Raquel Martins e Sérgio Aníbal, in Público on-line
Em cima da mesa está a revisão dos suplementos e da tabela salarial única. Medidas deverão substituir cortes salariais em vigor na função pública. Bruxelas diz que os salários médios em Portugal têm de cair mais 5% para colocar desemprego e endividamento externo em níveis sustentáveis.
A saída da troika de Portugal não significa que a pressão sobre os salários dos funcionários públicos será aliviada. Ao longo deste ano, o Governo vai preparar um conjunto de medidas que têm como objectivo tornar permanentes os cortes salariais na função pública e substituir as actuais reduções. Até Junho, o executivo vai reduzir e eventualmente eliminar alguns dos suplementos pagos aos trabalhadores do Estado e integrá-los numa tabela única. Até Dezembro, compromete-se a mexer na tabela salarial única. As intenções constam do relatório da Comissão Europeia (CE) divulgado quinta-feira, a propósito da décima avaliação do programa português.
O Governo nunca foi muito claro sobre a forma como iria substituir os cortes salariais que estão em vigor desde 2011 e que no início do ano foram agravados. Por um lado, tem de conseguir uma redução permanente que assegure um nível de poupança semelhante ao conseguido com as reduções em vigor. Por outro, tem de encontrar uma solução que seja aceite pelo Tribunal Constitucional (TC), que tem viabilizado o corte salarial na função pública por se tratar de uma medida temporária e associada à situação de excepção que o país enfrenta.
No relatório da Comissão Europeia (CE) fica claro que a solução vai passar pelo corte dos suplementos e pela revisão da tabela remuneratória, mas não se diz exactamente como. “O aumento progressivo dos cortes salariais no sector público, que substitui os cortes que estavam em vigor desde 2011, foi incluído no Orçamento do Estado (OE) para 2014, que entrou em vigor a 1 de Janeiro”, refere o relatório. Este corte será “complementado por uma tabela única de suplementos e uma tabela remuneratória única que serão implementadas em Junho e Dezembro, respectivamente”, acrescenta Bruxelas.
Esta formulação deixa uma dúvida: as novas medidas acumulam ou substituem os cortes em vigor? A resposta surge umas páginas mais à frente: “O OE 2014 inclui uma revisão dos salários, que, após uma análise mais aprofundada, será substituída por uma tabela salarial única.”
Ou seja, a revisão dos suplementos ainda poderá entrar em vigor este ano e os seus efeitos acumularem com os cortes salariais de 2,5% a 12%. No caso das empresas públicas, esta revisão vai começar pelo sector dos transportes e das infra-estruturas. As primeiras análises, a concluir até ao final de Março, vão incidir sobre “as empresas de transportes, a Refer e a Estradas de Portugal”. Para as restantes empresas do Estado, o objectivo é terminar os estudos até ao início da décima segunda e última revisão do actual programa de ajustamento.
Já a nova tabela salarial só deverá avançar em 2015 para substituir os cortes em vigor no corrente ano. “Uma tabela salarial única, visando racionalizar e dar coerência à política remuneratória de todas as carreiras, será desenvolvida na primeira metade do ano e será concluída até ao final de 2014”, refere Bruxelas, pelo que só entrará em vigor no início do próximo ano, quando as medidas do actual OE expirarem.
Na preparação do OE para 2014 chegou a estar em cima da mesa uma revisão da tabela remuneratória única para entrar em vigor já este ano e que acomodasse os cortes em vigor. A ideia acabou por ser posta de lado devido aos riscos constitucionais e, em alternativa, o Governo alargou os cortes aos funcionários públicos com remunerações brutas acima dos 675 euros (até então apenas afectavam salários acima de 1500 euros). Porém, também esta medida foi parar ao TC, pela mão da oposição, aguardando-se ainda o veredicto.
Cortar salários também no privado
O ajustamento salarial deverá ser transversal a toda a economia. No relatório, Bruxelas lembra que, para colocar a taxa de desemprego e o endividamento externo a um nível mais sustentável, os salários médios em Portugal ainda deveriam registar uma descida adicional próxima de 5%.
