3.3.21

Para artistas e escritores, foi tempo de registar ausências

Isabel Lucas, in Público on-line

Será sempre um diagnóstico incompleto, assustado, imediato da realidade. O de quem tentou o registo dos dias da pandemia como urgência artística, literária, sabendo-se a participar de um momento único. A qualidade estética do que fizeram, e nalguns casos ainda fazem, pode ser questionada, a sua utilidade histórica não.

A última imagem no Instagram é a de uma casa. Melhor, de um móvel numa casa, cheio de coisas, de fotografias. Entre elas há uma jarra com túlipas e frésias. As flores estão abertas. Sabemos que não são novas se tivermos seguido o seu percurso antes de chegarem à casa. Na jarra, confundem-se com o ambiente em volta, alteram-no à medida que envelhecem. São o único movimento que se antecipa. Noutra imagem, vislumbram-se as pernas e parte do tronco de alguém. Um rapaz? Segura um cigarro, o rosto encoberto pela copa da laranjeira. Vemo-lo por detrás do vidro da janela. Será um pátio de Lisboa onde sobressai o silêncio porque, por exemplo, já não passam aviões. É só outro vazio, o retrato de uma ausência, nada evidente. Tudo quieto, na inquietude da cidade onde há máscaras deixadas no chão, excrescência de outra falta, a de um rosto. “Não fotografo uma intimidade que revele muito, mas os vazios em que se transformou a maior parte dos sítios”, diz Luísa Ferreira, fotógrafa, que dia após dia capta imagens do que chama “um quotidiano de fechamento”. Porquê? “Por impulso. Porque nos silêncios, nas ausências, há quase um retrato deste tempo.”

Em imagens, em diários, nos traços de um cartoonista, nos filmes concretizados (ou falhados), em canções compostas no interior de uma casa. Como e porquê se tem registado, entre artistas e escritores portugueses, este tempo da pandemia, um tempo fora da ciência, das estatísticas, da política e da economia? Quase sempre por impulso, da forma que cada um encontra como mais natural. Esperando, ou não, chegar a uma linguagem próxima da arte.

Desde o princípio, há um ano. “Nessa altura estive sujeito a uma espécie de confinamento intermitente. Turnos de 12 horas no hospital alternando com dias fechado em casa, para funcionarmos em bolha, sempre na mesma equipa. Isso exigiu afastamento dos familiares e das pessoas externas ao trabalho. Escrever sob a forma de diário serviu uma função terapêutica, ou de organização mental, para os dias em que fiquei em casa, e respondeu à necessidade de registar um acontecimento de excepção, a cuja experiência não voltaria a ter acesso se não a fixasse exactamente enquanto a vivia. Nesse aspecto, houve também a noção de que era um material claramente literário e que poderia ser usado no futuro com esse intuito.”

Paulo Bugalho é neurologista, não estava na linha da frente do tratamento a doentes com covid-19. E é também autor de um romance, A Cabeça de Séneca (Gradiva, 2011). A 28 de Março, escreveu: “Não são só os tempos que transformam os nosso sítios em lugares de Hopper mas também a luz. Porque a Primavera prossegue, autónoma, na rua, e a luz entra do mesmo modo pelos vidros: só que agora apanha-nos em falso, a ocupar o sítio na parede onde o pintor desejara colocar apenas vácuo.”

O diário de uma incerteza

António, nome fictício, trabalha em cinema e tinha o projecto de adaptar os Diários de Kafka. Foi antes da pandemia. Depois o (seu) mundo ruiu. “Os registos são de uma relação que morreu lentamente com a pandemia”, conta. Ele é português, ela italiana e os dois dividiam o tempo entre Lisboa e Milão. “O confinamento, pelo azar de uma semana, apanhou-nos cada um em seu país e assim ficámos quatro meses. Eu fiquei sem trabalho e, claro, sem dinheiro. Ela continuou a trabalhar. Lidar com a incerteza do futuro repercutiu-se em mim numa ansiedade terrível.”

A relação acabou por terminar em Outubro de 2020, com António a somar cinco cadernos de registos desse tempo, mais os diálogos trocados no privado das redes sociais. Mais notas soltas, canções, pedaços de livros que iam dando sinais da fragilidade do tempo que vivia intimamente e tinha eco nos estilhaços do colectivo. Uma coisa e a outra estariam para sempre unidas. “O que tenho dá para argumento de uma telenovela”, diz, meio irónico, quando tenta juntar as peças num corpo de trabalho. “De repente, tudo e todos se tornaram ruído branco, como um transístor em dessintonia. E eu congelo, hipnotizado.” É uma nota sem uma data, entre muitas, em inglês, a língua em que ele e ela comunicavam, ou em português: “Estou farto de chegar ao Cais do Sodré sem chegar a conclusões. Pior, estou farto de nem me lembrar de sair de lá. Se hoje, ao menos, houvesse alguma coisa aberta no Cais do Sodré...” António resiste a chamar diário ao que tem escrito. “Não há a ideia de um diário em si, é apenas matéria, registo, mas que devidamente alinhavado e organizado pode sê-lo”, explica.

