Ana Cristina Pereira, in Público on-line
Delinquência juvenil registada diminuiu com a pandemia. Quebra de medida de internamento acentua tendência que já vinha de trás, mas os processos de promoção e protecção têm aumentado.
A Estatística da Justiça não podia ser mais expressiva: entre 2010 e 2020 o número de jovens internados em centro educativo passou de 226 para 90, o que se traduz numa quebra de 60,2%. A pandemia de covid-19 e os seus constrangimentos vieram acentuar uma tendência iniciada cinco anos antes.
“Não há uma resposta única, nem linear que possa explicar esta tendência”, como diz Maria João Leote Carvalho, investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa. Há um conjunto de circunstâncias que se podem pôr em cima da mesa para discussão.
João d’Oliveira Cóias, director dos Serviços de Justiça Juvenil, começa por lembrar que a revisão da Lei Tutelar Educativa, feita em 2015, introduziu a possibilidade de uma medida executada na comunidade, se não cumprida, ser revista e convertida em medida de internamento. “Os tribunais passaram a poder, com mais segurança, decidir aplicar medidas na comunidade.” Também “foi facilitada a possibilidade de o Ministério Público (MP) optar pela suspensão do processo”. Antes, o jovem (ou o seu representante legal) tinha de apresentar um plano de conduta. Desde então, o MP pode defini-lo, de acordo com o jovem.
Vera Duarte, investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais na Universidade do Minho e professora do Instituto Universitário da Maia, vê a bondade dessa alteração. “Os estudos têm mostrado que as taxas de reincidência são maiores nas medidas de internamento do que nas medidas na comunidade, pelo que estas últimas serão mais interessantes para reeducar jovens, ainda que as medidas de internamento em determinadas situações sejam necessárias”, explica. “Também é mais barato ter um jovem a cumprir uma medida na comunidade.”
Aumentar
No início de 2015 estavam 193 jovens internados em centros educativos e no final do ano 151. Ultrapassado o impacto da alteração legal, os números apontavam para uma certa estabilização. Em Fevereiro 2020, com a pandemia à porta, estavam 147 jovens internados. A partir daí caiu de mês para mês: 141, 136, 131, 129, 123, 123, 113, 99, 91, 90. Em Abril de 2021 mantinham-se internados 90 jovens.
Desde logo, dentro da estratégia traçada para conter a propagação do vírus, saíram mais jovens. Até final de Outubro, 22 beneficiariam de saída antecipada. “Já não era benéfico continuarem no centro educativo numa situação em que a escola tinha sido suspensa e reactivada com o ensino à distância”, esclarece Cóias. Houve ainda sete que saíram para supervisão intensiva.
Ao mesmo tempo, houve menos jovens a entrar. “Os tribunais reduziram a sua actividade”, recorda aquele dirigente. “Trataram sobretudo de casos que já estavam pendentes, na fase próxima da decisão ou de situações mais graves.” O ensino à distância também teve os seus efeitos, já que grande parte da delinquência juvenil ocorre na escola, à volta da escola ou no caminho escola para casa.
Trata-se, sobretudo, de bullying, de furto, de roubos, de pequeno tráfico de droga praticado por jovens entre os 12 e os 16 anos. O Relatório Anual de Segurança Interna mostra uma diminuição na ordem dos 33,4% – 1568 ocorrências em 2019 para 1044 em 2020, intensificando o pendor antes iniciado (2117 em 2015, 1636 em 2016, 1624 em 2017, 1482 em 2018).
Esta quebra é positiva?
Cóias admite que já se possa estar “perante a inversão” da quebra iniciada em Março de 2020: “Os jovens regressaram às escolas e já se começa a fazer sentir uma ligeira conflitualidade quer ao nível da escola, que tem de abrir alguns processos disciplinares, quer da polícia, com um ou outro reporte à Escola Segura”.