A CE começa por assinalar que, “desde 2010, Portugal registou um ajustamento significativo nos custos unitários de trabalho nominais”. Segundo os cálculos de Bruxelas, entre o primeiro trimestre de 2010 e o terceiro trimestre de 2013, estes custos caíram 5,3%. Analisando apenas o sector privado, a queda foi de 6%, uma vez que em 2013, no sector público, sentiu-se o efeito da reposição dos subsídios de férias e de Natal.
Apesar desta correcção salarial acentuada desde a chegada da troika, a Comissão chega à conclusão de que é preciso ir mais longe. Por duas razões: o elevado nível de endividamento externo da economia e a taxa de desemprego. Bruxelas parte do princípio que uma redução do nível salarial ajuda a melhorar a situação nesses dois indicadores.
Assim, calcula que, “para atingir um patamar alternativo de redução do endividamento a metade até 2023, os salários ainda estão entre 2% e 5% sobreavaliados”, consoante o crescimento do PIB nominal que é considerado. Nestas contas, a Comissão assume que a produtividade – outro factor que pode influenciar o saldo com o exterior – cresce de acordo com as previsões actuais.
A lógica seguida nestes cálculos é a de que uma redução do nível salarial de uma economia acaba por gerar um aumento da competitividade das suas empresas face ao exterior, resultando numa melhoria do saldo comercial, com mais exportações e menos importações. Esta recomendação da Comissão Europeia sai no mesmo dia em que o Banco de Portugal revela que a balança portuguesa com o exterior registou em 2013 um excedente de 2,6% do PIB, uma melhoria face aos 0,3% registados em 2012.
Além do desequilíbrio externo, a CE diz também que “Portugal precisa de garantir uma moderação salarial suficiente para absorver o desemprego”. Neste caso, o relatório estima o impacto que o nível salarial tem na procura de emprego por parte das empresas e a conclusão é que “uma redução de um ponto percentual na taxa de desemprego requer uma redução dos salários reais de cerca de 2,4%”. Como o objectivo, neste caso, é colocar a taxa de desemprego ao nível da taxa de desemprego estrutural, a redução salarial pedida é de cerca de 5%.
O Governo português tem insistido que o ajustamento salarial, nomeadamente no sector privado, já foi feito, mas um dos temas a abordar na 11.ª avaliação, que começou quinta-feira, é a flexibilidade dos salários.
Todos os sinais vão no sentido de que a moderação é para manter. O salário mínimo deverá continuar congelado nos 485 euros e mantêm-se as restrições à extensão dos efeitos dos contratos colectivos (incluindo os aumentos salariais) às empresas e trabalhadores não filiados nas associações que os assinaram. Além disso, o Governo comprometeu-se a apresentar até ao final de Fevereiro uma “análise independente para saber se é desejável reduzir a sobrevivência dos contratos colectivos que caducaram e não foram renovados”. Em causa estão as cláusulas que prevêem que os contratos só cessam se forem substituídos por outro. A cláusula caduca passados cinco anos e a intenção poderá ser reduzir este prazo, para que as empresas possam negociar novas condições de trabalho e de salários.
A CE apresenta uma análise bastante menos crítica do que o FMI sobre os dados da recuperação da economia nos últimos trimestres, mas afirma que “mais reformas serão necessárias”, nomeadamente ao nível da flexibilidade dos mercados de produto e laboral.
"Ainda é cedo" para avaliar impacto das reformas
E alerta que "ainda é cedo" para avaliar o impacto das reformas conduzidas pelo Governo nos últimos anos no mercado de trabalho. Para Bruxelas, a evolução do desemprego a partir da segunda metade de 2013 deve-se mais à moderação das taxas de destruição de emprego do que às reformas laborais e à alteração do modelo económico do país. O Governo argumenta que “a criação líquida de emprego está a ocorrer sobretudo no sector dos bens transaccionáveis, uma evolução em linha com a reconversão da economia portuguesa”.
A CE alerta que a análise das novas admissões por tipo de contrato “não permite (ainda) tirar conclusões sobre o impacto das reformas laborais na segmentação do mercado de trabalho”, lembrando que a extensão temporária da duração máxima dos contratos a termo, que segundo o executivo abrange cerca de 16% dos trabalhadores a prazo, poderá distorcer a análise. Com Raquel Almeida Correia