Mais de um terço dos pobres em Portugal são trabalhadores, a maioria dos quais com vínculos estáveis e salários certos ao fim do mês. Um estudo divulgado esta segunda-feira traça o perfil da pobreza em Portugal, agrupando-os entre reformados, desempregados, precários e trabalhadores. Uns sentem-se pobres, outros não. A maioria declara-se feliz.
A pobreza herda-se e não basta ter um emprego seguro para se sair dessa situação. Em Portugal, pelo menos, onde 11% dos trabalhadores são pobres, apesar de terem trabalho e salário certo ao fim do mês. Contas feitas, no estudo A Pobreza em Portugal – Trajectos e Quotidianos, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, os trabalhadores pesam 32,9%, ou seja, constituem um terço do total de pobres (16,2% da população que vivia com menos de 540 euros líquidos por mês em 2019, segundo o Instituto Nacional de Estatística). A maior parte destes trabalhadores pobres até tem vínculos estáveis, muitos há mais de 10 anos, alguns há mais de 20 na mesma empresa.
“O ordenado destas pessoas é baixo, por volta do ordenado mínimo ou ligeiramente acima, o que as coloca imediatamente acima do limiar de pobreza. Mas, quando se divide este ordenado pelos membros da família, que, no caso dos trabalhadores pobres tende a ser mais alargada, toda a família é colocada em situação de pobreza”, explica o coordenador do estudo, Fernando Diogo, professor de sociologia na Universidade dos Açores e investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa. E porque é que assim é?
“Longe de ser um fenómeno individual, a pobreza é contextual. Estamos a falar de uma pobreza que se herda, que tende a ser tradicional e persistente na vida do indivíduo, e que depois se conjuga com um problema sistémico que decorre da forma como a sociedade se organiza em termos de mercado de trabalho, e de distribuição de recursos, porque o Estado não consegue compensar as ineficiências do mercado de trabalho para impedir que algumas destas pessoas sejam pobres”, responde o também investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa.
É da conjugação entre os baixos rendimentos do trabalho com uma estrutura familiar que tende a ser mais alargada que surgem estes trabalhadores pobres, cuja situação surge ainda agravada pela “fragilidade da rede de segurança que o Estado proporciona”, nomeadamente na doença e no problema da conciliação trabalho-família. “Entrevistámos um casal em que um deles teve de se desempregar para tomar conta do filho deficiente, o que arrastou logo a família toda para a pobreza”, exemplifica Fernando Diogo, cujo estudo, que envolveu uma equipa de especialistas e cerca de 90 entrevistas a pessoas em situação de pobreza, desde o centro de Lisboa a aldeias do interior do país com não mais do que 30 habitantes, partiu de uma pergunta simples: quem são e como vivem os pobres a sua situação de pobreza em Portugal?
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A pobreza herdada e os três D
A partir da análise de uma série cronológica dos indicadores da pobreza, a investigação permitiu desenhar pela primeira vez uma proposta de perfis de pobreza em Portugal: além dos trabalhadores pobres, os reformados, os precários e os desempregados. E, descontadas as diferenças, a grande maioria dos pobres surge como vítima de “um processo de reprodução intergeracional da pobreza”. “Cresceram num contexto mais ou menos continuado de privação, o que condiciona, à partida, as suas oportunidades de vida, nomeadamente contribuindo para antecipar a saída da escola e a entrada no mercado de trabalho e consequentemente ingressando em empregos pouco qualificados”, situa o estudo.
É a velha pescadinha de rabo-na-boca. A saída antecipada da escola, que aumenta e muito a probabilidade de se ser pobre, decorre também ela da pobreza do contexto familiar, como precisa ao PÚBLICO Fernando Diogo. “O abandono precoce da escola é transversal aos vários perfis de pobres, por razões que se prendem quase sempre com o apoio à família, seja para substituir uma mãe doente nas tarefas domésticas, um pai ausente, para tomar conta de um irmão deficiente ou de um avô acamado, ou simplesmente para ajudar a ganhar algum dinheiro.” Seja qual for o gatilho, o que está a montante é sempre a falta de dinheiro das famílias.
Mas há outros factores a jogar a favor da entrada na pobreza. São aquilo a que os investigadores chamam os três D: desemprego, doença e divórcio. “Todos envolvem rupturas com impacto na vida dos indivíduos e das suas famílias”, lembram os investigadores.
O estudo nota, porém, que não estaríamos perante catalisadores tão fortes da entrada na pobreza, ou da sua intensificação e perpetuação, se as pessoas não estivessem mergulhadas num contexto de forte desregulação do mercado de trabalho e num tecido económico que tende a segmentar e a desqualificar determinadas ofertas de emprego, por mais importantes que estas sejam “para a sobrevivência do sistema como um todo”. “Quem limpa os escritórios? Quem cuida dos jardins? Quem recolhe o lixo? Quem constrói edifícios e estradas? Quem realiza os trabalhos agrícolas mais pesados”, questiona o estudo, cujos autores apontam estas como sendo algumas das profissões que “poderiam com facilidade ser alvo de processos de qualificação, com evidentes impactos na produtividade de indivíduos e empresas”.
Licenciados menos imunes à pobreza
Ao longo dos últimos anos, manteve-se a relação inversa entre o nível de instrução mais elevado e o risco de cair na pobreza. O estudo nota, no entanto, que, contrariamente ao que acontecia há alguns anos, ter um curso de nível superior já não é suficiente para assegurar a imunidade face a situações de pobreza. Quase 5% dos indivíduos com curso superior encontravam-se em 2016 em situação de pobreza, numa circunstância a que não está alheio o forte aumento do desemprego jovem qualificado.
