Por Graça Barbosa Ribeiro, in Público on-line
O desemprego oferece tempo livre, mas não obrigatoriamente de qualidade, alertam os especialistas, que se preocupam com o número de pais que estão a tirar os filhos das instituições.
Cláudia Silva, directora de serviço d’O Cogumelo, em Setúbal, recebe o telefonema de uma utente que informa que o filho vai deixar de frequentar as Actividades de Tempos de Livres do jardim-infantil. A educadora procura convencê-la a não desistir, chama-a para conversar. Sem sucesso: “O pai está desempregado, pode ficar com ele e sempre é menos uma despesa”. O episódio repete-se por todo o país, assegura Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade. Afirma que esse deve ser um factor de preocupação e os especialistas das áreas da Psicologia e da Sociologia confirmam-no.
Lino Maia não revela números. Diz que o levantamento não está feito e que, ainda que estivesse, não os revelaria, para “não provocar alarme social”. Limita-se a afirmar que as IPSS asseguram a creche a 30 mil crianças, os infantários a 50 mil e as ATL a 80 mil. E que, com o aumento galopante do desemprego, só as conseguem manter sob os seus cuidados “descendo os preços, perdoando dívidas e desobrigando os pais do pagamento das mensalidades, quando os casos são extremos”. Afirma que as instituições estão “exangues” e insiste que no momento de renegociar os apoios do Governo será essencial que aquele “pelo menos não baixe” e, se possível, “suba” os montantes a transferir.
“Tentamos sempre manter as crianças. Principalmente quando se trata da creche ou do infantário, isso é muito importante para os pais, que têm esperança de, a qualquer momento, serem chamados para algum trabalho”, diz Cláudia Silva, coordenadora do infantário da Cáritas Diocesana em Setúbal. Em relação às ATL é mais difícil: “Esta mãe, por exemplo, disse-me que não compensava acumular dívidas”. Os pais não têm noção, diz a educadora, “de que as actividades de tempos livres têm uma função importantíssima em termos de organização, de valorização do trabalho e do estudo, e também de estímulo de todo o estilo de competências”.
Esser Jorge Silva, que no âmbito de uma investigação feita na Universidade do Minho acompanhou as mudanças produzidas na vida dos operários desempregados do Vale do Ave, tem a mesma opinião. “Continua a existir uma importante camada da população, que inclui uma parte da classe média urbana, que não valoriza a aprendizagem, a escola, e para quem a creche, os infantários, as ATL – e, por vezes, até a própria escola – são um armazém, um sítio onde se deixa os filhos para se ir trabalhar. Se não há trabalho, não faz sentido deixá-los lá, principalmente se isso significar alguma poupança”, relata.
O autor do livro Fabricados na Fábrica considera que ainda existe pouca noção do retrocesso que o abandono das instituições pelas crianças pode acarretar. Regressam a um meio onde a escolarização é desvalorizada e ficam entregues a pessoas que, “muitas vezes, não só não têm qualificações como estão sob os efeitos tremendos do desemprego”, diz. “Estar exposto aos pais não é o mesmo que estar com os pais. Às vezes até comentamos que os desempregados passam os dias nos cafés, a gastar o dinheiro que não têm para dar uma refeição aos filhos. Mas que sabemos nós? Quem está habituado a uma vida de trabalho, quando o perde, fica desorientado”, diz Cláudia Silva.
Famílias destroçadas
O problema, no entanto, é mais vasto do que poderia parecer, e a desorganização provocada pelo desemprego não é um exclusivo dos pais das crianças que frequentam as IPSS. “É um gravíssimo factor de stress para todas as pessoas, que resulta de muito mais do que da perda de vencimento”, diz Madalena Carvalho. Esta investigadora e responsável pela consulta de Terapia de Casal e Familiar da Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra descreve o desemprego como “um golpe violento na auto-estima do indivíduo, que é sentido como uma perda de poder e de estatuto no seio da família e na sociedade e que se traduz num sofrimento imenso, e na degradação da saúde mental e física”.
Sofia Aboim, socióloga do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, contactou recentemente com o fenómeno, no âmbito de um projecto em curso, e admite ter ficado surpreendida com a vergonha associada ao desemprego. “Já trabalhámos com as situações mais diversas e sobre os temas mais delicados e nunca nada de parecido nos tinha sucedido: foi muito difícil arranjar pessoas que aceitassem participar, depois marcavam e desmarcavam as entrevistas, deixavam de atender o telefone...”O resultado das conversas com os desempregados confirmou a tese da Psicologia: “Pensar que pode haver algum benefício num maior contacto destas pessoas com a família – e, nomeadamente, com os filhos – não faz sentido absolutamente nenhum. Pelo contrário: os mais jovens abandonam projectos conjugais e familiares; os que têm mais de 40 anos estão num processo de perda de identidade e de desespero que pode resultar em actos de violência contra si próprios e contra terceiros”, afirma a socióloga.
