Ana Sá Lopes, in Público on-line
Lígia Amâncio, socióloga, afirma que o poder da ideologia de género salazarista e o individualismo explicam a ausência de feminismo em Portugal.
A socióloga Lígia Amâncio diz que em Portugal ninguém se habituou a debater as desigualdades sociais baseadas no sexo, na etnicidade. “É por isso que estamos com o problema sobre o racismo, outra negação da sociedade portuguesa”. Apesar de ter esperança nas novas gerações, mais desprendidas em relação à “mordaça” existente na sociedade, admite que as coisas ainda piorem “por conta da invasão da extrema-direita”.
O século XXI pode ser o século das mulheres? Houve uma altura que se falava muito do pós-feminismo…
Agora não há nada colectivo para analisar, é tudo individual. E como é tudo individual, tudo depende da minha vontade, da sua vontade… (risos). Essa é uma característica de uma época que explica bem a ausência de feminismo. O feminismo como qualquer outro movimento social vive de um sentimento de mobilização colectiva. Aqui em Portugal temos outra agravante. Nos outros países, os anglo-saxónicos, a própria Itália e a França, tiveram movimentos feministas importantes na segunda vaga e nós não tivemos.
A segunda vaga está a falar dos anos 60...
Nós tivemos uma primeira vaga importante - houve congressos internacionais em que Portugal participou. Mas na segunda vaga estamos em plena guerra colonial, era impossível. Uma sociedade em guerra não pode ter feminismo. A preocupação das mulheres naquela altura era com os pais, os irmãos e os maridos. Essa ausência de experiência histórica do feminismo também nos deixou alguns défices, nomeadamente de experiências, sororidade entre mulheres, respeito pela voz das mulheres. Em contrapartida, tivemos uma entrada facilitada das mulheres no mercado de trabalho pela própria guerra colonial. Nos outros países, a entrada das mulheres no mundo do trabalho é uma reivindicação do movimento feminista. O movimento da primeira vaga tinha-se focado no acesso ao voto. O da segunda vaga foca-se no acesso ao emprego. Em Portugal não foi preciso.
Não havia homens, tinham emigrado, estavam na guerra, portanto as mulheres tiveram que ir trabalhar. E apesar da fortíssima ideologia da ditadura à volta da feminilidade normativa - as mulheres tinham que obedecer, ser submissas, e ser boazinhas, e muito mães, e muito ternas — a sociedade portuguesa acomodou perfeitamente a saída das mulheres de casa para irem trabalhar. E elas tiveram uma grande vantagem porque a seguir à guerra veio a democracia e com a democracia a igualdade. As mulheres portuguesas já não foram mandadas para casa como foram as americanas, as inglesas e as francesas - que substituíram os homens aquando da mobilização para a segunda guerra mundial. Há estas particularidades em Portugal que explicam um bocadinho porque é que as mulheres portuguesas chegaram a uma situação muito semelhante às mulheres de outros países sem terem passado pelo mesmo movimento nem tendo uma história de feminismo atrás dela.
Nunca tivemos um movimento feminista forte?
Na primeira vaga tivemos, mas toda a gente já se esqueceu. E nos anos seguintes é diluída na luta antifascista. Depois da dissolução do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, da prisão da Maria Lamas, aqueles anos 40/50 são anos de aniquilação, já ninguém pensava no feminismo, era preciso era combater a ditadura. Isso compreende-se perfeitamente.
Mas como se explica que haja poucos movimentos feministas em Portugal?
É que a ideologia de género da ditadura era muito muito forte! E foi muito eficiente. Eu pertenço a uma geração em que essa ideologia era ensinada nos manuais escolares. O Salazar tem discursos sobre o que as mulheres devem ser. A Constituição de 1933, no capítulo da igualdade dos cidadãos, abre uma excepção para as mulheres devido ao seu papel na família. Temos uma ditadura com uma ideologia de género fortíssima que nunca foi completamente posta em causa por nenhuma acção da democracia. A democracia nunca combateu activa e conscientemente essa ideologia.
A democracia alinhou a sua legislação de Estado de direito democrático pela legislação de referência dos organismos internacionais. Passou a integrar na sua ordem jurídica a igualdade, a protecção das mulheres, o combate à discriminação. Mas não há nenhuma acção política que combata a ideologia de género [de Salazar]. Há coisas em Portugal que são quase únicas! O trabalho doméstico em Portugal continua a ser em 90% exclusivamente feminino. Nos outros países, quando os dois trabalham fora de casa, as horas que as mulheres dedicam ao trabalho doméstico reduzem. Em Portugal não, ficam iguais. E, mais do que isso, as mulheres dizem que fazem aquilo que lhes compete. Não só são objecto de uma situação injusta como não são capazes de pôr em causa essa situação!
