportadas cinco situações em que não houve entrega de carta código em alojamento afecto a residência principal e quatro de extravio de cartas código regularmente entregues” e até 21 de Abril tinha sido reportada “uma situação de impossibilidade de preenchimento online do inquérito com código originariamente atribuído”. As situações foram resolvidas.

Na União de Freguesias de Carnaxide e Queijas, Oeiras, há três e-balcões, a funcionar desde 20 de Abril, seis horas por dia, tendo sido “o fluxo registado”, em dois dias, até 21 de Abril, de 30 pessoas por dia em cada balcão (90 por dia, no total). A mesma resposta adianta que houve “algumas” pessoas que afirmam não ter recebido a carta e, ainda, que “o balcão da sede em Carnaxide já tem reservas de atendimento para as próximas duas semanas”.

Quanto à pergunta sobre a nacionalidade – que prevê como respostas “portuguesa por nascimento”, “portuguesa por aquisição (naturalização, casamento…)”, “estrangeira”, e “apátrida” e que também motivou dúvidas junto de quem tem, por exemplo, dupla nacionalidade –​ o INE cita um regulamento europeu e responde que, “no caso das pessoas com dupla nacionalidade e de acordo com as regras estabelecidas” no regulamento “uma pessoa com duas ou mais nacionalidades é afectada a um só país, a determinar por um conjunto de precedências, nomeadamente país declarante, país da União Europeia, outra situação”.

O processo do Censos tem gerado discussão. Cristina Santinho também aponta como problema a já referida “ausência de referência” ao género e orientação sexual no inquérito. Sublinha que, no questionário, “só vem muito vagamente o sexo”: “Pergunta-se o sexo, mas não se pergunta nem o género, nem a orientação sexual, o que é importante, se queremos fazer um retrato da população e da diversidade da população, se não o fazemos é negar uma série de realidades pessoais e individuais que nos dão a dimensão socioantropológica da população que vive em Portugal”.

O BE já tinha enviado outra questão à ministra de Estado e da Presidência sobre que “acções vão ser tomadas” para que “sejam recolhidos dados para tratamento estatístico das pessoas lésbicas, gay, bissexuais, ‘trans’ e intersexo” e sobre se está disponível para promover, através do INE, um inquérito sobre estas pessoas, “como é exemplo o inquérito sobre as origens étnico-raciais” – apesar de os Censos de 2021 não incluírem uma pergunta sobre as origens étnico-raciais, o INE já tem uma proposta de inquérito neste sentido, estando o projecto-piloto previsto para este ano.

Ao PÚBLICO, o gabinete da ministra lembrou que Mariana Vieira da Silva​ já respondeu a esta questão, referindo que, em 2018, “houve uma consulta pública relativamente ao Censos 2021, não tendo na altura sido feita qualquer sugestão de inclusão de questões específicas sobre a identidade de género ou sobre a orientação sexual” e ressalvou, ainda, que o INE é “dotado de independência e de autonomia”. Quanto ao INE, respondeu, por escrito, que “os Censos são enquadrados por legislação da União Europeia” na qual “estão definidas as variáveis de observação obrigatória e as respectivas categorias”, referindo que o que é estabelecido “para a variável sexo” é “apenas as categorias masculino e feminino”.