13.4.21

Eugénio da Fonseca: “É um escândalo" um terço dos pobres serem trabalhadores

 Ana Carrilho , Marta Grosso , Beatriz Lopes, in RR

A Renascença ouviu reações ao estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre pobreza em Portugal. O padre Jardim Moreira aponta a iliteracia e as famílias monoparentais como problemas a resolver e a presidente da Confederação Nacional de Ação sobre o Trabalho Infantil lembra sublinha a importância dos salários dignos.

"Se queremos que as famílias tenham mais filhos, os pais têm de ganhar o suficiente", diz Fátima Pinto. Foto: EPA

Cerca de 20% da população portuguesa é pobre e a maior fatia é de pessoas que trabalham: cerca de um terço. Eugénio da Fonseca, presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado, manifesta-se surpreendido com uma taxa tão alta e considera um escândalo que tanta gente que trabalha não consiga um salário e um trabalho digno.

“É um escândalo nós termos 32,7% dos trabalhadores em condição de pobreza. Não é justo que se usem argumentos para estigmatizar os pobres e há muita gente a trabalhar e o resultado do seu trabalho, o valor dos salários não são suficientes. É uma injustiça redobrada, porque muitas vezes são trabalhos até em situações pouco dignas”, defende em declarações à Renascença.

Eugénio da Fonseca mostra-se muito preocupado com o facto de a pobreza não se prender apenas com o salário, mas também o acesso a bens e serviços essenciais como a habitação ou a saúde.

Ser pobre não pode ser uma fatalidade, afirma. “Há que criar condições alternativas em termos de pedagogia, em termos didáticos, em forma de currículos alternativos para tornar a escola mais atraente”, aponta, considerando que “há aqui uma discriminação que leva a insucesso escolar e o abandono precoce para satisfazer a falta de rendimentos que existe em muitas famílias é altamente preocupante”.

Estudo
Pobreza em Portugal. "Não basta ter um emprego seguro"


O presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado sublinha que o estudo foi feito antes da pandemia, o que significa que a realidade de hoje pode ser muito mais grave e dramática.

Eugénio da Fonseca lembra o problema das moratórias que estão a chegar ao fim e defende medidas que atenuem o impacto da necessidade de resolver as dívidas sem perda do essencial, como a habitação.

“É preciso ter uma atenção para a forma como se vai amortizar as dívidas que as pessoas contraíram para não perder eletricidade, água, gás e a habitação em que vivem. Que apoios é que as pessoas vão ter para não carregarem às costas uma dívida que vai aumentar e que pode levar efetivamente àquilo que não se desejou nestes últimos meses, que é a perda do acesso a estes bens básicos para uma subsistência digna?”, questiona.
Iliteracia e famílias monoparentais

À Renascença, presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza diz que, neste momento, há dois problemas principais no que toca à pobreza em Portugal: as famílias monoparentais que não têm capacidade para pagar todas as despesas e a iliteracia digital que se traduz em baixos salários.

“Nós estamos com muita gente com bastante iliteracia escolar, mas temos agora também a iliteracia digital e se as pessoas não tiverem possibilidade de frequentar a escola e serem acompanhadas por uma formação e qualificação profissional, dificilmente poderão entrar depois na vida ativa do emprego”, aponta o padre Agostinho Jardim Moreira.

“Outro problema é das famílias monoparentais. A pobreza trata-se essencialmente no feminino. Fica a mulher com os filhos, não tem capacidade económica para pagar casa ou renda, não pode acompanhar os filhos, porque vai trabalhar e isto cria um problema muito grave ao nível familiar”.
“Não basta dar dinheiro”

O padre Jardim Moreira lembra que a pobreza coloca em causa a democracia e apela ao Governo que, juntamente com as Câmaras e Juntas de Freguesia, criem programas de formação e de acompanhamento de pessoas em situação de pobreza em Portugal. Até porque o problema, diz, não se resolve com subsídios.

“Temos de perceber que não basta dar dinheiro. Já sabemos, por um estudo que foi feito há cerca de dois anos, que em Portugal são precisas cinco gerações para sair da pobreza. Quer dizer que o dinheiro que se gasta não atinge as causas que geram a pobreza e, portanto, é necessária uma intervenção que vá a essas causas e que ajude as pessoas pela formação, pela informação, pela capacitação e pelo acompanhamento, para elas poderem participar e entrar na vida ativa e não ficarem toda a vida a viver do subsídio”, sustenta.

Na opinião do presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza, “já se criou em Portugal uma certa mentalidade de que os pais vivem do RSI [Rendimento Social de Inserção], os filhos também vão viver do RSI e isto parece quase uma profissão”.
“Salários têm de ser mais justos”

A presidente da Confederação Nacional de Ação sobre o Trabalho Infantil (CNASTI ) não se mostra surpreendida com os números conhecidos nesta seguinda-feira sobre a pobreza em Portugal.

Na opinião de Fátima Pinto, tudo começa em salários justos para os pais e apoios suficientes e em tempo útil. Isto, para evitar também o abandono escolar das crianças.

“Os salários têm de ser mais justos e sejam suficientes para as famílias viverem com dignidade. Se queremos que as famílias tenham dois ou três filhos, os pais têm de ganhar o suficiente para que as crianças sejam mantidas, possam ir para a escola, possam vestir, possam habitar uma habitação digna e que haja apoios às famílias que caiam no desemprego, que caiam em situação de doença e que haja apoios rápidos. Que se resolvam os problemas”, defende, em declarações à Renascença.

A dirigente associativa chama ainda a atenção para a responsabilidade dos empresários nesta matéria. “Têm uma responsabilidade muito grande, porque quando se fala em aumentos de salários mínimos parece que se fala no diabo do inferno”, alega.

“É importante que as pessoas percebam que as famílias têm de ter os rendimentos para viver com dignidade. Enquanto isto não acontecer, correremos sempre o risco muito elevado de ter crianças a abandonar as escolas, crianças no mundo do trabalho, seja em que situação for”, argumenta.

Com a crise pandémica, Fátima Pinto diz que há muitas crianças, concretamente das famílias mais pobres, que não estão a voltar à escola porque muitas vezes até são marginalizados – algo que considera preocupante.

Segundo o estudo divulgado nesta segunda-feira, promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, um em cada três portugueses pobres tem um emprego estável, mas os salários não são suficientes para dar resposta à família, que muitas vezes com filhos tem adultos desempregados.

Os investigadores sustentam que a razão da pobreza "reside na coexistência do trabalho com baixos salários" com o chamado "desemprego familiar", que caracteriza a combinação no mercado de trabalho dos membros do agregado familiar, sendo que o rendimento não constitui condição suficiente para a superação da pobreza.

A pobreza em Portugal é o tema do programa Da Capa à Contracapa, que vai para o ar na terça-feira, às 23h na Renascença e que poderá ouvir de novo em podcast, na app.