20.9.12

Igreja acusa Governo de agravar desigualdades e amputar o país da liberdade

Por António Marujo, in Público on-line

A Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), organismo oficial da Igreja Católica para intervir nas questões sociais e políticas, acusa o Governo de “total aceitação dos ditames da troika”, de amputar o país de vários graus de liberdade, de “submissão aos governantes de países mais poderosos”, de agravar as desigualdades, de ter um pensamento económico desadequado à realidade, de “desonestidade intelectual” na argumentação, de enfraquecer o Estado de Direito e de “desconhecer a realidade” do país.

Na sequência de uma reunião, quarta-feira à noite, a CNJP divulgou um comunicado em que faz críticas muito duras à acção e às decisões do Governo. Começa por recordar que as última medidas anunciadas, na sequência da última avaliação dos credores internacionais, apontam “para um ano de 2013 mais austero, contrariamente aos anúncios anteriores do Governo”. E nota que “a tónica de crítica generalizada dos comentários transmitidos pelos media é inédita, expressiva e preocupante”.

Ainda na sequência da última avaliação da troika, a CNJP acusa o Governo de ter um “discurso determinista e fatalista, do ‘caminho único’ e do ‘não há outra via’, quando o mais verdadeiro e humilde seria o de dizer ‘eu não conheço outro caminho’, ou ‘eu não sou capaz de seguir outra orientação’. Ao aceitar os “ditames” das entidades internacionais, “em nome de uma ‘credibilidade externa’”, o Governo “amputou o país de uns quantos graus de liberdade”, acusa a comissão católica.

A CNJP, presidida por Alfredo Bruto da Costa, ex-presidente do Conselho Económico e Social, diz que o Governo esqueceu, com esse comportamento, “que os credores não são um grupo qualquer de agiotas, mas instituições internacionais de que Portugal é membro, com deveres e direitos”. O que exigiria “um comportamento civilizado, justo e solidário entre todas as partes”.

Na Europa, acrescenta o documento, a atitude do Governo foi mesmo a de uma “submissão aos governantes de países mais poderosos, que bem depressa esqueceram a sua própria história no contexto europeu da segunda metade do século XX”.

O comunicado da Comissão Justiça e Paz reconhece os “efeitos positivos que podem advir da revisão dos défices públicos a respeitar em 2012, 2013 e 2014, bem como a decisão do BCE respeitante ao financiamento das dívidas soberanas”. Mas acrescenta que o Governo mostra acreditar “num pensamento económico que o falhanço do défice orçamental do corrente ano deveria, no mínimo, levar a considerar como discutível”. E pergunta: “Porque se insiste em continuar a aplicá-lo, como base, no orçamento de Estado para 2013? As profundas alterações das previsões para 2013 deveriam ser mais do que suficientes para considerar seriamente outros rumos possíveis.”

Este pensamento, acrescenta a comissão, denota uma “preocupante desadequação” em relação “à realidade económica do país”, atitude quanto mais grave quanto se exige “de quem governa, agora como sempre, mais atenção à realidade e menos enfeudamento a ideias pré-concebidas”.

Uma outra acusação grave é quando a CNJP diz que “o Governo nunca foi capaz de demonstrar que os sacrifícios exigidos aos portugueses estavam distribuídos com equidade”. E explicita: “Apesar de frases sonantes nesse sentido, a política pública não tem combatido eficazmente as disparidades na distribuição do rendimento e outras formas de desigualdade na sociedade portuguesa, havendo mesmo indícios de agravamento destas desigualdades nos últimos anos.”

A comissão católica recorda que “só agora se ouviu o anúncio de que seriam sujeitos a impostos novos alguns tipos de bens e de rendimentos de capital” mas nota que “o contraste entre o pormenor das medidas que atingem os rendimentos do trabalho e o carácter vago e brando de algumas que irão afectar, no futuro, a riqueza e os rendimentos de capital é significativo”.

Acerca das desigualdades, a CNJP é particularmente dura – recorde-se que Bruto da Costa é, com a economista Manuela Silva, o pioneiro dos estudos sobre a pobreza em Portugal. O comunicado acrescenta: “O desnível das condições de vida sofrido pelas pessoas e famílias por força da crise e das políticas públicas revela um quadro socioeconómico gritantemente desigual.”

O documento aponta ainda que “enquanto a uns falta pão, casa, água e luz, outros mantêm um nível de vida praticamente igual, se não mais elevado, do que aquele que tinham antes da crise”. Este é “um critério fundamental de equidade: não basta proporcionalidade no que se retira (por via fiscal ou outra); também é preciso que exista equidade no que resta depois disso (rendimento disponível).” E a comissão diz que “esta é a medida em que as pessoas e as famílias são afectadas pela crise e medidas conexas, que deve ser aplicada “não apenas aos rendimentos do capital, mas também a certos estratos de rendimentos do trabalho, como são os de alguns dirigentes de empresas”.

A CNJP acusa o Governo de revelar o desconhecimento da realidade quando afirma que os mais pobres, os mais vulneráveis e mais desfavorecidos têm sido protegidos. “Ocorre perguntar a que país se referia o ministro da Finanças quando pronunciou aquelas palavras. Bastará interrogar os serviços sociais, públicos e privados, para concluir que ‘o nosso modo de vida, em geral, e, em particular, os mais pobres, mais vulneráveis e mais desfavorecidos’ está desprotegido.” A comissão acrescenta que as instituições de solidariedade “vêm testemunhando essa situação de desprotecção e o seu persistente agravamento”.

Tudo somado, a Comissão Justiça e Paz verifica que “o Estado de Direito vai-se enfraquecendo”. E concretiza: “A garantia dos direitos dos cidadãos vai-se fragilizando, nomeadamente no que se refere à parte contratual contributiva da Segurança Social (valor das pensões da reforma, por exemplo), e ao valor dos salários contratados. As alterações das condições contratuais por decisão unilateral prejudicam o sentimento de estabilidade e segurança que qualquer Estado de Direito deve garantir aos cidadãos.”
A CNJP recorda ainda a nota do conselho permanente dos bispos, de segunda-feira passada, na qual se falava de uma necessária “renovação cultural". Tal renovação, diz agora a comissão, “requer uma revisitação de alguns valores fundamentais” como sejam “a dignidade da pessoa humana, enquanto ser individual e social; o reconhecimento de que a liberdade exige as condições existenciais para o seu exercício; o sentido do bem comum como dimensão indispensável da realização pessoal”.

Texto integral do comunicado: http://www.agencia.ecclesia.pt/dlds/bo/OSNMEROSEASPESSOASfinal.pdf