14.6.21

“Pandemia elevou e mudou as expetativas dos cidadãos em relação ao emprego e a pobreza”

Ana Marcela, in EcoOnline

Apenas 27% das empresas envolve os colaboradores na definição do propósito. E há vantagens de negócio e na retenção de talento em fazer isso, aponta estudo da consultora Llorente & Cuenca junto a CEO.

Se alinhar a empresa e os colaboradores em torno de um propósito faz parte das boas regras de gestão, em momentos de crise e transformação ainda é mais urgente. E sobre isso há boas e más notícias. A grande maioria das empresas (81,3%) tem um propósito definido e claro, a má notícia é que apenas 27% envolveu os colaboradores na definição desse propósito e apenas 9% os clientes.

E há inúmeras vantagens em abrir a discussão aos colaboradores. “Aumenta a capacidade de atrair e reter os melhores talentos. Há dados que mostram que aumenta em três vezes as hipóteses de reter talentos e aumenta em 1,4 vezes o envolvimento”, diz Tiago Vital, diretor-geral da Llorente & Cuenca (LLYC) Portugal e sócio da consultora, citando dados do estudo Propósito Partilhado: Um Caminho para Ultrapassar a Crise, realizado pela consultora junto a mais de 80 CEO de empresas da Península Ibérica e da América Latina.

A pandemia também amplificou as preocupações dos cidadãos com os temas do emprego e pobreza e o papel que as empresas podem desempenhar, as companhias parecem ainda não ter alinhado as suas preocupações para o pós-pandemia, concluiu o estudo.

Mais de 80% das empresas dizem ter um propósito e 77% acreditam que isso ajuda a alinhar e motivar toda a organização para uma finalidade comum. Mas apenas 27% consultam os colaboradores. Atrever-me-ia a dizer que em Portugal os números são ainda menos expressivos. É de facto assim?

Este estudo sobre o propósito corporativo foi desenvolvido junto de mais de 80 CEO de empresas da Península Ibérica e da América Latina, e os dados foram analisados de forma agrupada. Os números, mesmo a uma escala global, mostram-nos que há muita margem para as empresas melhorarem na capacidade que têm de escutar os seus principais stakeholders, incluindo os colaboradores, conhecer as suas expectativas e envolve-los na definição de um propósito. As boas notícias são o facto de os CEO já reconhecerem os benefícios que ter um propósito proporciona às empresas: ajudando-as a diferenciar-se no mercado e a melhorar a sua reputação.

Isso não releva um potencial falhanço para o cumprimento do propósito?

Sem dúvida. O facto de ter um propósito já não garante a diferenciação de uma marca; é essencial que os líderes das organizações vejam o propósito como um processo de transformação empresarial, mas também como um processo de cocriação e diálogo – e não como um fim em si mesmo. A conversação online sobre este tema mostra um desalinhamento entre as expectativas dos cidadãos e os compromissos em que se centram as empresas. Provavelmente devido a este processo tão pouco participativo para descobrir o propósito, este, em muitos casos, não corresponde àquilo que os grupos de interesse realmente esperam e àquilo de que falam. Na nossa perspetiva, a eficácia do propósito depende do conhecimento e da compreensão que a empresa tem das convicções dos seus grupos de interesse, e da sua capacidade de integrar no propósito estas expectativas e aspirações.

O propósito, na maioria das empresas, foi definido pela alta direção (70,8 %) ou pelo próprio CEO (53,8 %). Que mecanismos as empresas poderão adotar para envolver os colaboradores neste processo de criação de propósito?

O propósito é a razão pela qual uma empresa existe, determinando em que medida contribui para a sociedade. As empresas têm de oferecer valor a todos os grupos de interesse, definindo um propósito de impacto positivo. No novo capitalismo de stakeholders, há três condições fundamentais: Com quem e para quem – ouvir e dialogar, para o propósito ser partilhado pelos grupos de interesse e reconhecido como benéfico, procurando ressoar e despertar empatia; Como – Integrando a estratégia de negócio e a comunicação de forma a criar compromissos concretos, que inspiram e mobilizam; é fundamental que a ativação do propósito seja o eixo do diálogo público da organização e as partes interessadas; Quanto – medir e avaliar o progresso. Acreditamos que estes projetos têm de ser desenvolvidos ouvindo todos os grupos de interesse através de técnicas qualitativas e quantitativas baseadas em tecnologias avançadas, nas três fases do processo: storybeing, storytelling e storydoing.

