Sofia Neves e Claudia Carvalho Silva, in Público on-line
Lisboa já passou o patamar dos 240 casos por 100 mil habitantes e pode ser obrigada a recuar no desconfinamento se a incidência da covid-19 não melhorar. Especialistas ouvidos pelo PÚBLICO apoiam a decisão de dar um passo atrás, mas frisam que os próximos dias serão fundamentais para perceber se as medidas em vigor são ou não suficientes.
Lisboa está em risco de ser empurrada para um nível anterior do plano de desconfinamento traçado pelo Governo. O concelho, que já na última avaliação não avançou para o patamar em que agora se encontra a grande maioria do país, já tem mais de 240 casos por 100 mil habitantes, o limite definido pelo Governo para obrigar um município a recuar no processo de desconfinamento (após duas avaliações consecutivas). No grupo de especialistas ouvidos pelo PÚBLICO, há quem diga que aplicar medidas mais restritivas na região pode evitar um cenário em que a incidência continue a aumentar, mas também existe quem defenda que serão precisos mais dias para perceber o impacto do abrandamento que a capital já teve.
Segundo o matemático Carlos Antunes, que participou na elaboração de documentos orientadores para o Governo no combate à covid-19 e que analisa com frequência os dados fornecidos pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) sobre a epidemia, a incidência do concelho de Lisboa já ultrapassou os 250 casos nos últimos 14 dias e a tendência é que continue a aumentar nos próximos dias.
“A tendência é crescente. Estamos com 250 casos, mas com um potencial de atingir já amanhã os 280 casos em Lisboa. Houve ali uma diminuição no fim-de-semana prolongado e isso fez com que a incidência baixasse, mas essa descida foi artificial”, explica o investigador ao PÚBLICO.
Além disso, há outros concelhos vizinhos em que a incidência também está a subir. Em Sintra e Cascais, por exemplo, o indicador já ultrapassou os 120 casos de infecção. E em Almada, Amadora, Odivelas, Loures e Oeiras a incidência já ultrapassou ou está muito perto dos 100 casos por 100 mil habitantes.
E há ainda o caso “paradigmático” de Sesimbra que, segundo Carlos Antunes, levou a uma “medida drástica” por parte da câmara: não seguir para a fase seguinte do desconfinamento, como previsto, para tentar travar a propagação da covid-19.
A pedido da autarquia, Sesimbra não avançou no desconfinamento
Uma antecipação destas medidas no concelho de Lisboa não seria algo inédito a nível nacional. O presidente do município de Sesimbra pediu na sexta-feira ao Governo para não avançar para uma nova fase de desconfinamento, ao contrário do que estava previsto, devido ao aumento “exponencial” de casos de infecção no concelho. O Governo deu “luz verde” ao pedido e Sesimbra não avançou para a fase seguinte.
A iniciativa partiu da Câmara de Sesimbra e foi apresentada a Duarte Cordeiro, coordenador regional da resposta à covid-19 em Lisboa e Vale do Tejo – que até ficou “surpreendido porque, normalmente, os pedidos são no sentido inverso”, conta o presidente da Câmara de Sesimbra, Francisco Jesus. “Conseguimos ter luz verde do Governo para uma autonomia da câmara municipal em determinar apenas horários – e é disso que se trata, dos horários dos estabelecimentos de comércio”, explica o autarca ao PÚBLICO. Ainda houve um dia – sexta-feira, dia 11 – em que os horários da nova fase de desconfinamento estiveram em vigor.
O Governo acabou por ser “sensível” ao pedido da autarquia, já que havia “particularidades” em Sesimbra: o número de casos quase triplicou em dez dias, argumenta Francisco Jesus, e teve também “um crescimento muito acima dos restantes 17 concelhos da Área Metropolitana de Lisboa”.
Outro dos motivos para ter tomado esta decisão é “algo que não faz muito sentido” no processo de desconfinamento traçado pelo Governo: “Sesimbra passou de um patamar abaixo dos 120 [casos por 100 mil habitantes] para um patamar superior a 240 e avançou no desconfinamento. Sesimbra poderia ter zero casos e passar para 479, que avançaria no desconfinamento, o que seria uma situação ainda mais gravosa do que um município que teria mais de 120 casos por duas semanas consecutivas, na minha opinião.”