Sofia Aboim e Madalena Carvalho frisam que o fenómeno atravessa todas as classes sociais. E a psicóloga acrescenta que, mesmo nos casos menos graves, em que as pessoas lidam com o problema de forma menos inadequada, ele atinge toda a família. Compara o efeito do desemprego num indivíduo “à transformação brutal da peça de um puzzle – a reconstrução desse puzzle, dessa família, exige que todas as outras peças se transformem, também, adaptando-se à que sofreu directamente o impacto”, afirma. A experiência diz-lhe que esse processo depende “da flexibilidade das famílias”, e também que essa flexibilidade “nem sempre existe”.
”Os meus anos mais felizes”
António, que falou com o PÚBLICO na condição de não ser identificado, acrescenta, com base na sua experiência pessoal, que a flexibilidade depende de muitas condições. “Eu posso dizer que os últimos três anos, em que estive desempregado, foram os mais felizes da minha vida, em termos pessoais. Mas olho à minha volta e pergunto: como é que estas pessoas resistem?”
Com 52 anos de idade e formação académica superior, António exerceu funções de direcção durante quase duas décadas numa importante multinacional. Auferia um vencimento invulgarmente alto que, antes das alterações da legislação laboral, lhe garantiu um montante de subsídio de desemprego significativo durante três anos. A dispensa da empregada que trabalhava em sua casa a tempo inteiro e a mudança de um dos três filhos de um colégio particular para uma escola da rede pública bastaram para cobrir a diferença em relação ao rendimento mensal familiar. O montante da indemnização negociado chegou para cobrir os empréstimos contraídos para a compra dos carros e da casa e para constituir uma poupança.
O apoio psicológico de seis meses por parte de uma empresa especializada, negociado no processo de rescisão, ajudou-o a fazer “uma transição suave” de um quotidiano preenchido por compromissos profissionais para a valorização da vida familiar. “Durante 20 anos, saí de casa quando o meu filho mais velho ainda estava a dormir e voltei quando ele já estava na cama. Agora pude acompanhar os meus dois filhos mais novos e a minha mulher – tem sido uma experiência maravilhosa”, diz António.
Para o filho mais novo de António, que hoje tem oito anos, é natural que o pai esteja à porta da escola, todos os dias, que vá às compras e que faça o jantar. Já o filho de Joana, que tem sete anos de idade, não se conforma com a tristeza da mãe. Quando sai da escola, a primeira pergunta que faz é: “Então? Arranjaste emprego?”. Estava junto de Joana, docente de 33 anos, quando saíram os resultados da lista de colocação de professores, no fim de Agosto. E sentiu nela “a sensação de derrota que é, depois de 12 anos de trabalho, ficar, pela primeira vez, sem colocação”.
“Gostava de conseguir esconder, mas não dá: estou mais tempo com os meus filhos, mas até o mais pequeno, de três anos, me vem abraçar e perguntar por que estou triste. O medo de não conseguir dar-lhes o que eles precisam, a incerteza em relação à possibilidade de voltar a exercer a minha profissão e a falta de alternativas são demasiado assustadores”, descreve Joana, que preferiu não ser identificada.Engrácia Leandro, que fez investigação na Universidade do Minho e actualmente dirige a Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Católica em Braga, coordenou há seis anos um estudo que, considera, pode ajudar a compreender o fenómeno. Foram entrevistadas 26 famílias com pelo menos um filho entre os 12 e os 18 anos. Inquiridos sobre as expectativas em relação aos pais, a maioria dos jovens disse que gostaria de passar mais tempo com eles. Os pais também foram consensuais, mas noutro sentido: disseram-se empenhados em garantir condições, do ponto de vista material, que lhes permitissem garantir aos filhos a melhor qualidade de vida possível.
“Para estes pais, que têm uma ética de esforço extraordinária, o desemprego constitui uma tremenda e dolorosa frustração”, avalia. As expectativas dos filhos, neste contexto, também se terão alterado. Joana, por exemplo, conta que o filho de sete anos não desiste de lhe devolver a felicidade cansada que existe depois de um dia de trabalho. Emociona-se quando conta: “Um dia destes foi ter com a sua professora e perguntou-lhe se não precisava de ‘uma ajudante’. Explicou-lhe que a mãe tinha ficado desempregada e pediu-lhe que me chamasse para aquela escola”.