Patricia Carvalho, in Público on-line
Equipa coordenada por Rui do Carmo olhou para o caso de uma professora de 61 anos, assassinada em 2016 pelo companheiro, e concluiu que a forma como o processo foi conduzido ao longo de dez anos criou um sentimento de impunidade no agressor e de ausência de protecção na vítima.As queixas sucederam-se ao longo de dez anos e vinham de muitos lados: da vítima, dos seus familiares, de vizinhos, do centro de saúde e dos responsáveis da escola em que trabalhava. Mas nenhuma delas, nem o facto de um neto da vítima viver na mesma casa e assistir aos actos de violência recorrente, impediram que a 8 de Janeiro de 2016 a mulher de 61 anos fosse assassinada pelo companheiro. O mais recente relatório da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD), que olhou para este caso, concluiu que a “condescendência para com o comportamento” do agressor, a “falta de proactividade na investigação criminal” e a “inconsequência da acção judiciária” resultaram na falta de protecção à vítima e no fortalecimento do sentimento de impunidade do agressor.
A professora e o homem que a viria a matar iniciaram um relacionamento em 2005. Ela tinha duas filhas e um neto que viviam com ela e dava aulas numa escola da região. Ele tinha problemas de consumo excessivo de álcool e drogas, uma situação precária em termos laborais e, como se viria a revelar rapidamente, um temperamento violento.
A primeira participação contra o homem, então na casa dos 30 anos, foi da filha mais velha da vítima mortal, logo em 2006, por agressão. O homem tê-la-á esbofeteado enquanto esta discutia com a mãe.
Esta primeira participação, como quase todas as que se seguiram, viriam a ser arquivadas por desistência da queixa. Ao longo dos dez anos que se seguiram, com uma interrupção de quatro anos (entre 2010 e 2014, quando o agressor esteve ausente da região, chegando mesmo a emigrar), as participações por ameaças, agressão e destruição de bens na casa da família foram-se sucedendo. A tudo assistia o neto da professora, nascido em 2002, e que residia com a avó. A situação tornou-se tão má que, em 2010, antes da partida temporária do agressor, a mulher chegou a sair de casa, sendo acolhida por algum tempo na casa de uma colega, que vivia noutra localidade.
Foi nesta altura que um irmão da vítima contactou a Segurança Social, pedindo apoio para o que disse ser um caso de violência doméstica. A professora foi contactada por uma equipa técnica deste serviço, que concluiu - segundo as informações recolhidas pela EARHVD -, entre outros pontos, que esta não tinha “consciência da situação de perigo” para ela e para o neto, e que sentia a responsabilidade de “salvar” o companheiro. O relatório da equipa coordenada por Rui do Carmo refere que a mulher recusou o plano proposto pela Segurança Social, que incluía que ela se afastasse do seu local de residência e fosse leccionar para outra escola, e que, depois dessa decisão, “não foi estabelecido qualquer outro contacto” com ela.
Um procedimento criticado pela EARHVD, que lembra, no relatório do passado dia 18 de Novembro, que é normal que as vítimas de violência doméstica adoptem, ao longo do processo, “diferentes atitudes e predisposição para a aceitação do apoio” disponibilizado, pelo que é “muito relevante o acompanhamento, a proximidade e a acessibilidade das entidades e profissionais que lho possam prestar”. Neste caso, o mais recente a ser analisado pela equipa que procura avaliar o que correu mal para que processos de violência doméstica conhecidos das autoridades acabassem em homicídio, a intervenção desencadeada após as várias denúncias “não foi assertiva”, concluem.
De facto, apesar das várias queixas apresentadas pela vítima e por testemunhas da violência de que era alvo (familiares, colegas, vizinhos e o centro de saúde), as consequências para o agressor foram quase nulas. E nem sempre por a pessoa que apresentava a denúncia desistir da queixa. Em 22 de Abril de 2010 foram os vizinhos da professora que chamaram a polícia, depois de a verem ser agredida a murro na via pública pelo agressor. Notificada para ser submetida a exame médico-legal, a professora não compareceu, e o inquérito acabou arquivado por “a prova recolhida [ser] frágil e escassa”, lê-se no relatório agora divulgado.
