André Borges Vieira (texto) e Adriano Miranda (fotografia), in Públio on-line
Muitas vezes há bens deixados nos locais de pernoita que desaparecem. Alguns desaparecem por roubo, mas há quem atribua o desaparecimento a acções de moradores ou às rotinas de higienização. Autarquia garante que só é recolhido o que está estragado.
Há três semanas, M., quase a completar 52 anos, ficou sem todos os bens que tinha. Vive desde os 12 anos nas ruas do Porto e ao longo de quatro décadas a viver sem tecto já várias vezes teve de recomeçar do zero. Na entrada do prédio onde pernoita guarda também tudo o que vai coleccionando, roupa e tudo o que precisa para se abrigar durante a noite. Por norma, não sai do local que encontrou para usar como sua base. Mas há uns dias largos precisou de se ausentar durante uma tarde. Quando chegou já lá não estava nada do que deixou para trás. Até hoje, não sabe quem lhe subtraiu os pertences. Pouco tempo teve para pensar nisso. Objectivo principal era reunir o mínimo para passar mais uma noite na rua.
O mesmo já aconteceu a outras pessoas na mesma condição. Cada um tem as suas estratégias para contornar estes contratempos que nesta franja da população não são pequenos. Como se recomeça do zero quando já não se tem muito?
“Fiquei apenas com a roupa que tinha no corpo”, conta M., sentado junto de novos pertences que voltou a reunir. Debaixo do prédio onde está já voltou a guardar mais uma dezena de sacos com roupas e cobertores que armazena entalados entre a beirada do prédio e o chão. “Tive de voltar a juntar tudo com o que me foram dando”, diz.
Quando se pergunta quem poderá ter removido os seus bens do local afirma poder ter sido resultado de acção feita por alguém que more na zona ou no âmbito das rotinas de higienização acompanhadas pela Polícia Municipal. “Às vezes, acontece levarem algumas coisas”, atira. A apoiar esta tese está J., que também pernoita na zona. “Já me desapareceram coisas, mas nada de especial. Levaram-me um ou dois sacos”, afirma.
M. vive há mais tempo na rua do que alguma vez o fez debaixo de um tecto. Já várias vezes foi encaminhado para uma das soluções temporárias existentes no concelho, como são exemplo os Albergues do Porto ou as antigas instalações do Hospital Joaquim Urbano. Mas recusou sempre. “Eu gosto de estar ao ar livre. Sinto-me melhor aqui. Nesses sítios há muita confusão”, atira.
Noutra zona da cidade está L.. Costuma dormir numa entrada de uma das ruas mais movimentadas da Baixa. Enquanto fala connosco não tem nenhum dos seus bens consigo – estão escondidos. Já lhe desapareceram algumas coisas. Para evitar que isso aconteça outra vez, diz ter encontrado um local escondido onde guarda as roupas e o que precisa para dormir.
Esta foi a sua estratégia para evitar mais vezes ficar sem os seus pertences. Já R. fica em guarda o tempo todo. Em zona mais recatada, debaixo de um prédio, vários sacos cheios de roupa fazem uma espécie de barreira entre R. e quem passa pelo passeio. É sábado à tarde e está deitado numa cama improvisada, acompanhado pelo seu cão. “A mim já me roubaram dinheiro”, conta. No resto dos seus pertences nunca tocaram, garante. “Fico sempre aqui para não desaparecerem”, afirma.
Desde o primeiro confinamento, por força da ausência de pessoas na rua em número semelhante a tempos pré-pandemia, pela Baixa do Porto, espaços de pernoita de sem-abrigo foram crescendo em ocupação de área. Visível era o crescimento do número de objectos acumulados nesses locais.
Mas nas últimas semanas, em determinadas zonas da cidade, é possível verificar a diminuição de objectos acumulados em áreas usadas por sem-abrigo, ainda que continue a poder ver-se nos locais alguns bens pertencentes aos mesmos.
“Higienização” e não “expulsão”
Na última semana, um vídeo que circulava no Facebook, que mostrava funcionários de limpeza e a Polícia Municipal a retirar objectos de uma zona da via pública alegadamente utilizada por alguém para dormir, sugeria que a autarquia estaria a levar a cabo acções para retirar os sem-abrigo dos seus locais de pernoita. Fazia essa sugestão quem o publicou.
Ao PÚBLICO já tinham chegado algumas queixas de que isso poderia estar a acontecer. Mas, de acordo com o que foi possível apurar, só acontecerá quando os locais são abandonados por algum tempo e não é possível identificar quem lá estava.
Contactada pelo PÚBLICO, a autarquia garante não fazer parte da sua política expulsar sem-abrigo dos seus locais de pernoita. No caso da intervenção que se vê no vídeo, adianta ser uma intervenção resultante de denúncia de um munícipe, que relatou uma situação de acumulação de “lixeira”, mantida “há várias semanas”. Sublinha a câmara que este caso não se prende com qualquer medida direccionada aos sem-abrigo, mas sim com “acções recorrentes de reposição da normalidade em espaços onde coexistem ameaças concretas à saúde ou à segurança pública”.
