Depois de perder o emprego, ficar sem clientes, não conseguir estágio, abrir um negócio, estes seis portugueses esperam por respostas que os ajudem.
“Não vamos renovar o contrato. Não é nada pessoal. É a crise”
O contrato de trabalho de Sara Filipa Silva, 25 anos, termina depois de amanhã, mas a pasteleira da cozinha do Belmond Reid’s Palace, no Funchal, já sabe que não vai ser renovado. No início de Setembro, recebeu um telefonema dos recursos humanos do hotel, um dos mais exclusivos e luxuosos do país, a informar que o vínculo laboral que tinha com a empresa desde o início do ano não ia ser prolongado. Estava em casa, com o filho de dois meses nos braços. Não soube o que responder. “Fiquei em choque. Nervosa. Uma pessoa não sabe o que dizer, não é?”, conta ao PÚBLICO.
Disseram que não era nada relacionado com o meu trabalho. Que gostavam muito, mas dada a situação de pandemia, não estavam a renovar os contratos
“Disseram que não era nada relacionado com o meu trabalho. Que gostavam muito, mas dada a situação de pandemia, não estavam a renovar os contratos.”
Sara Filipa está, até Dezembro, de licença de maternidade. Depois, não sabe. Não sabe ela, não sabe o marido. João Paulo, da mesma idade, era copeiro na mesma unidade hoteleira. Era, porque já não é. No início de Setembro, também recebeu um aviso de dispensa do trabalho, por integrar o lote de 63 trabalhadores que estão num processo de despedimento colectivo, anunciado nesse mês.
O hotel, inaugurado em 1891, e que integra o portefólio da LVMH Moët Hennessy Louis Vuitton, conta com 213 trabalhadores. Foi o primeiro trabalho de Sara Filipe, quando saiu, em 2016, da Escola Profissional de Hotelaria e Turismo da Madeira. Entrou na cozinha do Reid’s Palace no ano em que o restaurante de assinatura do hotel ganhava uma estrela Michelin. Foram dois bons anos. A fazer o que gostava, num hotel famoso pelo ritual do chá da tarde, invariavelmente servido às 17h, nos terraços debruçados sobre o Funchal e o Atlântico.
Sara Filipa, João Paulo e filho, João Afonso, vivem num T1 arrendado no Funchal, não sabem o que vão fazer agora. Para já, contam com a ajuda da família — “sempre nos ajudaram” —, com o subsídio de desemprego e uma certeza. “Já não quero voltar à hotelaria. Vou procurar noutra área. Tenho de pensar no meu filho, e na hotelaria não temos tempo para nada, e depois isto...”
Os dois vão engrossar as estatísticas de desemprego da região autónoma da Madeira, que, antes da crise pandémica, era a mais baixa do país, e no último boletim já a segunda mais elevada, só ultrapassada pelo Algarve.
Uma profissão com “classe”, mas sem trabalho
De fato cinzento, gravata vermelha e um pin na lapela (a letra “T”, de turismo). O taxista, com a imagem de executivo, chega ao volante de um Mercedes preto, sem distintivo. Num segundo acto, cumprimenta, abre a porta de trás da viatura, e com um discreto gesto de cortesia procura que o cliente se sinta à vontade. “Cultivamos a imagem, e procuramos que o serviço corresponda às expectativas das pessoas”, diz Manuel Cansado, presidente da cooperativa Algarve T.
Nesta altura do ano, o Algarve estaria na época alta do turismo de golfe — o principal segmento de mercado para os táxis de turismo (classe executiva ), durante o Outono — só que não há clientes, e os carros estão praticamente parados. “Chega a passar dois a três dias e nada acontece”, lamenta o taxista. Durante as duas semanas em que esteve aberto o corredor aéreo com o Reino Unido, “não faltou trabalho, agora a vida está ser complicada. Registamos um declínio de 90% em relação a 2019”.
Os rendimentos destes profissionais caíram a pique, mas não perderam a compostura nem o porte que gostam de evidenciar: “Somos todos taxistas, e com muito orgulho, mas queremos manter a diferença.” A diferença em relação aos colegas, explica, começa na aparência e no requinte da viatura, mas não se fica por aí. Há 40 anos, quando saiu a legislação que permitiu a criação dos táxis T, sem distintivo, nem cor padrão, “raro era o taxista que falava línguas estrangeiras no Algarve”, observa.