Consequências sem efeito
O agressor, que aquando do homicídio tinha 40 anos, sentiu as consequências dos seus actos, por parte do poder judicial, apenas por duas vezes. A primeira em 2009, em consequência da queixa apresentada pelo centro de saúde da área da residência da vítima, depois de mais uma agressão à bofetada. O Ministério Público decidiu manter o processo suspenso por quatro meses, para que o homem cumprisse duas medidas: pagar 200 euros a uma instituição de solidariedade social e pedir desculpa à ofendida.
De novo, a EARHVD critica a decisão, lembrando, entre outros aspectos, que dada a dinâmica familiar do casal seria óbvio que o ónus do pagamento decidido recairia sobre a vítima e não o agressor.
Em 2015, após um inquérito judicial aberto na sequência de mais uma queixa por ameaças e a destruição de bens (a que se juntavam outros desse ano, por agressão), o homem foi alvo de medidas de coação que incluíam a não permanência na habitação e que não estabelecesse qualquer contacto com a vítima. Ao longo de todos estes anos, refere-se ainda no relatório, não há qualquer indicação de que tenha havido qualquer tentativa por parte de qualquer entidade, incluindo as de saúde, de ajudar o homem a lidar com os seus comportamentos aditivos.
Cumpriu as medidas de coacção, até estas terminarem, por extinção do prazo previsto na lei para a sua aplicação, sem que o Ministério Público tenha deduzido acusação. A extinção dessas medidas foi comunicada ao agressor, mas não à vítima, que foi surpreendida com o regresso do homem a casa, “o que terá decerto agravado a sua convicção de que estava desprotegida”, ao mesmo tempo que o homem reforçava o seu sentido de impunidade.
O agressor viria a ser condenado pelo crime de violência doméstica, relacionado com este inquérito, mas só depois de ter assassinado a companheira. Condenado a 20 anos de prisão pelo homicídio, em 2016, viu a pena agravada em mais um ano, resultado do cúmulo jurídico decorrente desta outra condenação.
Para a professora já não havia nada a fazer. O homicídio aconteceu a 8 de Janeiro de 2016, depois de a mulher se deslocar, mais uma vez, à PSP, para apresentar queixa do companheiro. Este viu-a a sair da esquadra e, suspeitando do que a levara ali, agrediu-a violentamente quando ela chegou a casa. O neto, com 14 anos, incapaz de a ajudar, pediu auxílio num café próximo, e um vizinho acompanhou-o até à habitação, onde viu a mulher presa pelo pescoço nos braços do companheiro, que empunhava já uma faca. Quando a polícia chegou, a vítima já tinha morrido, esfaqueada por diversas vezes.
Nas recomendações que deixa, após a análise do caso, a EARHVD alerta que é preciso implementar os instrumentos já disponíveis na protecção das vítimas; que é preciso mais e melhor investigação (por exemplo: as participações apresentadas podiam ter sido registadas como crimes públicos, de violência doméstica ou de maus tratos, e não ofensas corporais, o que não admitiria a desistência de queixa); e que a Assembleia da República e o Governo devem ponderar a clarificação da lei, no que diz respeito à prática de crimes de violência doméstica na presença de menores.
A equipa recorda que o neto da vítima assistiu, ao longo dos anos, a todo o processo de violência e que foi ele mesmo alvo de ameaças e de destruição de bens que possuía. Isto faz com que a criança seja também vítima do crime de violência doméstica e não apenas testemunha da mesma, o que poderia ter levado ao agravamento da pena do arguido, por mais este crime que poderia ter sido julgado de forma autónoma, o que não aconteceu.