Por Bruno Faria Lopes, in iOnline
Economista vê margem para cortes profundos na despesa pública. País tem que furar o colete de forças do euro para crescer
O economista Ricardo Arroja não fala de uma saída do euro – mas fala, claramente, da necessidade urgente que Portugal tem de negociar com a troika e com a União Europeia instrumentos sem os quais o país dificilmente sobreviverá na moeda única. A ideia mais ousada: negociar um mecanismo de protecção de sectores em que Portugal tem boas hipóteses de substituir importações. “Precisamos de dizer em Bruxelas: ‘Queremos pagar-vos, vemos o mercado único como importante a médio prazo, mas dado que a desvalorização salarial não é sustentável e que aumentar a produtividade não é tarefa para três anos, nós precisamos de nos agarramos a alguma coisa, porque precisamos de ter as pessoas a trabalhar, de ter empresas, de ter investimento”, defende Arroja.
O governo recuou na TSU e já indicou que a alternativa ao chumbo do Tribunal Constitucional (TC) passa pela receita: os privados repartirão com o sector público e os pensionistas o esforço de dois mil milhões de euros. Está de acordo com a alternativa encontrada?
Não estou de acordo com nenhuma medida que, para além daquelas inicialmente definidas em Maio 2011, onere ainda mais a carga fiscal, nomeadamente todo e qualquer imposto que onere o investimento em Portugal, isto é, impostos sobre produção, rendimento e capital. Apenas agravará a recessão e dificultará a recuperação económica. Esta é uma componente do programa de ajustamento que, em face da decisão do TC (que veio baralhar os dados), deveria ser apresentada junto da troika como crucial para o sucesso final de uma eventual recuperação económica.
Sem TSU ou qualquer outra medida de estímulo o país conseguirá estar a crescer 2% a partir de 2014 como prevê a troika?
Sem investimento não haverá crescimento, e sem investimento certamente não haverá crescimento mais de duas vezes superior à taxa de crescimento médio desde 2000! [a taxa que a troika prevê, de 2%, já em 2014]. Enfim, considero estas previsões contraproducentes... A margem de erro é tão grande que facilmente se cai no descrédito institucional. Bastar ver as previsões que nos últimos anos foram feitas na Grécia e que têm saído sucessivamente furadas.
O que pensava da medida de corte da taxa social única apresentada inicialmente pelo governo?
Discordava dela por dois motivos. Apoiaria a medida se se traduzisse num desagravamento das contribuições sociais das empresas ou dos trabalhadores ou de ambos. Aumentar a contribuição dos trabalhadores a fim de financiar o financiamento das empresas parece-me descabido. As pessoas não entendem e do ponto de vista económico não vejo que a medida seja geradora líquida de emprego. Levaria a uma enorme contracção da procura interna, já muito deprimida. Haveria menor consumo e a esmagadora maioria das empresas portuguesas está orientada para o mercado interno – em 380 mil sociedades comerciais, 320 mil são microempresas, apenas 18 mil exportam e dessas só 100 exportam metade do volume de produção. A medida não revela estratégia nenhuma, porque estamos a agravar os custos de um lado, a desagravar do outro lado, mas a agravar em termos líquidos. Não me parece que cumpra o objectivo que se poderia defender: desagravar a factura fiscal das famílias e das empresas.
A medida tinha duas vertentes: fintar o chumbo do Tribunal Constitucional e ensaiar um choque competitivo para a economia portuguesa. Perante o mar de críticas, e o recuo, que alternativas há nas duas frentes?
No défice orçamental a alternativa é acelerar a redução da despesa do Estado. O défice este ano vai ser falhado por via da receita, mas a redução da despesa foi feita essencialmente à custa de salários e de pensões. Há que ajustar as despesas às receitas, não o contrário – portanto a despesa tem de baixar. E é curioso. Há empresas públicas que continuam a consumir recursos excessivos. E na própria orgânica do Estado continuamos a ver uma miríade de organismos públicos, quer nos serviços integrados, quer nos serviços autónomos do Estado. Continua a haver uma enorme difusão de despesa que, em grande medida, é ineficiente. E a prova disso é que os consumos intermédios do Estado em percentagem do PIB nos últimos quatro trimestres foram superiores ao peso desde 2000.
Pode ter a ver com a queda do PIB…
Sim, mas quer também dizer o seguinte: que não foi feita qualquer racionalização nesse domínio. Já para não falar nas parcerias público-privadas e um conjunto de despesas que obrigam o Estado a fazer uma reorganização grande.
Mas essa reorganização demora tempo. O governo teve o Verão para pensar numa alternativa que contornasse o chumbo do TC e apresentou a TSU. Recuou. Há agora tempo para apresentar uma alternativa adicional do lado da despesa no valor de dois mil milhões de euros?