“Assusta-me que passada esta situação a realidade possa piorar, porque as condições de vida das famílias vão piorar”, achega Vera Duarte. “Entre os primeiros factores de risco estão a desestruturação da família, o insucesso e o abandono escolar, os locais de residência. O aumento do desemprego vai afectar a coesão social.”
Quando se lhe pede que comente a redução de jovens internados em centros educativos, Maria João Leote Carvalho pergunta: “Isso é positivo ou negativo? É positivo se corresponder àquilo que é a realidade da delinquência em Portugal. É negativo se tiver que ver com outros factores, como a falta de recursos.”
Chama a atenção para o movimento de processos nos tribunais de primeira instância nos três primeiros trimestres de 2019 e 2020. Os tutelares educativos diminuíram (3359 para 2757), mas subiram os tutelares cíveis (116.963 para 122.362) e os de promoção e protecção (19.714 para 21.901). “É uma jurisdição para a qual escasseiam recursos e que enfrenta a complexidade crescente dos modos de vida.” Está a fazer pós-doutoramento sobre delinquência juvenil (12-15 anos) e criminalidade de jovens adultos (16-21 anos) e já chegou a deparar-se com processos com dez volumes.
Muitas vezes, os jovens que cometem crimes já têm processo de Promoção e Protecção. “Havendo uma denúncia de factos que poderiam dar origem a um processo tutelar educativo, o tribunal prefere não dar sequência ao inquérito tutelar educativo, acreditado que a intervenção por via da protecção será suficiente”, observa Cóias. “O tribunal tende a deixar que a protecção resolva”, colabora Vera Duarte. Os lares de infância e juventude acolhem cada vez mais rapazes e raparigas com problemas de comportamento e nem sempre estão preparados para lidar com isso.
Maria João Leote Carvalho lamenta que a sociedade não discuta a sério o que é delinquência juvenil, como preveni-la e como combatê-la. “Quando se fala em delinquência juvenil, as posições tendem a extremar-se: de um lado, os que querem que estes jovens sejam sancionados ao máximo, do outro, os que só vêem vítimas”, diz. “Muita da delinquência que atravessa a sociedade portuguesa é vista como uma coisa de crianças que há-de passar com o tempo. Às vezes, já chega ao tutelar educativo fora do tempo.”
Na sua avaliação, os legisladores também não se têm empenhado em actualizar a lei, que foi publicada em 1999 e revista em 2015. “Temos uma lei pensada num sistema que pretende acima de tudo garantir os direitos das crianças e dos jovens, quando os modos de vida eram outros, a delinquência era outra”, sublinha. Há todo um novo contexto, todo um mundo de possibilidades trazido pelo digital.
O internamento em centro educativo é a medida máxima prevista pelo sistema tutelar educativo. Só se aplica a quem, entre os 12 e os 16 anos, tenha cometido um crime contra as pessoas a que corresponda uma pena máxima de prisão superior a três anos ou dois ou mais crimes a que corresponda uma pena máxima superior a três anos. “A lei é bastante rígida. Não permite, ao contrário do que as pessoas pensam, que o juiz tenha autonomia total para decidir. Há que questionar se não deveria haver aqui outra flexibilidade.”
A investigadora lembra que Portugal “é um dos poucos países que não têm um direito penal de menores – tem um sistema tutelar educativo, que pretende ser de responsabilização, de educação para os valores em sociedade, que tem como grande chapéu a protecção”. “Isso nem sequer está divulgado o suficiente”, critica. “Deparo-me muitas vezes com o desconhecimento de princípios básicos, mesmo entre profissionais desta área. Há jovens no sistema de protecção que aos 16 anos já estão com processos no sistema penal.” Seria assim se tivessem tido uma intervenção mais orientada para o direito? - questiona.
Quanto mais estuda mais se convence que está na hora de o país voltar a olhar para a legislação, repensar a fusão entre serviços de reinserção e serviços prisionais, reinvestir. “Não basta uma reorganização de recursos. É preciso olhar para a jurisdição de família e da criança, pensar se não deve ela mesma constituir uma prioridade.”