29.3.12

Trabalhadores sem rosto

por Vera Pinto, in RR

Não se sabe ao certo quem são, nem quantos são. Não estão inscritos nos centros de emprego, não fazem descontos para a segurança social e o que ganham não entra na contabilidade nacional. São portugueses à margem do sistema. Na semana em que a Renascença olha para a realidade do desemprego, esta é uma história que os números não contam.

António, rosto rude, queimado pelo sol das muitas horas passadas a tratar os jardins de um bairro de vivendas nos arredores de Lisboa, é um homem que não esconde a sua história. De chapéu na cabeça, luvas e tesoura nas mãos, conta que já foi pedreiro, operário, segurança. Agora, aos 52 anos, casado e pai de um filho, é um português fora do sistema.

Há três anos, António decidiu trabalhar por conta própria. A jardinagem tornou-se modo de vida, mas sem fazer qualquer desconto para a segurança social. Em tempos, ainda chegou a receber do fundo de desemprego, primeiro quando a fábrica onde esteve 12 anos encerrou, depois quando foi despedido de uma empresa de jardinagem.

Durante os meses em que esteve inscrito, foi chamado duas ou três vezes para trabalhar, mas nunca serviu para o lugar. Foi então que seguiu o seu próprio caminho.

Não se sabe ao certo quantos são como António – portugueses à margem do sistema, trabalhadores sem rosto. Há estudos que dizem que a economia paralela vale um quarto da riqueza produzida em Portugal. É neste universo que António encaixa.

O médico das flores
O trabalho não falta. Todos os dias, António tem sempre um biscate para fazer. A bicicleta que o acompanha leva-o de jardim em jardim no bairro onde todos o conhecem e onde é homem de confiança. Afinal, António é um médico das flores (é assim que se autodefine).

O conforto de ter trabalho contrasta com o desconforto da instabilidade. António assume que não faz descontos e diz que isso o preocupa. Explica que ganha 10 euros à hora, qualquer coisa como 500 a 550 euros nos bons meses de Primavera e Verão, e que isso não dá para quase nada. Quando se fala em reforma, baixa o olhar, diz que a sua profissão é de desgaste rápido e admite que, quando chegar aos 70 anos, está-lhe reservada "uma mísera pensão" pelos vinte anos que descontou.

Mas António tem um plano. No próximo ano, vai começar a descontar. Revela que tem uma herança do pai, uma casa que está alugada, e, com esse dinheiro, vai pôr as contas em dia na segurança social para "mais tarde viver a reforma sem grandes sobressaltos". Para já, este "médico das flores" não esconde que está satisfeito com a vida que leva, porque faz aquilo que mais gosta - tratar das suas geribérias, rosas e malmequeres.

A promessa
Cabelos ruivos, longos, encaracolados, sorriso rasgado, Maria estuda gestão de recursos humanos e trabalha em “part time” para conseguir frequentar a universidade. Os pais pagam as propinas, Maria tem de garantir tudo o resto.

Aos 23 anos, já teve vários empregos, todos através de empresas de trabalho temporário, sempre a recibos verdes. Em dias de crise como os que se vivem, nem sequer isso há. Por isso, agarra o que lhe aparece.

A mãe falou-lhe de uma livraria lá do bairro, um trabalho leve, perto de casa e que dava para pagar as despesas. Maria espreitou a livraria e deparou-se com uma proposta de trabalho para seis dias por semana, das 09h00 às 13h00, a ganhar 250 euros sem recibos - uma situação provisória, prometeram.

Passados seis meses, a desilusão faz parte do rosto de Maria. Diz que a situação mantém-se e as perspectivas de mudar são poucas.

Aos 23 anos, Maria refere que está preocupada por estar à margem do sistema. Não tem protecção na saúde, nem no trabalho, sabe que de “hoje para amanhã” pode ficar no desemprego sem qualquer compensação e, se tiver um acidente enquanto arruma os livros, ninguém vai assumir a responsabilidade.

Mas Maria não é de desistir. Respira fundo, recupera o sorriso e revela a promessa que fez: quando estiver a gerir recursos humanos, não vai permitir que existam trabalhadores sem rosto.