A 4 de Junho, havia 102 casos de infecção por 100 mil habitantes no concelho de Sesimbra. Já na última avaliação divulgada pela Direcção-Geral da Saúde a 11 de Junho, o concelho de Sesimbra estava com 260 casos por 100 mil habitantes a 14 dias. Como Francisco Jesus antevê que os números se manterão acima dos 240 casos, sabe que o município acabará por ter de recuar no processo de desconfinamento – mas acredita ter sido preferível não seguir com as novas medidas para tentar “inverter rapidamente esta tendência” de novos casos. Por agora, o autarca diz que já tomou algumas medidas que competem à autarquia (como a suspensão de actividades culturais e sociais) e que pediu um reforço da fiscalização, da testagem nas escolas e na comunidade piscatória. “Mas ainda é preciso mais. É preciso mais, é preciso ir mais longe.”
Carlos Antunes acredita que é possível contornar a situação actual que se vive no concelho de Lisboa se existir uma antecipação de medidas mais “limitativas”, que poderão ajudar a estabilizar ou mesmo baixar a incidência.
“Na minha opinião, um passo atrás pode e deve ser dado em Lisboa, sob pena de não o fazermos e estarmos a adiar uma decisão difícil. Acho que é possível contornar esta situação se existir a coragem, como existiu no caso de Sesimbra, de dar um passo atrás. A Câmara de Lisboa, a DGS e o Ministério têm de chegar à conclusão que a incidência está a evoluir e que, para a semana, só piorará se não fizermos nada. Já estamos acima de 240 e poderíamos regressar à fase de 19 de Abril para tentar consertar a situação”, afirma.
A pneumologista Raquel Duarte, especialista em saúde pública, é mais cautelosa e diz que dar ou não um passo atrás no desconfinamento dependerá da evolução dos próximos dias. “Os próximos dias vão ser fundamentais para perceber se as medidas chegam ou não chegam. Mas é bom que se perceba que o levantamento das medidas restritivas só pode ser feito com um aumento cada vez maior da responsabilidade individual. Se a responsabilidade individual não for cumprida, as outras falham”, refere a também ex-secretária de Estado da Saúde. “Penso que estamos a ver o efeito de um crescimento causado por vários fenómenos de aglomeração de pessoas, que facilitam a transmissão. Temos ainda estes fins-de-semana prolongados e só daqui a alguns dias vamos ver os seus efeitos. Tirando a zona de Lisboa, todos os outros concelhos limítrofes avançaram na redução das medidas restritivas”.
Duarte Vital Brito, membro da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública (ANMSP), acredita que não há necessidade de antecipar medidas para a região de Lisboa, por enquanto. “As regras existem e estão estabelecidas. Neste momento, é aguardar pelas reavaliações. São decisões também políticas e não meramente do foro da saúde pública”, diz, em conversa com o PÚBLICO. “Há informação em tempo real e está tudo controlado dentro do possível.”
“A verdade é que os casos já estão a aumentar há algum tempo. A tendência tem sido crescente, o que era expectável com o desconfinamento”, explica. As pessoas juntam-se mais, há mais eventos, casamentos, jantares, almoços – no fundo, há mais contactos. “Os casos que antes geravam apenas dois ou três contactos de risco, agora geram mais. Dão mais trabalho, colocam mais pessoas em isolamento e isso também se tem visto nas escolas, com o isolamento das turmas, por exemplo”, refere o médico. O fim do ano lectivo poderá ajudar. Certo é que “os casos estão a aumentar, portanto alguma coisa adicional será preciso fazer”. O “lado bom” é que esse aumento de casos não se está a reflectir em número de mortes por covid-19 e os internamentos têm subido, mas de “forma controlada”.
O PÚBLICO tentou contactar nesta terça-feira o presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, para saber se ponderaria antecipar um recuo em Lisboa, mas não obteve resposta.
Testagem em massa já não basta
Carlos Antunes avança ainda que a taxa de incidência de toda a região de Lisboa e Vale do Tejo está nos 160 casos por 100 mil habitantes e que, com a quantidade de casos diagnosticados diariamente, a testagem maciça já não está a ser uma medida eficaz.
“A testagem maciça, quando há poucos casos, é uma forma de conter a incidência porque são feitos testes a todos os contactos de cada infectado. Quando começa a aumentar o número de casos diários, que é o que se verifica em Lisboa e Vale do Tejo, a testagem maciça já não é uma ferramenta suficiente”.