Nos primeiros anos de actividade, os taxistas T não foram muito bem aceites pelos colegas, sobretudo os que disputavam o mesmo mercado. Desde logo, porque beneficiaram de contactos privilegiados com as unidades hoteleiras na requisição de serviços, e dominam pelo menos dois idiomas estrangeiros. No meio, eram vistos como os “senhores” do táxi, numa alusão ao uso permanente de fato e gravata. Com a entrada da multinacional Uber e de outros operadores, liberalizaram-se os procedimentos. “Agora, somos todos vítimas da falta do turismo”, diz Manuel Cansado, lembrando a especificidade de uma região marcada pela sazonalidade e uma crise económica à vista. Os poucos golfistas que ocupam os campos, diz, “nem sequer saem para ir jantar fora”.
“Temos de alocar recursos para a Saúde e a Educação”
No mês de Março, Marta Rosa, funcionária numa pequena empresa que importa material para construção, recebeu a mesma notícia que abrangeu um milhão de trabalhadores em mais de 82 mil empresas: iria ficar em layoff. Foram seis meses em que fez 50% do horário de trabalho normal.
“Ficámos todos, 13 trabalhadores, em layoff com este regime. A queda de facturação foi acentuada, mais de 50%”, explica a comercial, sublinhando que a empresa conseguiu “manter os contactos”, apesar do reduzido volume de vendas.
Quanto ao Orçamento do Estado para 2021, Marta considera que a Educação e a Saúde devem ter um reforço significativo de recursos, dada a pressão colocada nestes dois sectores pela emergência pandémica que o país atravessa: “A minha filha, por exemplo, ainda não tem professor de Matemática. Era muito importante haver uma bolsa de professores substitutos nas escolas. Depois, temos a Saúde, que tem de ser o nosso ‘menino’. Temos de alocar recursos para a Saúde e a Educação, é fundamental.”
Por último, discorda do facto de as compensações entregues pelo Governo, os complementos de estabilização não terem diferenciado entre as várias situações de layoff. Marta, que não chegou a ficar em teletrabalho durante os seis meses em que ficou neste regime, registou mais despesas do que outros trabalhadores. A comercial defende que esta disparidade pode ser corrigida no Orçamento do Estado. “Percebo que tenham sido decisões rápidas, mas houve um desequilíbrio. O pagamento de compensações da Segurança Social igual. Eu estive meio ano em layoff e recebi o mesmo que alguém que só esteve um mês. Se houver lugar a essa compensação a essas despesas, não achava mal”, finaliza.
Até um estágio não remunerado é difícil de encontrar
Sem se aperceber, há uma repetição que escapa no que de resto é o discurso estruturado e objectivo esperado de uma jovem recém-licenciada em Direito: a palavra “frustração”. “O que já é difícil tornou-se ainda mais difícil durante a pandemia”, resume Rita Lopes, confirmando as antevisões no início do confinamento nacional, quando as preocupações de sociólogos e economistas ecoaram primeiro nas conversas entre colegas na faculdade ou em cafés e depois em grupos de mensagens ou chamadas de vídeo.
Para a turma de 2020, não houve festas de graduação e outros rituais académicos que “marcam a transição para uma fase completamente diferente”. Mas não foi apenas o final que “soube a pouco” — aos finalistas, preocupa-os mais um início desenxabido no mercado de trabalho.
Rita Lopes reconhece a dificuldade em encontrar um estágio de um ano e meio, obrigatório para se tornar advogada apesar de muitas vezes não ser remunerado, antes mesmo de um vírus destruidor de empregos fechar as empresas a novos postos. Quando o confinamento começou, em Março, a jovem de 23 anos, do Porto, estava a preparar o currículo que nos meses seguintes haveria de enviar 60 vezes. “A maior parte das empresas não respondeu, como é normal”, desabafa. Notou que as que respondiam levantavam dificuldades diferentes às de anos anteriores. Se, por um lado, a empresa estava a adaptar-se ao teletrabalho e não sabia ainda como introduzir um estagiário na equipa, por outro, escreveram-lhe sociedades de advogados mais pequenas, não havia lugares para novos estagiários sem que as regras da DGS para os locais de trabalho fossem pisadas.