Uma boa parte dos entrevistados considera que não se encontra em situação de pobreza, comparando-se com outros mais pobres do que eles e referenciando, amiúde, as situações de quem passa fome ou de quem vive numa situação de sem abrigoFernando Diogo
Reconhecendo que assim é, Fernando Diogo chama a atenção para o facto de a escolarização continuar a ser o maior protector social contra a pobreza. “Está a perder um pouco de força, antigamente ter um curso superior era uma garantia contra a pobreza, e agora já não é bem assim, mas o estudo também mostra que quem tem o ensino básico ou menos tem uma probabilidade acrescida de 14,4% de ser pobre em relação a quem tem o ensino superior.”
E que impacto terá o prolongamento da escolaridade obrigatória até ao 12.º ano ou até aos 18 anos na redução da pobreza? “Vai ter impacto na melhoria da qualificação das pessoas de famílias mais vulneráveis, desde que estes jovens que ficam na escola até aos 18 anos o façam com sucesso escolar, o que não é garantido”, responde o sociólogo, para quem importava, aliás, que o Estado apostasse na formação dos professores para que estes “consigam chegar melhor aos alunos”.
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O estudo descortinou, de resto, no discurso dos entrevistados uma “ruptura com a posição habitual de desvalorização da escola que era muito comum nos meios menos escolarizados, sobretudo rurais, fazendo antever que a resistência à escola esteja a desvanecer-se, mesmo no seu reduto mais irredutível.
Pobres recusam ver-se como tal
E os pobres sentem-se pobres? “Uma boa parte dos entrevistados considera que não se encontra em situação de pobreza, comparando-se com outros mais pobres do que eles e referenciando, amiúde, as situações de quem passa fome ou de quem vive numa situação de sem abrigo”, lê-se no estudo, cujos autores denunciam esta confusão entre pobreza e miséria. Outros “assumem-se como pobres, mas relativizam a sua condição por relação ao seu passado”, recorrendo a um “mecanismo de racionalização discursiva” que lhes permite “minimizar os impactos emocionais negativos associados a um lugar no fundo da escala social”.
As críticas [aos apoios do Estado] estão associadas, por um lado, à exiguidade dos apoios oferecidos e, por outro, ao escrutínio que é exigido em troca, invadindo a dignidade, a privacidade e a autonomia dos beneficiáriosFernando Diogo
“É um mecanismo de defesa psicológica que permite às pessoas conseguirem viver com quem são sem entrarem em situações de angústia e desespero”, interpreta Fernando Diogo, lembrando que, mais do que isso, uma parte significativa dos inquiridos se declarou feliz. “Mas esse discurso da felicidade”, ressalva ainda o investigador, “está sobretudo assente nas esperanças em relação aos filhos e aos netos”. Em suma, “não é uma coisa centrada numa felicidade pessoal”.
Curiosamente, e pese embora o peso dos apoios sociais na mitigação da pobreza, a maioria dos inquiridos mostra-se crítica quanto aos mecanismos de protecção social do Estado. Porquê? “As críticas estão associadas, por um lado, à exiguidade dos apoios oferecidos e, por outro, ao escrutínio que é exigido em troca, invadindo a dignidade, a privacidade e a autonomia dos beneficiários”, lê-se no estudo.
“As pessoas sentem-se menorizadas e alvo de desconfiança”, sublinha o coordenador, que lembra a este propósito que as opiniões mais críticas incidiram sobre os serviços de verificação de incapacidades e “vão no sentido de muito controlo e pouco apoio”.
Por outro lado, alguns pobres recusam recorrer a este tipo de apoio por vergonha, num sentimento extensível mesmo a muitos dos que a ele recorrem. “A família providência é um recurso importante para a maioria dos entrevistados, quer estes estejam no papel de receptor, quer no de provedor”, enfatizam os investigadores. Aqui, a diferença entre os pobres e os que estão acima na escala social, é que o apoio da família “visa assegurar a subsistência, por contraponto aos apoios à promoção social existentes noutras categorias e grupos sociais”.
Os pobres do futuro
A partir da evolução da taxa de pobreza no período compreendido entre 2003 e 2016 (com um intervalo para lembrar que a pobreza agravou-se entre 2012 e 2014, aquando da presença da troika em Portugal e que a recuperação observada desde então ainda não foi suficiente para repor os valores pré-crise), o estudo assinala os grupos que serão mais provavelmente atingidos pela pobreza nos próximos anos: “As crianças e jovens, mas também as famílias monoparentais, as famílias alargadas com crianças, os indivíduos com baixíssimo nível de instrução (inferior ao primeiro ciclo do ensino básico), os desempregados e a população inactiva.”
Juntos compõem os chamados “vulneráveis”, isto é, “indivíduos que estão acima do limiar da pobreza, mas para os quais qualquer acidente, como os condensados nos três D, os atira, e às suas famílias, para essa situação”.
Este alerta sobre a existência deste “grupo de vulneráveis à pobreza” ganha acutilância acrescida se atendermos à crise social e económica que a pandemia faz adivinhar. Receitas para prevenir um novo agravamento da pobreza? “É incontornável a discussão sobre a distribuição dos recursos, quer directamente através dos salários quer indirectamente através das transferências que o Estado faz para as pessoas, nomeadamente na conciliação trabalho-família, e a discussão sobre a precariedade”, sugere Fernando Diogo, para quem, atenuada que está a pobreza entre os idosos, as crianças e jovens merecem uma atenção especial, dado serem agora “a categoria social mais afectada pela pobreza”.