Texto Hélder Gomes, Infografia Jaime Figueiredo, in Expresso
Percentagem de portugueses que não gostariam de os ter como vizinhos é três vezes maior do que outros grupos
Os ciganos estão praticamente a par com os alcoólicos e os toxicodependentes como os grupos de pessoas que os portugueses não gostariam de ter como vizinhos. Segundo o estudo “Os valores dos portugueses”, da Fundação Calouste Gulbenkian, estes três grupos destacam-se bastante dos restantes cinco grupos considerados. A distância social desejada pelos portugueses relativamente a ciganos, alcoólicos e toxicodependentes é cerca do triplo da registada em relação a judeus, muçulmanos e homossexuais. As pessoas percecionadas como pertencentes a outra ‘raça’ e os trabalhadores imigrantes estão no fim da tabela, com 13% dos portugueses a não os desejarem como vizinhos.
Alice Ramos, que assina o estudo com Pedro Magalhães, avança com uma explicação para a tão grande discrepância entre os ciganos e os outros grupos. “Os ciganos não têm qualquer norma que os proteja. O movimento antirracismo não chegou aos ciganos, que continuam a não ser vistos como pessoas, antes como um grupo em que todos os indivíduos têm exatamente as mesmas características: são criminosos, arruaceiros e aldrabões”, diz a investigadora ao Expresso. Sendo assim, estar perto de ciganos significa estar perto de “problemas, desacatos e violência”. Ao dizerem isto, os portugueses sentem que não estão a ser “racistas ou preconceituosos” nem estão a usar “estereótipos”, sentem que estão “a dizer a verdade” e aquilo que “as pessoas pensam”.
Este retrato ajuda a explicar a performance eleitoral de André Ventura nas presidenciais de janeiro nos concelhos onde os ciganos estão mais presentes ou têm mais visibilidade, sustenta ainda. O discurso contra os ciganos é também uma das razões da adesão à narrativa do Chega, partido que “faz o pleno” ao atacar imigrantes, negros, ciganos — enfim o outro, aquele que não está entre os ‘portugueses de bem’. É “chocante” ver os ciganos entre os alcoólicos e os toxicodependentes como os vizinhos mais indesejados, descreve Alice Ramos. “É o mesmo princípio que está na base do racismo: uma pessoa é vista como pertencendo a uma determinada raça, logo são todas iguais e não há diferenciação entre as pessoas”, acrescenta.
Os negros e os imigrantes já são enquadrados segundo “a norma do antirracismo”, ainda que muitos dos inquiridos possam ser preconceituosos e racistas no seu quotidiano. Como existe aquela norma, os portugueses podem não designar maciçamente estes dois grupos como vizinhos indesejados por considerarem que “é assim que devem responder, é isto que a sociedade espera deles, é o que faz deles bons cidadãos, é o que mostra que não são racistas”. Os ciganos continuam “à margem disto tudo”, insiste a investigadora. No conjunto dos 34 países estudados, os alcoólicos e os toxicodependentes são os grupos que recebem maior rejeição, enquanto os ciganos são referidos por 8% dos albaneses e 75% dos italianos.
De acordo com o estudo, os portugueses vêm revelando uma abertura crescente à presença e à importância dos imigrantes para o desenvolvimento do país. Ainda assim, continua a haver uma proporção significativa de inquiridos que consideram que os imigrantes ‘tiram trabalho aos nacionais’, ‘contribuem para o aumento do crime’ e ‘são um peso para a Segurança Social’. Questionados sobre a quem (nacionais ou imigrantes) deve ser dada prioridade quando os empregos são poucos, os portugueses figuram entre os mais equitativos. “Esta atitude constitui uma singularidade quando comparada com outras, ao colocar Portugal perto dos países da Europa Ocidental e do Norte”, concluem os investigadores.
“SISTEMATICAMENTE DE PÉ ATRÁS”
Quanto aos restantes indicadores, a família é a esfera de vida mais importante para 88% dos inquiridos (em 1990 era-o para 65%), estando a política reduzida a 8%, que a classificam como ‘muito importante’. Quase metade dos portugueses considera ‘certo’ que a mulher trabalhe mas diz que ‘o que a maior parte das mulheres realmente quer é um lar e filhos’ ou que ‘quando a mãe tem atividade profissional os filhos são prejudicados’. Fora do universo familiar, apenas uma minoria defende que ‘quando os empregos são poucos, os homens têm mais direito ao trabalho do que as mulheres’ ou que ‘os homens dão melhores líderes políticos do que as mulheres’.
As boas maneiras e o sentido de responsabilidade são os valores de eleição que os portugueses ensinam em casa às crianças, assumindo a imaginação e a fé religiosa menor relevância. Nos últimos 30 anos tem-se registado uma maior abertura à eutanásia, enquanto a baixa aceitação do aborto se mantém praticamente igual. No capítulo da cultura cívica, os portugueses mostram-se cada vez menos tolerantes relativamente a práticas como a fuga aos impostos, a reivindicação de benefícios a que não se tem direito ou a aceitação de subornos. Mas os portugueses continuam a figurar entre as populações europeias que menos confiança têm nos seus concidadãos: apenas 17% afirmam que se pode confiar na maioria das pessoas.
“Os portugueses têm sistematicamente o pé atrás em relação aos seus pares. Penso que isto ainda é o lastro dos 48 anos de ditadura”, diz Alice Ramos. “Se formos tentar encontrar explicações em orientação ideológica de esquerda/direita, não há. É verdade que os mais velhos e as pessoas com menos instrução são tendencialmente mais desconfiados, mas as discrepâncias [em idade ou instrução] são poucas”, reforça a investigadora.
A participação cívica é também historicamente baixa. O estudo revela que os portugueses continuam a estar entre as populações europeias que menos fazem voluntariado (Portugal está na cauda do conjunto de países estudados, apenas com a Sérvia e o Montenegro com menores índices de voluntariado). “Em países tendencialmente desiguais, a confiança no outro é minada porque não existe um sentido de comunidade. E o nosso debate sobre a democracia já denuncia, ele próprio, o problema que temos: somos incapazes de olhar para a democracia do ponto de vista social, dos comportamentos quotidianos, da vida cívica. Olhamos exclusivamente para o poder e como o poder se organiza quando falamos na democracia”, critica Daniel Oliveira, colunista do Expresso.
FICHA TÉCNICA O trabalho de campo da ronda mais recente do EVS foi levado a cabo pela GfK-Metris e decorreu entre 11 de janeiro e 31 de março de 2020. De uma amostra inicial de 3032 lares, obtiveram-se 1215 entrevistas que representam uma taxa de resposta de 41% e um erro amostral de ± 2,8% para um intervalo de confiança de 95%.