9.6.21

A terceira pobreza

Sebastião Bagulho, in DN

A relação da República Portuguesa com o capitalismo é em muito idêntica à da restante humanidade com Deus: nunca o vimos e nem todos acreditamos nele.

Em Portugal, os partidos de poder, europeístas e defensores da economia social de mercado, pouco podem fazer perante um Estado encrustado em si mesmo, uma pobreza estrutural que não pode (obviamente) dispensar o seu auxílio e um tecido empresarial descapitalizado. O Estado suplica à Europa, as empresas imploram ao Estado, o povo espera o pior de ambos. Nas palavras do mais recente cartaz do Bloco de Esquerda, ungido de um realismo quase passista, "o dinheiro não cai do céu". E o capitalismo não se faz sem capital.

Como se viu nesta crise, e também na outra, o setor privado português tem o cabedal de varas verdes. E como se tem visto, através de estudos da academia e da sociedade civil, o atraso social em Portugal tem uma gravidade proporcional à sua perpetuação: população empregada que não consegue, nem trabalhando, sair de condições de pobreza; futuros pensionistas, após uma vida de descontos, preparados para auferir metade do seu atual rendimento. Com um retrato destes, estagnação é uma palavra cujo tom causa até conforto. Porque não é estagnação. É a falência ‒ humana, sistémica, estrutural ‒ de um país.

Não faz sequer sentido atacar o sistema como sendo capitalista, porque não o é. Um dos flagrantes exemplos disso é a nossa inversão do ciclo do empreendedorismo. Numa economia saudável, livre, criativa, são os cidadãos que fazem das ideias oportunidades e das oportunidades negócio. O Estado observa, regula e aplaude consoante o seu sucesso ou insucesso. Em Portugal, o mercado veste-se do avesso: como o Estado é a réstia de dinheiro que subsiste, é o Estado que cria, deteta e distribui oportunidades de negócio, com um dinheiro (dos contribuintes) que não é seu e uma transparência (como sabemos) que tem deixado bastante a desejar. A desconfiança do eleitorado comum nesta conjuntura não é, portanto, coincidência. Um jogo viciado, de resultados miseráveis, não atrai ninguém.

Temos, então, três ordens de pobreza: a material, bem explícita; a vocacional, evidenciada pela ausência de rumo e representatividade; e a institucional, de cuja a imagem do parlamento e dos partidos fundadores é prova, mas que não se resume às instituições públicas. São elas as de mais urgente recuperação, mas não as únicas em falta. Numa democracia liberal, de sociedade aberta e mercado livre, há capital e antiguidade suficiente para que as empresas sejam elas instituições dessa sociedade. No setor bancário, bancos com história que retrate o desenvolvimento do seu país e não com o historial da sua pequenez. Nos grupos de comunicação, jornais sustentáveis com a memória que tanta falta faz à manutenção das democracias. Na indústria, empresários que fizeram dos seus trabalhadores a sua comunidade, cuidado muitas vezes antes do Estado e inspirando-o em práticas de educação, saúde e não só.

Estas são instituições que a nossa pobreza também não permite e cuja inexistência afetará, e muito, o nosso futuro enquanto democracia. A atravessar uma crise com um sistema partidário em ebulição e uma disrupção tecnológica à porta, a solidez institucional não deveria ser somente uma aspiração, mas uma urgência.

Sem reformar o capitalismo português não o conseguiremos.