Sandra Afonso, in RR
Um dia bom é arranjar empregos, estágios, projectos de vida O trabalho deles é arranjar trabalho para outros. Vivem diariamente o desespero de quem só quer pôr comida na mesa ou garantir um futuro. Eles são funcionários dos centros de emprego. Na semana em que a Renascença olha para a realidade do desemprego em Portugal, esta é uma história que os números não contam.
O tecto alto da sala de espera aumenta o volume de qualquer som, o que torna o silêncio ainda mais pesado. Aqui não há sorrisos, nem conversa de circunstância.
À porta, o segurança aponta para a máquina das senhas. Rostos desesperados alinham-se em cadeiras vazias, misturados com outros mais descontraídos, já habituados a esta rotina periódica no centro de emprego de Benfica, em Lisboa.
Este é um dia calmo, mas nem sempre é assim. Em 13 anos como técnica de emprego, Isabel Cunha já assistiu a um pouco de tudo. "Há dias complicados, em que atendemos candidatos maldispostos e as pessoas acabam por descarregar as frustrações nesta primeira linha de atendimento."
Isabel admite que não é frequente, mas há "situações pontuais de pessoas que revelam alguma violência". Quando assim é, não há nada a fazer senão recorrer ao segurança até que a pessoa se acalme.
O relógio marca 17h00. Ana Catarina Pereira olha para o pulso e não consegue evitar um suspiro - hoje também não vai conseguir ir buscar o filho à escola.
Há coisas que a idade ainda não permite compreender, mas ele já sabe por que motivo a mãe fica tantas horas longe: "Ela arranja empregos". Ana é funcionária do centro de emprego de Benfica.
Mas nem tudo é tão fácil de explicar, admite Ana Catarina Pereira quando se lembra da última pergunta do filho, de máquina de calcular na mão: "Mãe, quanto é que tu trabalhaste hoje?".
A resposta é difícil. Ana conta que tem de lhe explicar "que trabalha com pessoas, não com números".
Gestor de insónias
José Varela já se habituou às insónias e aponta para as olheiras com um sorriso. "As noites têm sido bastantes más", conta.
Gestor de ofertas no centro de emprego de Benfica, José Varela diz que "isto é como ir ao médico". "Vamos ao centro de saúde porque temos um problema ou estamos doentes. Eles vêm aqui porque estão sem emprego."
Além das insónias e das olheiras, há a dificuldade de ter que dizer "não" quando não há nada para oferecer. "Não é gratificante estar à frente de um candidato que vem aqui uma, duas e três vezes à procura de emprego e dizer 'não temos, não temos, não temos'."
José Varela está habituado a percorrer as ruas de Benfica, em Lisboa, à procura de ofertas. Sabe de cor as moradas e conhece os patrões pessoalmente, alguns há vários anos. Orgulha-se da agenda de contactos, construída a pulso ao longo dos 14 anos de serviço como gestor de ofertas, mas perde o sorriso quando pensa na lista cada vez maior de nomes que procuram uma colocação.
Nos últimos meses, apenas um grupo económico lhe garante um sono descansado. Recusa avançar nomes, mas explica que é graças a eles que tem conseguido dormir um bocadinho mais, porque tem colocado lá algumas pessoas a trabalhar.
"Este foi o homem que me matou a fome"
José Varela anda há 14 anos a recolher memórias. Quando é desafiado para destacar um caso que o tenha marcado, garante que "estava todo o dia a contar histórias" se aceitasse o desafio.
Perante a insistência da Renascença, deixa espreitar o livro que ainda vai escrever, onde uma das personagens é um candidato que andava há dois ou três meses a comer um prego por dia, oferecido pelo dono de um restaurante.
"Eu consegui pô-lo a trabalhar, o que fez com que um dia entrasse pela nossa porta e quisesse cumprimentar-me na recepção, dizendo 'este foi o homem que me matou a fome'", conta José. Há orgulho na voz.
José Varela, Ana Catarina Pereira e Isabel Cunha sabem que não há meio-termo no combate que travam diariamente. Um dia bom é arranjar empregos, estágios, projectos de vida; é garantir um salário a alguém, para as despesas da casa, a comida e a roupa. Tudo o que fique a meio caminho não chega – e eles sabem disso.