Se reduzíssemos cerca de um ponto percentual nos consumos intermédios estaríamos a falar de uma poupança de quase dois mil milhões de euros. É uma via. O que parece evidente é que neste momento se calhar há demasiada ambição de consolidar o défice em tão curto espaço de tempo. É preciso alargar o prazo. Outra coisa que vai ser questionada a médio prazo é a factura com juros. Hoje pagamos em juros 4% do PIB, ao longo de 2000 foi mais próxima de 3% do PIB. Se conseguíssemos poupar mais um ponto percentual aqui seriam mais dois mil milhões. Já vamos em quatro mil milhões. Isto obriga à reorganização do Estado e que, mais dia, menos dia, comecemos a fazer um esforço para o reescalonamento do pagamento dos juros. Transformar aquilo que é um empréstimo a dez anos, num de 20 a 30 anos.
Algo que implicaria uma negociação com a troika.
Implica a negociação com a troika. Mas aí é que deve entrar em linha de conta o facto de Portugal ser classificado sucessivamente como “bom aluno”. Temos de poder beneficiar de alguma compreensão. Se cumprimos os objectivos – é discutível que os estejamos a cumprir, mas somos percepcionados publicamente como cumpridores – tem de haver alguma recompensa de alguma forma. A recompensa que pode da existir da parte da troika é negociar um reescalonamento dos juros.
O ano adicional para chegar a um défice abaixo de 3% tem sido vendido como uma recompensa. Parece-lhe uma recompensa, dado o esforço adicional que é pedido?
Darem mais um ano a Portugal não é recompensa nenhuma. A austeridade está a aumentar além daquilo que era previsto.
Na discussão da TSU há dois campos: um que argumenta que sem um corte de salários não é possível ganhar competitividade no curto prazo e outro que diz que a competitividade em Portugal não vem de salários mais baixos. Onde se situa neste debate?
Antes de mais é preciso fazer uma distinção importante entre salários do sector privado e público. No sector público observa-se que desde 2000 os salários representam cerca de 13% do PIB. A média da zona euro é 11%. Portanto existe um problema de salários no Estado. Seja pela redução salarial, seja pela redução do número de efectivos alguma coisa tem de ser feita. Mas a redução salarial é tolerada temporariamente. Não pode ser uma solução permanente. Deve se tentada para dar tempo para que o Estado reorganize os seus serviços.
E volte a repor os salários.
E volte a repor salários, diminuindo a competitividade [do Estado] para um nível aceitável. Essa é uma questão. Mas é suficiente? Acho que não. A desvalorização salarial [no privado] é uma medida extraordinariamente penosa e que a prazo vai levar a uma espiral deflacionista. Há menos poder de compra e as empresas baixam preços para sobreviver. Não me recordo de casos de economias em espiral deflacionista a recomporem-se em matéria de competitividade. Aí a questão tem de ser mais pelo lado da produtividade. Só que voltamos ao ponto: a produtividade em Portugal é muito baixa.
E a recuperação demora tempo.
Demora muito tempo.
Que aparentemente nós não temos…
Exactamente. A produtividade do trabalho por hora em Portugal é cerca de 65% da média europeia. É evidente que quando estamos em concorrência aberta com países que têm uma produtividade dez, vinte, trinta pontos superiores à nossa, as relações competitivas estão extremamente desequilibradas contra nós. Isso vê-se nos custos unitários do trabalho, que relacionam salários com produtividade, onde nós temos evoluído em sentido diferente de países como a Alemanha.
O ajustamento salarial até agora tem incidido sobretudo do lado público, verificando-se maior resistência no privado.
No lado privado tem ajustado ao longo dos anos. Quer por via de uma evolução de salários inferior à taxa de inflação, quer pelo desemprego.
Que é a forma mais eficaz de pressionar salários.
Exactamente. Tem havido esse ajustamento. A questão que se coloca é: até que ponto se consegue manter uma política de desvalorização salarial? Não pode ser permanente. E quanto tempo demora o choque na produtividade?
Então em termos salariais, tendo em conta a trajectória de descida de que falou, é da opinião que Portugal não precisa de um choque salarial? A medida da TSU era um choque salarial.
Porque era rápida. A melhor alternativa seria começarmos a produzir mais e melhor para o mesmo nível de salários.
É uma alternativa um pouco “ideal”, não é?
[Risos] O problema é que as soluções ideais não são as que vamos conseguir concretizar no curto e médio prazo. A produtividade não se vai concretizar do dia para a noite porque depende da educação, da burocracia pública, das regras laborais, da justiça. Há uma série de factores que concorrem e isso não se consegue de um dia para o outro.
Precisamos de mais tempo, é isso?
Enquanto estamos com esta carga de austeridade a corrigir as nossas contas públicas precisamos de negociar com a União Europeia a possibilidade de diferenciarmos contra a nossa concorrência estrangeira. Implicaria dar privilégio a coisas que em Portugal podemos e devemos produzir e que só não produzimos porque aquilo que é produzido no estrangeiro vem para cá em condições mais vantajosas.
Dê-nos exemplos.