No que respeita a ouvir os colaboradores, em concreto, na fase inicial, de definição, começamos com entrevistas com gestores de áreas funcionais e sessões de cocriação. Depois, utilizamos tecnologia e diferentes técnicas de investigação para ouvir todos os intervenientes no exterior, e voltamos a ouvir os colaboradores antes de os decisores tomarem uma opção sobre a formulação final, de modo a assegurar que o propósito responde à estratégia da organização e às expetativas dos stakeholders, criando o maior alinhamento possível. Além disso, envolvemo-los em toda a implementação. Na fase 2, de comunicação da narrativa, utilizamos dinâmicas que vão desde a gamification até ao desenvolvimento de uma rede de embaixadores dentro da organização. É também muito relevante envolver os colaboradores na medição dos resultados. A criação de comités de monitorização multidisciplinares tende a funcionar bem.

Que ganhos obtêm as organizações com o envolvimento dos colaboradores na definição da missão comum? Há ganhos de negócio efetivos?

Há ganhos potenciais muito significativos. É essencial que as empresas estabeleçam o propósito no centro da estratégia, ligando os objetivos empresariais aos objetivos de impacto social, ético e ambiental, porque são estes os elementos exigidos hoje por clientes, acionistas e investidores, colaboradores e as administrações públicas, para referir apenas alguns grupos de interesse. O propósito partilhado pode ter um impacto real no negócio, e refletir-se a vários níveis. Pode, nomeadamente, proporcionar clareza na tomada de decisões empresariais. Repare: se a empresa eleger um objetivo ancorado nos critérios de ESG que seja partilhado pelas partes interessadas, pode aumentar a licença social para operar e a sua reputação, e também a sua vantagem comercial. Este processo pode ainda favorecer a capacidade de antecipar a regulamentação; atrair e reter os melhores talentos (há dados que mostram que aumenta em três vezes as hipóteses de reter talentos e aumenta em 1,4 vezes o envolvimento); e melhorar as condições de acesso a financiamento.

O processo de desenvolvimento do propósito deve incorporar indicadores de negócio, de reputação e comunicação.

A esmagadora maioria das empresas afirmam que o propósito está estreitamente ligado à estratégia de negócio, mas metade não têm indicadores / objetivos para medir o desempenho nesta área. Que mecanismos de medição podem ser implementados para verificar se o propósito está a ter impacto no negócio?

Para que seja possível medir resultados, o processo de desenvolvimento do propósito deve incorporar indicadores de negócio, de reputação e comunicação. Na LLYC, desenvolvemos um modelo que permite medir de forma holística e extensa o cumprimento dos objetivos. Identificamos indicadores de desempenho, de conformidade com objetivos específicos de negócio; a isto acrescentamos uma medição ao nível da comunicação, para analisar se todos os elementos de contacto com a empresa estão alinhados e medimos o impacto na reputação consultando o público para ver como varia a sua perceção e confiança.

Parece ainda haver um desalinhamento entre as mensagens de propósito das empresas e as expectativas dos consumidores. Empresas têm-se focado em temas de sustentabilidade ambiental, mas, possivelmente exponenciado pela pandemia, temas como combate à pobreza, saúde e justiça social geram maior interesse e preocupação dos cidadãos. As empresas não estarão a falar sozinhas? A apostar nas fichas erradas?

Os dados mostram que, no ano da pandemia, mais de metade do diálogo online (55,3 %) girou em torno do «crescimento económico / emprego», muito centrado nas medidas das empresas para proteger ou não proteger o emprego, e do «fim da pobreza», em que a conversa se centra nas doações e ajudas sociais a grupo vulneráveis, especialmente durante a fase de confinamento total. A pandemia elevou e mudou as expetativas dos cidadãos em relação a questões relacionadas com o emprego e a pobreza, mas também estiveram presentes no debate social outros aspetos, tais como a sustentabilidade ambiental (10,4 %), a educação (9,9%), a saúde (9,1 %) e a justiça social (8,2 %).

As empresas precisam de escutar, e de se ajustar aos interesses dos cidadãos e dos grupos de interesse. Daí entendermos que este é um processo de transformação, e não um fim em si. Adicionalmente, as empresas continuam a focar muita da sua comunicação sobre estes temas em canais verticais e unidirecionais, como o discurso do CEO (80%), as campanhas de comunicação (58,5 %), os relatórios anuais (50,8 %) e os seus sites (40 %). Este facto não lhes permite ser dinâmicas o suficiente nem a ter a capacidade de dialogar de forma satisfatória com os stakeholders, especialmente porque, devido à pandemia, os diálogos e a participação dos cidadãos são mais digitais do que nunca.