As mulheres portuguesas continuam a seguir a ideologia de género salazarista?
Exactamente. Não têm instrumentos nem força para combater esse ideal. Não têm movimento colectivo, não têm organização, não têm diálogo entre si... Uma coisa que me chama sempre muita atenção é a falta de associações profissionais femininas. Todos os problemas que enfrentam dentro da profissão resolvem-nos individualmente. Acham sempre que a culpa é delas, alguma coisa que não estão a fazer bem...
Isso leva-nos para a culpa feminina... Ser má mãe, má profissional, má várias coisas.
Tenho estudado com uma doutoranda minha as profissões altamente qualificadas. Apesar das mulheres serem dotadas de diplomas há uma permanente desconfiança em relação à competência delas. A pressão no seio da profissão é enorme e elas raramente se sentem completamente integradas. Estão sempre a investir para serem aceites, para provar que... “Esqueçam que eu sou mulher, eu sou uma boa profissional”... Simultaneamente, a pressão da família. Isso levou-nos à catástrofe demográfica em que estamos. Não havia maneira de resolver o problema senão deixando de ter crianças. E mesmo assim a vida do casal não é fácil. E há estudos que mostram que nessas profissões altamente qualificadas, as mulheres, quando a situação é de grande tensão, abdicam da sua carreira a favor da carreira do parceiro.
Mas isso existe ainda?
Porque acham que é da sua competência manter um bom ambiente familiar. Lá está, o individualismo somado à tal ideologia de género que vem de trás.
E acha que neste século vamos conseguir acabar com essa ideologia de género?
Há sinais interessantes nas novas gerações... Há uma mordaça neste país que faz com que as mulheres digam ‘ai eu não sou feminista, eu sou feminina’. Fazem-se crónicas a insultar alguém por ser feminista, as pessoas vivem num terror...
Mesmo mulheres jovens qualificadas têm esse discurso do “eu não sou feminista”...
Num tempo em que ainda havia conferências (risos) a Helena Pereira de Melo, da Nova, que trabalha com a Teresa Beleza dizia: “As alunas dizem ‘ai eu não sou feminista’, ‘eu não quero ser feminista’. Perguntei: ‘Não defende a igualdade de direitos entre homens e mulheres?’, 'Ah, isso defendo’. ‘Então tenho uma má notícia para si. É feminista'”. (risos) Toda a gente diz que é a favor da igualdade de direitos entre homens e mulheres. Então porque é que não é feminista? É porque está a pensar que feminismo é outra coisa... São fantasmas. Aquilo da ausência de feminilidade.
As mulheres têm que ser bonitas, atraentes, sensuais, mesmo quando são intelectuais. Há outra explicação possível. Portugal tem muitas singularidades. O 25 de Abril traz uma enorme sensibilidade a uma única desigualdade social, que é a de classe. Não há mais nenhuma. É por isso que estamos com o problema que estamos face ao debate do racismo. É outra negação da sociedade portuguesa. Ninguém se habituou a debater este assunto no quadro das desigualdades sociais, baseadas no sexo, na etnicidade. Toda a gente compreende políticas para combater a pobreza. Agora, políticas para a igualdade entre homens e mulheres?
Portugal nunca discutiu o racismo...
Exactamente. Aqui há uns anos uma estudante minha estava a trabalhar sobre a questão das quotas e da lei da paridade. E eu combinei com ela fazermos um estudo para perceber se esta percepção negativa das quotas era uma percepção em relação ao instrumento em geral ou se era em relação ao instrumento aplicado à questão das mulheres. Fizemos um inquérito em que dávamos vários exemplos de quotas. Um dos exemplos que dávamos era o da distribuição dos fundos europeus por regiões. Chegámos à conclusão de que as pessoas são completamente a favor das quotas regionais, só não são a favor das quotas de género e das baseadas na cor da pele. Aí o problema é dos indivíduos, eles que o resolvam. As regiões não podem resolver o problema sozinhas, mas quanto às mulheres e minorias étnicas, é problema delas.
Mas isso ainda é da tal ideologia de género salazarista?
Acho que isto tem que ver com o facto de vivermos, de há 30 anos para cá, uma ideologia que combate qualquer acção colectiva, qualquer desigualdade estrutural — a ideia é recusada porque acha-se que a sociedade não fabrica nada, só os indivíduos é que fabricam. E não há causas colectivas que se apliquem às mulheres ou a indivíduos que tenham uma cor de pele diferente. Thatcher dizia: “Eu não sei o que é a sociedade, só conheço indivíduos e famílias”. Depois, olha-se para o mundo desta maneira. As mulheres são umas coitadinhas que andam a queixar-se, querem tratamento privilegiado. É tudo logo triturado ao abrigo da noção individualista.