Com o desconfinamento a progredir, Carlos Antunes diz que o número de contactos que cada pessoa tem aumenta, o que faz também subir o risco de alguém ser infectado.
“Em média, os portugueses têm 12 contactos por dia. Há jovens com mais e idosos com menos, mas essa é a média. Se estivermos em confinamento total, temos quatro contactos. Como a taxa de transmissibilidade está a subir, com a ajuda das novas variantes, e não estamos a conseguir reduzi-la com a testagem, temos que actuar no número de contactos”, avança.
O especialista diz que o aumento de casos sentido nas últimas semanas em Lisboa e Vale do Tejo ainda não está a ter repercussões nas mortes por covid-19 – em muito graças à vacinação, mas já se nota nos internamentos. “Ao nível das enfermarias há ainda internamentos na faixa dos 80 anos, mas nos cuidados intensivos já há pessoas entre os 40 aos 69 anos”, nota.
Para Raquel Duarte, que fez parte da equipa que desenhou a base do actual plano de desconfinamento, os ajuntamentos, que permitem que exista um grande número de pessoas que não cumprem a distância e que não usam máscara, têm de ser evitados “a todo o custo, sob pena de existirem “fenómenos de supertransmissão”. Por outro lado, Raquel Duarte apela a que existam espaços “seguros” para que as pessoas “se possam divertir e interagir” depois de um grande período de confinamento que causou uma “grande fadiga pandémica”.
“Aquilo que foi feito em Lisboa foi um travão, mas não podemos esperar que uma medida isolada seja eficaz. A vacina isoladamente não é eficaz, a testagem isoladamente não é eficaz porque vamos estar sempre à procura do positivo. Portanto, a única forma de vencermos esta batalha é tendo os três vectores impostos e a prática individual é fundamental”, diz a pneumologista, acrescentando que será preciso estar atento nas próximas semanas, altura em que muitas pessoas vão para outros locais do país, podendo verificar-se um “efeito sementeira de infecções noutros locais”.
Acontecimentos com “efeito-cascata”
Para Carlos Antunes, o que aconteceu no concelho de Lisboa e na região de Lisboa e Vale do Tejo pode ser explicado por uma série de acontecimentos que tiveram um “efeito-cascata”.
“Temos a situação inicial com o desconfinamento a 1 de Maio, o que gerou uma corrida rápida aos restaurantes. A partir do início de Maio, começamos a observar um aumento da incidência nas camadas mais jovens. Depois, houve um impulso grande que associamos aos festejos do Sporting e passado uma semana começámos a ver um aumento de casos nas pessoas com mais de 50 anos e mais contágios em meio familiar: as infecções de membros da família acabam por ser trazidas para casa e alastrar a outras pessoas”.
O matemático diz ainda que o país devia aprender com o exemplo de Odemira e “actuar antes” em Lisboa, tentando reduzir, por exemplo, os ajuntamentos e não permitindo festas e grandes eventos, até porque nas faixas etárias mais jovens a cobertura vacinal ainda é “insuficiente”.
Raquel Duarte afirma ainda que Portugal enfrenta agora uma “ameaça real” da variante Delta (identificada pela primeira vez na Índia), que já se está a transmitir na comunidade em Lisboa e Vale do Tejo, daí que medidas nesta região sejam “fundamentais”.
“Temos o benefício de estar a antever aquilo que poderá acontecer no nosso país através do que se está a passar no Reino Unido. A variante Delta, que, segundo dados preliminares parece estar associada a uma maior transmissibilidade e taxa de hospitalização, rapidamente se tornou dominante. É importante que a população perceba que a pandemia não terminou, ainda estamos longe, e que têm um papel fundamental para que os passos no sentido da normalidade se dêem”, avança a especialista.
Quanto a esta variante Delta, Duarte Vital Brito diz tratar-se das “vicissitudes de um vírus que tem mutações”. “Uma das coisas que a pandemia nos ensinou é que temos de estar preparados a adaptar com rapidez e, no fundo, estar sempre alerta a estas mudanças”, afirma. E lembra que qualquer uma das variantes pode ser combatida com as medidas gerais de prevenção: distanciamento social, utilização de máscara e higienização das mãos – e não é por existirem vacinas que se deve descurar estes cuidados. “Temos de fazer um esforço. É quase ingrato depois de um ano de pandemia, mas já vemos uma luz ao fundo do túnel.”