“Fui a uma entrevista, gostei muito do escritório, trabalhava na área que me vejo a exercer. Só que disseram-me que voltaríamos a falar mais tarde porque, na altura, ninguém sabia muito bem o que estava a acontecer”, relata. “E esperei.”
Durante o Verão, estagiou um mês, sem ser paga, numa sociedade de advogados onde, secretamente, esperava continuar. “É sempre mais fácil ficar num sítio que já nos conhece”, confessa, repetindo os conselhos de colegas mais velhos. “Comecei a reparar num fenómeno: sociedades que às vezes tinham dois ou três estagiários neste momento estão a optar por ter só um.” Foi o que lhe disseram na segunda entrevista, em Setembro.
Na semana passada, começou o mestrado que sempre quis fazer em simultâneo com o estágio, uma escolha comum a muitos recém-licenciados e que a perda de rendimentos das famílias pode também prejudicar, lembra. “São quase dois anos em que as pessoas estão a trabalhar sem receber dinheiro e a gastar muito dinheiro também. É uma situação complicada, que se agravou agora bastante”, reconhece. Também por isto, a futura advogada requer que o Governo atente à precariedade do “trabalho da maioria dos jovens adultos que começam a trabalhar sem ganhar um salário decente (ou um salário sequer)”, ao mesmo tempo que “mantém ainda muitos gastos mensais em formação”.
O país parou, mas João não
Em Março, enquanto o país mergulhava num restrito confinamento e vários sectores da economia sentiam o impacto imediato da pandemia, a construção civil, em larga medida, manteve-se em actividade. Foi o caso de João Cuco, de 57 anos, que há 35 anos trabalha na construção civil. Hoje tem uma pequena empresa, que opera sobretudo na zona de Mira (litoral do distrito de Coimbra), na qual emprega oito homens. As alterações às rotinas não foram muitas, diz. “Mas houve a necessidade de dividir os funcionários, para não andarmos todos em monte”, explica. Ou seja, teve de iniciar novos locais de obra que só planeava abrir mais tarde, para evitar ao máximo a concentração de trabalhadores.
Houve a necessidade de dividir os funcionários, para não andarmos todos em monte
“Não foi fácil. Mas conseguiu-se levar isto a bom porto”, afirma. Um bom porto deverá amparar a queda nas contas nacionais. De acordo com os dados do boletim económico de Outubro do Banco de Portugal, o investimento na construção civil chegou mesmo a acelerar, no segundo trimestre, coincidindo com o período mais duro de confinamento. Isto faz com que a queda do PIB em 2020 venha a ser menos pronunciada, prevê o banco central.
O balão de ar que a construção civil ajuda a insuflar neste ano contrasta com o período negro que o sector atravessou durante os anos da crise económica da última década. Entre 2007 e 2017, a construção civil encolheu um terço. Porém, João Cuco diz que, também durante esse período, não sentiu o impacto. “Felizmente, nunca me afectou, tive sempre trabalho”, refere.
A sua empresa faz de tudo um pouco, diz o homem que já esteve emigrado na Suíça, a trabalhar na mesma área, tendo regressado há 23 anos. Desde começar moradias de raiz a edifícios grandes, passando por trabalhos de manutenção geral (como pinturas e pavimentos) na fábrica que a Maçarico tem na Praia de Mira, embora diga também que, ultimamente, tem tido muitas renovações em mãos. É por esses trabalhos que tem dividido o pessoal, com a cautela acrescida da utilização de máscaras, e do cumprimento “de todas as condições exigidas” pelas autoridades de saúde, garante.
A principal dificuldade foi mesmo a gestão, afirma. Tendo que desconcentrar trabalhadores, houve obras que levaram mais tempo a ficar concluídas. O que significa que demorou também mais tempo a receber e isso, sim, “gerou um bocado de dores de cabeça”. Mas assegura que conseguiu manter os seus rendimentos e dos trabalhadores, pagar a Segurança Social e seguro de acidentes de trabalho. Embora tenha recebido um email da Segurança Social a informá-lo sobre a possibilidade de pagar as prestações mais tarde, optou por não o fazer. “Se mais tarde houvesse uma situação mais difícil, isso seria depois estar a acumular dívida”, explica. E acrescenta: “Houve sacrifícios, andei mais apertado a nível financeiro, mas pagou-se.”