Por todo o mundo, em todos os textos, em todas as manifestações intencional ou potencialmente artísticas, há um traço comum que, um ano depois, se mantém: a incerteza. No meio da certeza absoluta de se viver um momento único. “Toda a gente sentia que estava a viver um momento histórico e, por causa disso, os escritores, os artistas em geral, começaram a registar os dias”, cumprindo uma velha tradição histórica, refere o historiador Rui Tavares, autor do podcast Agora, Agora e Mais Agora, que manteve no PÚBLICO entre Abril e Junho de 2020. “Fiz o podcast dentro dessa lógica. Era de História, mas a tentar registar o presente da pandemia.”

Por detrás de todos estes registos, uma espécie de urgência, um instinto primário. “Comecei a escrever o Diário da Peste a 20 de Março de 2020, com o aparecimento violento da pandemia”, conta Gonçalo M. Tavares sobre as crónicas diárias que assinou no Expresso durante três meses. Serão publicadas em livro em Abril. “Foi uma necessidade absoluta. Nesses dias estava completamente paralisado e obcecado. Percebi que diante dos acontecimentos fortíssimos a escrita teria de estar presente. Foi uma pura necessidade. Escrevi todos os dias, acompanhando o que ia acontecendo com a sensação de que era algo irrepetível, o aparecimento de uma espécie de catástrofe silenciosa que ninguém sabia como iria continuar. Ninguém sabia como reagir”, continua o escritor, admitindo que só terminou por exaustão física.

“Senti que era um documento que iria ficar; um documento de resposta instintiva de alguém que tenta perceber o que está a acontecer, tenta continuar a pensar, apesar de estar debaixo de uma espécie de bombardeamento silencioso e de choque. Aquele registo saltitante, rápido, tinha a ver com a velocidade de pensamento que estava na minha cabeça naqueles dias, uma velocidade louca.”

A 18 de Junho, escreveu: “Penso num fim do mundo que passa despercebido. Já chegou, dizem uns. Já chegou, mas já foi embora, dizem outros. O ballet de Nova Iorque cancela apresentações até 2021. Um ginásio da Califórnia cria cápsulas individuais. O esforço é solitário, e tal é mais do que justo. Em 2020, o fim do mundo é invisível. O fim do mundo aparece e não o vemos. E nada de essencial altera.” Pensa no que fez. “Se por acaso eu agora quisesse escrever uma espécie de memória desses dias, iria escrever de um ponto de vista completamente diferente, e, portanto, ali a grande vantagem foi essa, o diário obrigou a uma presença obsessiva”, comenta ao PÚBLICO.

A experiência ia sendo traduzida diariamente. O mundo percebia a realidade de que cada um, em qualquer parte do globo, falava, sentia. Havia reconhecimento, e alguns referentes históricos, artísticos, literários. “Mesmo que as pessoas não tivessem lido o Decameron, do Bocaccio, e as suas referências à peste negra, ou o Diário do Ano da Peste, do Defoe, sabiam que essas épocas geram esse tipo de registos. A pandemia de covid-19 vai ter gerado uma massa enorme de registos artísticos e documentos, e de obras de arte. Não só porque produzimos numa hora mais documentos do que outras eras inteiras têm para nos oferecer, mas porque mais gente tinha a noção de estar a viver um momento histórico e de que havia um papel geracional a cumprir”, justifica Rui Tavares, defendendo, diante da produção já existente, que “os arquivistas deviam já estar a entrar em campo”. Ou seja: “Como a massa documental é muito grande e é praticamente impossível de digerir, de absorver, a grande questão que se coloca é fazer já uma espécie de registo. Há muitas coisas em formato efémero. E que podem não fazer sentido se não estiverem reunidas num corpus documental.”