Mas o movimento MeToo foi uma grande mudança, não se estava à espera...
Aqui há uns anos, uma investigadora que fez um trabalho notável na Universidade de Harvard, que depois levou à criação de uma comissão de acompanhamento da desigualdade de género na instituição, dizia: “O problema é que é sempre preciso que as mulheres atinjam uma certa maturidade na carreira para conseguir mobilizá-las para isto”. Não é uma jovem investigadora no início de carreira que se vai mobilizar para esse tipo de luta porque tem medo de perder oportunidades. É o mesmo com o MeToo.
Durante muito tempo aquelas mulheres aguentaram tudo e mais alguma coisa em nome da carreira delas. Demorou algum tempo até haver suficientes mulheres que tinham atingido maturidade, estabilidade financeira, reputação, para serem capazes de vir cá para fora falar dessas coisas. Mas isso é verdade em qualquer carreira. Também não deixa de ser engraçado que logo que apareceu o MeToo não temos a imprensa portuguesa invadida por casos que levaram ao MeToo. Vemos é a imprensa portuguesa invadida por críticas aos métodos do MeToo. As próprias formas de luta estão sujeitas a uma censura. Não são as vítimas que decidem como é que lutam para melhorar a sua situação, é o grupo maioritário que lhes diz o que têm que fazer para continuarem a ser boazinhas.
As mulheres no século XXI podem deixar de ser boazinhas?
Os homens podem ser bonzinhos e mauzinhos e as mulheres igual. É outra questão enganadora quando se discute a questão da paridade. Não é porque as mulheres são boazinhas que é preciso que elas lá estejam. Até podem ser uns estupores... Não é essa a razão. A razão da luta é que na sociedade há homens e mulheres e numa democracia representativa têm que estar distribuídos equitativamente.
Mas apesar do aumento de mulheres na magistratura vemos o crime de violência doméstica tratado como se fosse um crime de segunda ordem...
Com uma enorme displicência. Acho que não há consciência dos aspectos estruturais que estão por detrás do crime de violência doméstica. Mas alguém deu essa formação aos juízes? Isso também se aprende. Há uma estranha tolerância em Portugal às desigualdades de género que chega a ser chocante. Como é possível que depois de 30 anos de melhoria constante das qualificações da população, em que as mulheres têm estado sempre à frente, continuem a trabalhar 53 dias à borla por ano? As pessoas convivem com este tipo de desigualdade com a maior das displicências. Isto tem a ver com a ausência de experiência histórica do feminismo. As mulheres neste país não têm voz. Logo que abrem a boca, levam uma bofetada: “Estás a ser feminista”. Ou então elas dizem: “Eu não sou feminista mas...”.
Chamam-lhes feministas histéricas...
O feminismo está associado a qualquer coisa de negativo, socialmente censurável e não feminino!
Mas quais são as nossas esperanças para o mundo de amanhã?
Eu acho que antes disto melhorar vai piorar por conta da invasão da extrema-direita - em termos de discurso, normas de comportamento, de referências, etc. Tornou-se uma presença muito significativa com a era Trump. Estivemos resguardados dessas influências mas também já deixámos de estar. Se a gente olhar para o Vox, em Espanha, o grau de misoginia daquele partido é uma coisa que já nem se vê em mais parte nenhuma. A agenda daquele partido é de combate às políticas de igualdade.
E tem tido sucesso, viu-se agora na Catalunha...
Vimos que 75 milhões de americanos votaram naquele indivíduo que dizia que as mulheres tinham que ser “grabbed by the pussy”. Por que é que a gente chegou a este grau de degradação? Há um recuo civilizacional, desse ponto de vista. Temos tido um sector da sociedade, muito bem representado nos media, que combate profundamente toda a diversidade que é suposta existir numa democracia. E um dos meios desse combate é o ódio ao politicamente correcto.
O politicamente correcto nasce nas ciências sociais para exprimir uma sociedade diversa. Temos um grande equívoco neste debate em Portugal e também tem dificultado a tomada de palavra por grupos minoritários. Apesar de terem havido conquistas positivas, o debate público mostra que há muita rejeição de quem sai um bocadinho fora da caixa. É um estado de falta de maturidade democrática. Por que é que a democracia é só o homem branco que escreve nos jornais? Há muitas maneiras de ser humano.
Mas as coisas podem mudar...
Acho que estamos numa fase em que as coisas se arriscam a piorar um bocadinho. Mas também me parece que em Portugal há gerações mais novas, que não têm propriamente o receio da tal mordaça e usufruem de conhecimentos adquiridos mais cedo. Eu vejo esta geração mais desprendida em relação a essas manifestações de mordaça que a sociedade portuguesa tem, quase instintivamente.