Ainda que a economia portuguesa feche o ano no vermelho, as perspectivas de futuro deste pequeno empresário da construção mantêm-se positivas. “Tenho trabalhos em carteira que me permitem ver o futuro um bocadinho mais à frente”, prevê.
E o que fez Lúcia? Abriu um negócio na pandemia
A decisão já estava tomada, os dados estavam lançados. Em Janeiro, Lúcia Guedes Vaz, 48 anos de vida e 23 como funcionária pública, encontrou o lugar perfeito para abrir o seu negócio, no número 55 da Avenida de Roma, em Lisboa. Em Fevereiro, pediu a demissão e foi durante o estado de emergência que deu o salto da cultura para os negócios.
Durante o confinamento, tirou um curso rápido de empreendedorismo: mergulhou na “burocracia infindável” necessária para abrir a loja (“a informação está dispersa, devia haver uma checklist”, critica), contactou fornecedores e testou os produtos pelos correios.
“Já tinha este bichinho”, conta ao PÚBLICO, numa pausa a meio da tarde, sentada na sua recentemente inaugurada esplanada de oito lugares. Sempre gostou de cozinhar, já organizava festas para a família e até se aventurou a fazer o bolo de casamento do irmão para 120 convidados (e não se arrependeu). Com a mãe diabética, Lúcia sentia que faltava um lugar que tivesse bolos e comida saudáveis. Estava feito o plano de negócios e a análise de risco.
Os primeiros tempos têm gerado “muita curiosidade” no bairro. O Fora de Saco mistura mercearia de produtos a granel — farinhas, cereais, especiarias, frutos secos a granel — com produtos de higiene e de limpeza amigos do ambiente, e uma cafetaria que serve café biológico, bolos sem açúcar e sem glúten, e um menu de almoço que varia conforme a vontade de Lúcia, que não gosta de repetir a mesma fórmula.
É preciso um apoio efectivo e real a novos empresários. Não é uma redução de taxas que vai fazer um empresário abrir
Na sexta-feira, foi aveludado de cenoura, estufado de bulgur e “pêra Fora do Saco” — “uma pêra com uma surpresa no meio, natas batidas e chocolate quente”. A pandemia quase que fica esquecida. Mas estão lá as máscaras, o álcool gel e uma determinação antiviral. “Preocupa-me, mas sou optimista, não quero pensar nisso. Com tantas coisas a fechar, porque é que eu havia de pôr um travão? É preciso contrabalançar. Se for preciso, vou levar a comida a casa das pessoas.”
No Orçamento do Estado que o Governo vai entregar hoje na Assembleia da República, Lúcia Guedes Vaz gostaria de ver “um apoio efectivo e real a novos empresários”. “Não é uma redução de taxas que vai fazer um empresário abrir”, argumenta, sublinhando que apoios nas rendas ou na contratação serão mais eficazes.
Saber quais são os negócios que vão sobreviver à pandemia é ainda uma pergunta com uma resposta difícil. Lurdes Fonseca, presidente da União das Associações de Comércio e Serviços (UACS) da região de Lisboa e Vale do Tejo, diz que a previsão é que, no final do ano, 35% das empresas acabem por declarar insolvência. Por isso, avisa, o papel do Estado será “determinante”.
O negócio de Lúcia Guedes Vaz nasceu em “contraciclo”, mas “as mercearias gozam de uma situação privilegiada, uma vez que muitas das pessoas agora preferem ir a lojas de bairro”.
Com o futuro em risco estão as lojas de moda, por exemplo, que não vendem bens de primeira necessidade (“quem é que vai comprar um vestido se não há eventos?”), e as lojas situadas em zonas menos habitacionais de Lisboa. “No geral, o que temos notado nos nossos associados são quebras de facturação na ordem dos 40%, mas em algumas áreas chega a ir até aos 70-90%”, alerta.
Lurdes Fonseca defende, entre outras medidas, uma redução de 40% nas rendas associada a um perdão da taxa liberatória aos senhorios, uma recapitalização das empresas através de um fundo público e o não agravamento na tributação autónoma para as empresas com prejuízos. “Torna-se urgente e emergente implementar medidas de apoio às Pequenas e Médias Empresas.”