Entre a relevância e a utilidade

Entre os trabalhos literários já com relevância histórica inquestionável, Rui Tavares sublinha Wuhan Diary, livro da escritora chinesa Fang-Fang, que estava em Wuhan no início da pandemia e começou a escrever um diário online sobre o quotidiano da cidade. O historiador destaca também as imagens, a que chama retratos de ausências. Luísa Ferreira refere um sentimento semelhante no trabalho de colegas de profissão, como as máscaras retratadas por Augusto Brázio. Pensa na cidade onde vive, bem no centro, e fala do “peso surdo do silêncio” na estranheza dos primeiros dias de confinamento. Cada um procura a melhor expressão para o que Gonçalo M. Tavares designa de “diagnóstico meio assustado da realidade”. Como foi o seu.

O jornalista José Vegar fez um diário a que chamou O Registo do Tempo Contaminado. O Facebook foi a plataforma. Cada texto tinha uma ilustração de Filipe Homem Fonseca e uma música escolhida por Amadeu Vilaça. Começou a 18 de Março de 2020. “Todos os dias havia um texto onde queria registar a experiência colectiva. Tendo esse norte bem estabelecido, procurava os sinais dessa experiência, tanto na rua, observando, como na imprensa nacional e internacional, para tentar perceber o que estava a acontecer. O que me interessava mais não era a experiência imediata, mas o que estava a motivar os comportamentos, emoções, sentimentos. Queria também recuperar textos que tinham a ver com o medo e a pandemia e estavam esquecidos, desde J. G. Ballard a Ruy Duarte de Carvalho. E havia uma preocupação literária”, conta, notando que pela primeira vez usou o “nós” na escrita. Tratava-se de uma experiência colectiva de que não se punha de fora porque não era possível. “O ‘nós’ reforçava a noção de pertença a um colectivo.”

A primeira entrada desse diário reza assim: “Hoje será provavelmente o dia do fecho. Este que agora invade é um inimigo de natureza rara, de todos os que conhecemos ou nos contaram.” Parou nove meses depois, quando sentiu que esgotara os temas, que tudo parecia uma repetição de qualquer coisa. Os textos estão reunidos num livro à espera de editor.


Paulo Bugalho também pensa num hipotético livro. “Até lhe dei um título, O Teste”, diz. “A última entrada do diário, no final do primeiro confinamento, reflecte sobre a leitura das entradas anteriores e parece que a noção que fica é de um vasto pesadelo, que tenderemos a esquecer. Isso concluía eu, antes de vir a segunda a vaga e andarmos novamente nestes preparos. Se este tempo ficará como extraordinário – uma lacuna na normalidade – ou como o começo de um novo tempo – pior – ainda não é possível saber. O interesse do diário dependerá disso”, diz.

André Ruivo começou a desenhar os dias da pandemia nas redes sociais por se sentir sozinho. A razão é a mais simples e a mais complexa. Cada cartoon dava-lhe um feedback imediato que de outra forma não teria. E pela primeira fez juntou palavras aos desenhos. Um dia serão um livro. Ainda não. “São ilustrações do quotidiano. Há vários temas que são dos dias de hoje: o teletrabalho, a telescola, a máscara, os vizinhos, a família, pais e filhos, a loucura de estar em confinamento, doenças mentais, o take away, a casa”, vai elencando. E a espera. A relação com o tempo, “um tempo mais escuro, por não se saber também o que vem depois”, como sugerem ainda as imagens de Luísa Ferreira na relação com a casa e a redescoberta dos objectos de sempre. A tragédia de se ser despejado de uma Lisboa deserta porque a lei do mercado ainda é a da Lisboa cheia de turistas. Contradições fotografadas, como a luz dos fins de tarde na penumbra de uma sala da cidade.

É a cidade em que Sandra Nobre, jornalista, começou a olhar pela janela e escreveu “sobre a situação que nos apanhou de surpresa, o não sair de casa”, refere. “A reclusão fez-me observar os vizinhos do prédio em frente, quase ninguém tem cortinas, e comecei a criar quase um enredo, que servia para falar da dinâmica das famílias e das suas rotinas – cozinha, exercício físico, vestuário, etc. Quando fiquei dois dias sem publicar, comecei a receber mensagens a perguntarem-me o que acontecera ao vizinho. Fui apanhada de surpresa pelo interesse e fiz disso uma rotina, por perceber que fazia a diferença na vida de alguns que encontravam nas minhas palavras algum conforto ou se reviam no que escrevia. E a escrita era a minha companhia, como antes já o era.”

Gonçalo M. Tavares destaca justamente essa função quase utilitária que a escrita pode ter, e teve nos dias do confinamento, “uma sensação de uma comunidade qualquer, comunidade do pânico”. “Foi muito forte”, acrescenta, “porque também foi sensação de que havia uma espécie de utilidade no diário. Uma utilidade estranha, que não tinha a ver com animar nada.”