Na sua maioria, afirma a autarquia, estas intervenções são desencadeadas a partir de denúncias de munícipes, que convocam a CMP “a higienizar regularmente o espaço público”. A autarquia esclarece que a Polícia Municipal (PM) acompanha semanalmente nove acções de limpeza urbana – sete no âmbito do programa Porto Cidade Sem Droga e duas da EMAP - Empresa Municipal de Ambiente do Porto.
“De 1 de Janeiro de 2020 até 24 de Março de 2021, e exclusivamente no projecto Porto Cidade Sem Droga, a PM acompanhou 1437 acções que resultaram na retirada de 69.110 quilogramas de resíduos do espaço público”, adianta, sublinhando realizarem-se na “sua esmagadora maioria em áreas comummente frequentadas por consumidores de substância de abuso, com dinâmicas espaciais muito próprias e, por vezes, altamente voláteis”.
Estas acções, acrescenta, “são efectuadas à luz do dia” – nunca antes das 8h30 –, sendo que “num número consideravelmente elevado de casos, não é possível encontrar o utilizador do espaço”. “Os equipamentos retirados são previamente verificados pelos elementos da limpeza urbana, sobretudo, no intuito de detectar documentos e pertences que possam ser conservados e entregues. São retirados todos os equipamentos que se encontram em estado de limpeza deficitário e, como tal, é uma acção muito delicada pelos riscos sanitários que envolve para os trabalhadores”, explica a autarquia, expondo o caso de um agente da PM que em Agosto do ano passado “picou-se numa seringa com fluidos orgânicos”, encontrando-se ainda em seguimento pela Unidade de Infecto-Contagiosas de um hospital da cidade.
Diz a CMP que quando um utilizador é encontrado, é-lhe pedido que retire os seus bens da via pública ou que identifique quais os que poderão ser retirados pela limpeza urbana. “Não é incomum ser o próprio utilizador quem identifica os equipamentos que podem ser retirados”, afirma, acrescentando que a maioria tem já rotinas muito próprias de retirada dos seus bens antes do funcionamento dos espaços comerciais ou da intervenção das equipas da autarquia – “as medidas de higienização destes espaços são também a forma de dar dignidade sanitária possível a quem encontrou na rua a sua única casa”.
“É frequente encontrarem-se áreas onde coexistem fezes, urina ou vómitos com cobertores e colchões, sendo a actuação direccionada na higienização e retirada destes equipamentos”. Esclarece a autarquia serem estes os equipamentos que são removidos. Há ainda alguns objectos encontrados que podem representar risco para a saúde pública, como é o caso de “seringas, pratas, cachimbos, ou fluidos orgânicos, nomeadamente sangue”.
Ressalvando mais uma vez que estas acções de higienização não são dirigidas à população sem-abrigo, a autarquia relembra ser coordenadora do NPISA - Núcleo de Prevenção e Integração nos Sem-abrigo. Para essa população existem uma série de respostas sociais aprovadas em Junho de 2020, dentro das quais faz parte a resposta criada nas antigas instalações do Hospital Joaquim Urbano, agora geridas pelo município, no âmbito das respostas de Centro de Acolhimento Temporário para Pessoas em Situação de Sem-Abrigo e Centro de Acolhimento de Emergência Covid para Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, onde actualmente há capacidade para 70 utentes, sendo que actualmente há 16 vagas disponíveis.
O PÚBLICO contactou a associação de voluntários Saber Compreender, integrante da rede NPISA, que diariamente faz rondas pela cidade, para saber se conheciam casos de queixas dentro da população sem-abrigo relativamente a bens que tivessem desaparecido no âmbito das rotinas de higienização da câmara. Em nota assinada pelo presidente do colectivo Cristian Georgescu, é referido um caso ocorrido “há uns anos” em que uma pessoa sem-abrigo viu serem-lhe subtraídos os seus bens no âmbito de uma rotina de higienização. Porém, adiantam, desde essa altura, a autarquia, que na altura terá dito desconhecer o caso, comprometeu-se a convocar a associação sempre que existissem casos em que fosse necessário retirar pessoas de determinados locais.
“A partir daí, ficou acordado convocar-se uma reunião com a PM em todas as vezes que for necessário retirar pessoas de locais, o que acontece nomeadamente pela pressão dos moradores”, refere. No caso particular do vídeo que andou a circular, ainda dizem desconhecer o que realmente se passou. “Estamos à espera de resposta”, lê-se. Quanto a queixas de outras pessoas, adiantam não terem dados nesse sentido. Porém, reforçam: “As pessoas têm direito ao descontentamento com as respostas existentes, nomeadamente no que respeita às respostas de alojamento. Enquanto organização não nos revemos neste tipo de expulsão das pessoas em situação de sem-abrigo de determinados lugares”.