Todos os sectores em que temos capacidade instalada e em que as nossas importações excedem as nossas exportações. É curioso observar a história de Portugal. Temos tido crises recorrentes da nossa balança de pagamentos. Como se resolveram? Em primeiro lugar com substituição de importações e, só depois, pela via do crescimento das exportações. Aconteceu com o Marquês de Pombal, aconteceu no início do Estado Novo. Um dos grandes segredos de reequilíbrio económico do Estado Novo foi precisamente o esforço de industrialização que fez com que coisas que fossem importadas pudessem ser produzidas localmente. Como é que isto se consegue no enquadramento da União Europeia? É muito difícil. Dir-me-ão logo, aliás, que é impossível.
Mas a medida da TSU acabaria por ser uma medida que, de certa forma, implicaria uma desvalorização competitiva artificial entre estados membros. Se é tão fácil fazer isto com os salários não se poderia argumentar o mesmo no caso da política alfandegária?
Sim. Penso que esta discriminação é possível de fazer pela via fiscal, com um imposto especial sobre produtos importados, em áreas onde tenhamos alguma capacidade produtiva. Não vale a pena fazermos medidas desse género em áreas em que não produzimos. Assegurando outra coisa: que, ao mesmo tempo que procuramos negociar um regime transitório dessa natureza, – que nos permita pôr a cabeça de fora e respirar, absorver a massa de desemprego em Portugal e evitar que isto se torne num país de terra queimada – haverá um ambiente competitivo muito mais intenso do que aquele que existe hoje. Dizemos “sim senhor, vamos fazer reformas, a economia vai ser mais concorrencial e liberalizada, vamos procurar eliminar rendas, mas para aqueles que quiserem implantar-se aqui em Portugal”. Isso é a forma de conseguirmos recriar o investimento sem o qual não vamos crescer. E o problema é que não há investimento em Portugal. Em dois anos diminuiu 30%. Enquanto o investimento não retomar não há crescimento.
O discurso político parece exclusivamente orientado para as exportações. É realista equilibrar as nossas contas externas, comprimindo procura interna até que este sector exportador mínimo permita que esta procura possa subir?
Não. As exportações devem ser uma prioridade, mas mais importante é substituir importações. A ênfase não deve estar nas exportações, mas sim nos transaccionáveis, o que é diferente. É fazer coisas, produzir coisas. Nós deixámos de fazer coisas. Isso é desde a agricultura à indústria. Compare os níveis de produção da nossa agricultura e indústria de há 20 anos atrás com aquilo que é hoje. Por exemplo, o trigo. Não faz sentido que o volume de produção de trigo seja hoje 30% daquilo que era em 1986. Não faz sentido que o efectivo de vacas leiteiras seja metade daquilo que era em 1986. Nas pescas não faz sentido que Portugal importe 60% do peixe que consome.
Portugal aceitou sempre tudo da Europa, mesmo aniquilar sectores inteiros, em troca de fundos comunitários…
Tal como sempre na nossa história. No século antes do Marquês havia ouro. Antes disso as especiarias. No século XIX são as remessas dos imigrantes. Nos últimos 20 anos têm sido os fundos europeus. Tudo isto serve para camuflar o desinvestimento e quando deixa de existir a riqueza externa leva-nos a uma crise da balança de pagamentos. É urgente – e é isso que vai relançar a economia e o emprego e o nível de riqueza – que possamos produzir em Portugal. Os capitais das empresas podem ser portugueses, chineses, alemães, isso não interessa. A economia interna deve ser reformada no sentido de oferecer um ambiente mais concorrencial, mas para aqueles que investirem em Portugal. É esse tipo de situação que deveríamos negociar com os nossos parceiros externos.
Identificando sectores claros.
Identificando apostas, para que os nossos credores externos tenham a certeza de que vão ver o seu dinheiro de volta. Porque senão entramos num caminho semelhante ao da Grécia. Para já tivemos um “haircut” [corte] na dívida grega. No caso português não precisamos de um “haircut”, mas apenas de reescalonar pagamentos.
Mas isso não seria visto pelos mercados como um evento de crédito [uma reestruturação]?
Sim, mas é diferente apesar de tudo. No caso da Grécia o que se diz é “por cada 100 que devemos só vamos pagar 40 ou 50”. Aqui não: pagamos os 100, mas pagamos em mais tempo. O efeito de inflação iria diluir o valor real da dívida. Precisamos de dizer mais: “Queremos pagar-vos, vemos o mercado único como importante a médio prazo, mas dado que a desvalorização salarial não é sustentável, porque tem um efeito de tal forma nefasto na procura interna que a partir de certo ponto é contraproducente. Dado que aumentar a produtividade não é tarefa para um ano nem dois, nem três, nós precisamos aqui, neste momento, de nos agarramos a alguma coisa, porque precisamos de ter as pessoas a trabalhar, precisamos de ter empresas, precisamos de ter investimento.” Os nossos governantes deveriam chegar a Bruxelas e dizer: é isto que precisamos, senão podemos entrar num caminho idêntico ao da Grécia.