Sérgio Aníbal, in Público on-line
Indicadores do mercado de trabalham confirmam o que já se temia: terramoto económico e laboral trazido pela pandemia está a conduzir a um aumento da desigualdade de rendimentos. Portugal destaca-se pela negativa na Europa.
À medida que vão sendo divulgados dados económicos oficiais, confirmam-se na prática as previsões de muitos economistas de que a crise da pandemia irá ter como resultado um forte agravamento da desigualdade na distribuição de rendimento em Portugal, com o país a destacar-se neste capítulo pela negativa entre os seus parceiros europeus.
Os dados mais recentes a serem disponibilizados são os que resultam do inquérito ao emprego realizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) para o terceiro trimestre deste ano. E aí, é possível verificar que foi nas profissões com os salários médios mais baixos que os trabalhadores ficaram, durante a pandemia, mais sujeitos a perder o emprego, o que potencialmente conduz a salários ainda mais baixos.
São onze as categorias de profissões para os quais o INE publica dados trimestrais para o número de empregos e salário líquido mensal médio. Entre o primeiro e o terceiro trimestres deste ano – período durante o qual a pandemia abalou o mercado de trabalho em Portugal -, é nos empregos em que os salários são mais baixos que tendencialmente se verificam reduções do nível de emprego mais acentuadas do que a verificada para a totalidade da população, e que foi de 1,4% durante esses seis meses.
Há algumas excepções em categorias de profissões de muito reduzida dimensão, como a referente ao pessoal das Forças Armadas, mas as categorias de maior dimensão não deixam dúvidas sobre aquilo que está a acontecer.
Subir o salário mínimo pode ser uma solução?
Um aumento do salário mínimo é uma das opções que os governos podem considerar para tentar contrariar o agravamento da desigualdade de rendimentos provocado pela crise, defende a Organização Mundial do Trabalho no relatório anual sobre salários que publicou na semana passada. No entanto, avisa, há algumas limitações à aplicação desta receita.
A organização faz uma simulação sobre o impacto na distribuição de rendimentos que uma subida do salário mínimo até 67% da mediana dos salários totais teria numa série de países. E a conclusão é a de que, na maior parte dos casos, os resultados de uma decisão política desse género seria muito significativo.
Esse não é contudo o caso de Portugal. A redução da desigualdade na simulação feita para o salário mínimo português fica fortemente limitada pelo facto de este estar já acima do valor da mediana dos salários. E, como afirma a OMT relativamente a esta simulação, “o nível relativamente alto do salário mínimo em relação ao salário mediano sugere que existe uma margem pequena para reduzir as desigualdades”.
A simulação é feita assumindo um aumento do salário mínimo até 67% da mediana, uma vez que uma das condições que a OMT coloca para o seu reforço é que este tenha um nível adequado face ao resto dos salários na economia e face ao aumento da produtividade.
De qualquer modo, em Portugal, o salário mínimo aumentou em 2020 e deverá, em 2021, voltar a subir, provavelmente para um valor entre os 660 e os 685 euros.
A categoria dos “trabalhadores não qualificados”, que é aquela com o salário líquido médio mais baixo (585 euros) registou uma redução do número de empregos de 11,4%. De igual modo, entre os “trabalhadores dos serviços pessoais, de protecção e segurança e vendedores”, com um salário médio de 715 euros, e entre os “operadores de instalações e máquinas e trabalhadores da montagem”, com um salário médio de 795 euros, as quebras nos números de empregos foram, respectivamente, de 5,9% e 8,5%.
No pólo oposto, verifica-se que os “especialistas das actividades intelectuais e científicas”, com um salário médio mais elevado de 1375 euros e os “técnicos e profissões de nível intermédio”, cujo salário médio é de 1020 euros, registam mesmo um aumento no número de empregos, de 8% e 0,1%, respectivamente.
Contrariando de forma relevante esta tendência está a categoria dos “agricultores e trabalhadores qualificados da agricultura, da pesca e da floresta”, que apesar do salário médio baixo, registou um aumento do emprego de 6,8%.
Utilizando informação mais desagregada relativa às profissões, que o INE apenas disponibiliza para fins académicos, a economista Mónica Costa Dias, do Institute of Fiscal Studies, apresentou recentemente na conferência anual do Banco de Portugal dados relativos ao segundo trimestre que confirmam exactamente esta tendência: a queda do emprego registada em Portugal “concentrou-se nas profissões com salários mais baixos”. Para além disso, acrescentou a economista, a queda nas horas de trabalho – um indicador relevante numa altura em que o layoff simplificado poupou muitos empregos – foi “também mais visível nas profissões com menores salários”.
Estes resultados, que não são uma característica de Portugal, já eram esperados tendo em conta as características da presente crise. Por um lado, alguns dos sectores mais afectados, como o turismo e a restauração, tendem a ter uma percentagem mais elevada de mão-de-obra com salários mais baixos.
Por outro lado, os trabalhadores menos qualificados (tendencialmente com salário mais baixos) têm menos possibilidades de desempenhar as suas funções através do teletrabalho.
De acordo com o INE, no terceiro trimestre do ano, enquanto 39,5% dos “especialistas das actividades intelectuais e científicas” trabalharam sempre ou quase sempre a partir de casa, essa percentagem é quase nula entre os “trabalhadores dos serviços pessoais, de protecção e segurança e vendedores”, “operadores de instalações e máquinas e trabalhadores da montagem” e “trabalhadores não qualificados”. A capacidade para trabalhar de casa é, nesta crise, um factor determinante para assegurar a manutenção do emprego e, por isso, uma fonte de potencial agravamento das desigualdades.
O INE também divulga, nos seus inquéritos ao emprego, dados para a evolução dos salários médios. Aqui, embora também seja visível um aumento entre os “especialistas das actividades intelectuais e científicas” e um recuo nos trabalhadores não qualificados, a análise é menos relevante, uma vez que há efeitos de composição e os salários já em níveis mínimos não podem descer mais. Nestes casos, a diminuição do rendimento dá-se essencialmente pela perda do emprego.
Utilizando a massa salarial total, a Organização Mundial do Trabalho (OMT) assinalou, no seu relatório anual sobre salários, a tendência para um aumento da desigualdade dos rendimentos entre o primeiro e segundo trimestre na generalidade dos países europeus.
O rácio entre os salários recebidos pelos 10% mais ricos da população e os salários recebidos pelos 10% mais pobres aumentou entre os 29 países europeus analisados, sendo que “os países com o aumento estimado mais elevado na desigualdade são a Irlanda, Portugal e Espanha”, assinala o relatório.
Uma posição de destaque de Portugal neste agravamento da desigualdade que poderá estar relacionado com o peso significativo de sectores com o turismo na economia e com os baixos níveis de qualificação e com os salários baixos prevalecentes na mão-de-obra do país. Portugal, um dos países da UE com níveis de desigualdade mais elevados poderá, assim, depois de alguns anos de melhoria nos indicadores, voltar a registar um agravamento por causa da pandemia.